Helena Katz comenta o corpo nas manifestações

“Como é que a gente pode participar de um país que quer transformações?”

       Com a força de um tsunami, o povo trocou abaixo-assinados, lobbies e petições online por marchas, cartazes, pedras e pichações em disputa física pelos rumos da sociedade. (trecho da reportagem “O junho de 2013”, escrita por Cristiano Navarro, Luís Brasilino e Renato Godoy. Le Monde Diplomatique Brasil, jul. 2013)

    Esse é o melhor e mais propício momento para revermos nossos conceitos, propormos mudanças concretas e estarmos engajados verdadeiramente na melhoria do país. Não sei até onde chegará a extensão das nossas contribuições individuais e coletivas, mas a certeza de que algo precisa ser feito nos mais diferentes setores é o que me faz manter o vigor, sem perder a atenção ao que está ao meu redor. Vamos buscar conhecer o que antes era raso, buscar compreender as raízes e extensões de pensamentos e ações nos mais diversos ângulos, vamos aperfeiçoar o nosso modo de ver o mundo e ser no mundo. Esse é o meu convite… (depoimento em página pessoal do facebook de Juliana Kabad, doutoranda na Escola Nacional de Saúde Pública, da Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro, 23 jun. 2013)

 

Era o fim de tarde de uma quinta-feira, 13 de junho, e eu acompanhava o fechamento de um encontro sobre criação e formação em dança, conduzido por Christine Greiner, durante a Mostra Rumos Dança, em uma das salas do instituto Itaú Cultural, na Avenida Paulista.

Naquele instante, em frente ao Theatro Municipal, no centro da cidade, centenas de pessoas começavam a se concentrar para iniciar passeata que revogava o aumento do valor das passagens do transporte coletivo, que de R$3,00 passou a custar R$3,20.

Desde a abertura da Mostra Rumos Dança (6 de junho), eu vinha sendo afetada indiretamente pelas passeatas. Mas naquela quinta-feira, a sensação era a de que não dava mais para aguentar. Não dava mais para arcar com o aumento da tarifa do transporte coletivo, não dava mais para aceitar a repressão policial violenta a um ato que performa a democracia, o direito de se manifestar.

Naquele dia, assim como eu, cerca de 10 mil pessoas – segundo o jornal GGN – enfrentaram a multidão apertada dos ônibus e dos vagões e corredores do metrô em horário de pico para chegar ao centro e fazer volume à manifestação. A aglutinação diversa, pacífica, convocada pelo Movimento Passe Livre por meio de redes sociais desestabilizou a rotina da cidade. Ruas que geralmente são ocupadas por carros, foram tomadas por um mar de gente que, em poucas horas, foi dispersado violentamente por bombas de gás lacrimogênio, sprays de pimenta e balas de borracha atiradas pela tropa de choque da polícia militar.

Tamanha violência policial, foi ignição para que uma “coreografia social” volumosa emergisse nos dias que seguiram. Milhões e não mais milhares de pessoas performaram a maior mobilização popular brasileira desde 1992, quando ocorreu o impeachment do presidente Fernando Collor. Sem carros de som e com cartazes que, em sua maioria, eram pequenos, o movimento se configurou de maneira bastante distinta do que ocorreu há 21 anos atrás.

Cenário de guerra em protesto pela revogação do aumento da tarifa de transporte coletivo em São Paulo, no dia 13 de junho de 2013. Foto: Mídia Ninja.

Cenário de guerra em protesto pela revogação do aumento da tarifa de transporte coletivo em São Paulo, no dia 13 de junho de 2013. Foto: Mídia Ninja.

Ao longo do mês de junho e julho, cerca de 438 cidades brasileiras, segundo a Confederação Nacional de Municípios, tiveram suas principais ruas tomadas por passeatas e manifestações.

O dançarino Guilherme Morais, que vive em Belo Horizonte, contou ao idanca.net que ali as pessoas vêm saindo às ruas e ocupando os espaços públicos há bastante tempo “por conta do descontentamento com as políticas públicas do prefeito reeleito Márcio Lacerda.”. Nos últimos dias, Guilherme diz que “ganhamos um corpo maior de pessoas, de reivindicações; um corpo maior e conflituoso, às vezes desconecto, heterogêneo”.

A pauta da mobilidade urbana começou a conviver, num mesmo ato, nas diversas cidades, com outras pautas relacionadas à saúde, educação, corrupção, cultura e muitas outras. E a cobertura desses acontecimentos que, antes, era realizada predominantemente por veículos independentes da internet, passou a ser temperada com o jornalismo corporativo que possibilitou a transmissão ao vivo, em cadeia nacional, dentre outros eventos, do pronunciamento da presidenta Dilma Roussef, no dia 21 de junho (sexta-feira).

A mestranda em Dança, da Universidade Federal da Bahia, Ana Rizek Sheldon, fez parte de manifestações em Salvador. “Começamos seguindo o percurso do carnaval. As pessoas cantavam algo como ‘não é carnaval, é Salvador mostrando que caiu na real’.”. Para ela, “foi muito bom ouvir as pessoas conversando sobre política por mais tempo nas ruas, bares, na universidade e no facebook; me sensibilizou para tentar entender melhor o sistema político do nosso país.”.

Luciano Silva, também mestrando em Dança, na UFBA, morou praticamente a vida toda na zona leste de São Paulo. “Todos os dias, eu tinha que fazer várias baldeações; gastava entorno de 3 a 4 horas para chegar na universidade ou no trabalho.”. Em Salvador, ele saiu às ruas com o impulso desse histórico e teve a sensação de que “aquela coletividade com diversas singularidades estava realmente modificando algo para além do apenas estar ali.”.

A pressão popular gerou reações do governo como a diminuição das tarifas de transporte coletivo em diversas cidades, a queda da PEC 37, a aprovação dos royalties do petróleo para a educação e a saúde, a tipificação da corrupção como crime hediondo e uma possível convocação de plebiscito para discutir a reforma política.

Diante de tantas manifestações acontecendo simultaneamente no país, a dança não poderia estar de fora dessa emergência por transformações. Com o intuito de ampliar o debate sobre o assunto, o idanca.net entrevistou a crítica, pesquisadora e educadora Helena Katz, que tece reflexões sobre o caráter desses movimentos e que questões eles podem suscitar a nós, artistas da dança.

 

ENTREVISTA

A crítica, pesquisadora e educadora Helena Katz tece reflexões sobre o caráter das manifestações e que questões elas podem suscitar para a dança. Foto: Kenji Arimura.

A crítica, pesquisadora e educadora Helena Katz tece reflexões sobre o caráter das manifestações e que questões elas podem suscitar para a dança. Foto: Kenji Arimura.

Como você vê essa onda de manifestações que começou com a revogação do aumento da passagem do transporte público em São Paulo e assumiu proporções gigantescas na cidade e a adesão em outras cidades brasileiras e de outros países – lugares nos quais o impulso para sair às ruas começou a não ter, necessariamente, relação com as reivindicações relacionadas à mobilidade urbana?

Uma das reflexões que tenho feito é que nos falta vocabulário para lidar com o novo dessas manifestações. Ficamos nos aprisionando em uma lógica causal, querendo saber: O que causa isso? Aonde isso vai dar? A mídia lida assim e nós ainda lidamos assim. Minha hipótese é a de que podemos reconhecer um fenômeno novo cuja natureza só poderia existir com a cognição do mundo online, ou seja, um tipo de entendimento de mundo que está mudado em termos de relacionamento, afetividade, participação.

O símbolo maior disso, no meu entender, foi como essa manifestação se corporifica em cartazes individuais do tamanho de um corpo; cada corpo com seu cartaz. Numa direção muito diferente das faixas longas que todo mundo segura e caminha junto, isso me parece realmente o cartaz twitter; é a manifestação de uma frase. Ela sozinha é fraca, mas uma precisa rebater na outra. Parece-me que esse tipo de manifestação é possível porque a vida online e off-line estão borradas, não têm mais a separação habitual que se pensava quando se começou a investigar o mundo virtual no final dos anos 1980 e, especialmente, dos anos 1990.

Manifestação ocorrida na Praça Savassi, em Belo Horizonte, no dia 15 de junho. Esse foi o Primeiro Ato contra o aumento da tarifa de transporte coletivo na cidade. Foto: Mídia Ninja.

Manifestação ocorrida na Praça Savassi, em Belo Horizonte, no dia 15 de junho. Esse foi o Primeiro Ato contra o aumento da tarifa de transporte coletivo na cidade. Foto: Mídia Ninja.

Protesto pelo impeachment de Fernando Collor (1992). Foto: Fernando Maia / O Globo.

Protesto pelo impeachment de Fernando Collor (1992). Foto: Fernando Maia / O Globo.

Há uma outra cognição em curso, uma nova maneira de se conhecer e nunca foi tão claro na vida social o que se diz das redes sociais “participar é existir”.  Possivelmente o que guiou todo o volume de pessoas mobilizado em torno de “tudo difuso” – e não entorno de um eixo, porque é da natureza da rede ser difuso – foi o “participar”, porque participar é existir e é preciso existir participando.

A multidão não se junta para pleitear, se junta para dizer algo, “estamos insatisfeitos”, cada qual com sua insatisfação. Então, de novo o indivíduo está insatisfeito porque está mais perto dele a questão da saúde, o outro está mais perto da questão do transporte, o outro da questão da segurança, o outro da educação, e assim por diante. Isso tudo cabe, porque o que é preciso é manifestar participando, participar manifestando.

A grande questão para mim é que o que essas manifestações fizeram foi dar corpo físico ao que já existe no nosso modo de viver online. Os corpos foram para as ruas do mesmo modo como estão online, com o mesmo tipo de rapidez de comunicação, superficialidade de comunicação, impossibilidade de discutir longamente qualquer um daqueles assuntos. Estamos nos treinando já há muitos anos a um ativismo online, que é um ativismo que você faz uma assinatura numa petição e nunca mais toma conta se deu certo ou se não deu certo.

Então, minha pergunta é: como será possível politizar isso, transformar numa discussão e numa reivindicação política? Tem uma erupção tão forte, tão potente, como transformar em política? É uma tarefa para cada um de nós.

 

Você acha que é por ser uma materialização da lógica online nas ruas que esse movimento reverberou em tantas cidades em tão pouco tempo?

De fato, o tipo de manifestação não é local, é glocal. É na rua principal de cada cidade, onde cada cidade entende que há mais visibilidade. O que me parece interessante é que é tanto uma lógica de rede, que as manifestações se espalham, se distribuem fisicamente. Elas materializam, no tecido da cidade, a arquitetura da rede.

No país, me parece, ao mesmo tempo, um tipo de manifestação muito semelhante em lugares muito diferentes e tem algo de local que ainda vai ser melhor estudado como o fato de em algumas cidades a manifestação ser mais violenta como Belo Horizonte e Salvador e outras cidades menos. Ainda é cedo para conseguir entender, porque o que se sabe das outras cidades, em não estando lá, é o que foi midiatizado, aí há o problema da leitura da mídia. Então, é necessário ainda colher muitos depoimentos de outras maneiras, para se saber que explicações se tem para isso.

Ainda é cedo para afirmar, mas acho um sintoma muito importante ver a mudança no eixo que aconteceu com relação à televisão nessa quinta-feira (21 de junho). A televisão que vinha sendo apresentada como uma mídia velha é a única que realmente tem capacidade de fazer um jornalismo online, porque tem os melhores equipamentos, melhor capacidade de produzir imagem, porque são profissionais e porque tem profissionais. Nós fazemos isso com nossos celulares, então se faz do lugar em que se está na manifestação. Precisamos disso, mas precisamos dos helicópteros senão não temos a dimensão. Nessa quinta-feira ocorreu, de fato, um exercício jornalístico em tempo real, mas esse jornalismo custa muito caro, colocando jornalista em cima de cada prédio, de cada cidade, um helicóptero para cada cidade.

Tenho a impressão de que precisamos ver, entre as mídias “velhas” e “novas”, que há uma nova perspectiva de complementaridade indispensável entre elas. “Velhas mídias” como tudo aquilo que já estava estabelecido antes da internet. Precisamos das duas: a mídia velha, tem uma forma de ideologização presente que precisa ser temperada com as mídias da mobilidade, mas, ao mesmo tempo, as mídias da mobilidade não são suficientes para sabermos, em tempo real, o que acontece em todo o país. Até todo mundo postar em todos esses lugares, o leitor ir atrás de todos os links. Uma mídia abertona como a televisão te põe em dois segundos em Salvador, São Paulo, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Brasília, Fortaleza.

 

O que isso tem a ver com dança?

Como a gente usa isso para entender o que tem acontecido na dança e qual o nosso posicionamento diante disso? Que tipo de mobilização, atuação, participação temos tido para fazer essas mudanças? Porque parece que está todo mundo um pouco insatisfeito na dança. Mas o que se tem feito? Para todos nós tem alguma coisa interessante: formas novas de mobilização que nos fazem pensar possibilidades de transformação. Acho que a gente tem um pouco para pensar sobre o que cada um de nós fez em termos de participação nessa mobilização e de reflexão sobre ela pra ver se é possível aprender alguma coisa com isso para trazer para uma prática em dança.

Acho também que isso pode nos fazer pensar como é que faz para funcionar uma transformação quando não se tem discurso político para ela? E dá, mesmo sem ter discurso político para ela. Sinto que estamos muito imobilizados. Está na hora de pensar o que nos imobiliza, o que nos mantém tão conservadores, fazendo remendinhos aqui e ali. Como é que a gente pode participar de um país que quer transformações? 

 

Ao longo das passeatas, percebi o quanto estamos despreparados para atuar democraticamente nas ruas. Tanto manifestantes como policiais, ninguém sabia direito como agir. O que você pensa sobre isso?

Não temos hábito há muito tempo de manifestar. Esse rescaldo da ditadura ainda não saiu do tecido social. A obediência sem questionamento, o medo da mudança, um sentimento de conservar o que se tem para evitar o desconhecido. Isso tudo ecoa muito a ditadura. Mas já se passaram, felizmente, quase 30 anos, então, aos poucos, eu tenho a impressão de que vamos conseguir entender como que isso ainda está muito impregnado e que está na hora de desimpregnar.

Essas manifestações foram muito potentes com relação a isso e como tudo tem alguma coisa que desregula, que atrapalha a vida da cidade, que é “imprópria”, podia não acontecer. Mas quando uma manifestação desse tamanho ocorre, como ela é muito difusa, muita coisa acontece. É difusa, cabe muita coisa até quem não devia estar lá, porque está lá para atrapalhar, para bater, depredar, não só para se manifestar.

A coisa mais séria dessa montanha de coisas é que, junto dele, aparece uma confusão entre “apartidário” e “contra partido político”. Uma coisa é “esse movimento não tem partido político”; agora, ser contra partidos políticos é um sintoma importante para se pensar. Partido está investido no lugar de quê para ser banido? Existem discursos homogeneizados como  “esses políticos, ninguém presta” ou “esses partidos políticos, nenhum presta”, quando se sabe que esses são os sustentáculo da democracia. Se vamos tirar os partidos, o que vamos ter? Que horror, é uma coisa que o Brasil já viveu: a ditadura.

Acho que aí há um paralelo com a dança que é todo esse entendimento de que a dança existe por um certo tipo de financiamento que existe no país. É como se esse certo tipo de financiamento da dança fosse uma ordem dada da qual não se pode escapar. Não é o melhor dos mundos, mas é melhor esse do que qualquer outro. Então, tem uma coisa nesse entendimento de dança que está imobilizado na leitura daquilo que incomoda. Todos estão incomodados, mas não é possível pegar esse incômodo e mobilizar para a mudança. Então é isso que a dança pode aprender: como transformar o incômodo na mudança, sem medo. É possível.

Fotos de capa e destacada da reportagem: Mídia Ninja.

 

Referências de pesquisa

BENVENUTI, Patrícia. Mobilizações em disputa. Brasil de Fato, São Paulo, 28 jun. 2013. Disponível em: < http://www.brasildefato.com.br/node/13382>. Acesso em: 8 jul. 2013.

FREIRE, Bruno. O que o artista faz com o que a televisão faz com a arte? São Paulo, SP, dissertação (mestrado), PUC-SP: 2012.

HEWITT, Andrew. Social Choreography – Ideology as performance in dance and everyday movement. London, UK: Duke University Press Durham and London, 2005.

NAVARRO, Cristiano; BRASILINO, Luís; GODOY, Renato. O junho de 2013. Le Monde Diplomatique Brasil, São Paulo, jul 2013. Disponível em: < http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1447>. Acesso em 4 jul. 2013.

Página do Movimento Passe Livre São Paulo. Disponível em: <https://www.facebook.com/passelivresp>.

Página da Mídia Ninja. Disponível em: < https://www.facebook.com/midiaNINJA/photos_stream>.

Perfis do facebook de pessoas que fizeram parte das manifestações.

PósTV. Disponível em: <http://www.postv.org/>.

SAAVEDRA, Victor. Um retrato da violência policial. Jornal GGN, 14 jun. 2013. Disponível em: <http://jornalggn.com.br/blog/um-retrato-da-violencia-policial-na-quinta-feira-13-de-junho>. Acesso em 10 jul. 2013.