Alvorecer / Foto www.gettyimages.com

Chamada ao alvorecer do Mês da Dança

Prólogo

Na última quinta-feira (28/04), no auditório do Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador, tivemos uma mesa heterogênea com diversos representantes de nucleações da dança em Salvador. De maneiras distintas, considero importantíssima a homenagem ao Conhecimento em Dança, simbolizada no prestígio a Mestre King, professor e coreógrafo da cidade. Esse que, por algumas décadas, tem formado dançarinos e cidadãos a partir da inventividade com as danças dos Orixás e outras danças regionais.

Penso que as falas desse dia fizeram dizeres acompanhados de reticências. Isso interessa, uma vez que reticências indicam que ainda há dizeres não ditos, convocando assim um(ns) e outro(s) a se posicionar(em). Talvez esse seja um dos principais sentidos tanto de política quanto de mobilização que estamos fomentando nesse nascer de um Brasil deveras republicano, sob a ode à democracia, bem como o fomentamos na prática da dança, da sala de aula aos estúdios de academias, salas de ensaio, palco e plateia, ou mesmo nas ruas.

Podendo ser um, em direção a esses dizeres, tomo a palavra nesse segundo tempo, agora, posto o alvorecer do mês da Dança, seguindo o caminho da homenagem ao conhecimento, sugerido nessa audiência pública.

Primeiro Ato

Considerando o contexto contemporâneo de fazeres e formação humana, ao falar do sujeito da experiência, o filósofo da educação, o espanhol Jorge Larrosa Bondía diz:

Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição (nossa maneira de pormos), nem [tanto] a “o-posição” (nossa maneira de opormos), nem a “imposição” (nossa maneira de impormos), nem a “proposição” (nossa maneira de propormos), mas a “exposição”, nossa maneira de “ex-pormos”, com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se propõe, mas não se “ex-põe”. É incapaz de experiência aquele a quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada lhe sucede, a quem nada o toca, nada lhe chega, nada o afeta, a quem nada o ameaça, a quem nada ocorre. (BONDÍA: 2002, 25)

Des/Conhecimento

A virada democrática vivenciada a partir dos efeitos do primeiro mandato do presidente Lula reverberou localmente, não só com a eleição do então governador reeleito, Jaques Wagner, mas com a aurora de um tempo de compromisso público, transparência e acessibilidade. No âmbito da dança, ocorre-me a existência de duas grandes marcas: a criação das Diretorias de Linguagem, na Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb), órgão da então também diferenciada Secretaria de Cultura, de modo que conquistamos uma Diretoria de Dança, com uma pessoa responsável e competente, com uma equipe de trabalho específica, e, como não deixou de ser, um pensamento de políticas em correspondência com os, ainda que borrados, contornos da dança.

O programa de diretrizes e ações para a dança, intitulado PRÓ-DANÇA BAHIA, criado por Lúcia Matos (há algumas solenidades com autoria já esquecida), já nascia com um tom coletivo e transparente, seja pela escuta primeira de pares, como Beth Rangel, então Diretora da Escola de Dança da Funceb, seja por Leda Muhana, então Prof. Dra. da Escola de Dança da UFBA, e logo em seguida, fazendo uma consulta pública para toda a classe, no sentido de ouvir críticas, constatar relevâncias e fazer alterações necessárias.

Lúcia Matos, assim, torna-se tanto a voz que vinda da classe ocupa o governo, quanto do governo retorna à classe.

.

.

.

.

Essa lógica espiral inaugura um ato democrático que em uma micro esfera da cidadania [Dança na Bahia] faz aliançar o povo ao poder.

Essa a.l.i.a.n.ç.a é, sem dúvida, efeito de conhecimento. E não é só pelo fato de ser a Doutora em Artes Cênicas, Lúcia Matos (também resposta a esse efeito), mas pelo tempo de ex-posição e pro-posição dessa pessoa em diversos coletivos políticos e educacionais da dança, embebida pelo caráter artístico dessa linguagem. Posicionar afora e a favor da dança nesses coletivos é nada mais, nada menos, do que se constituir pertencente ao mesmo tempo em que se faz constituir continuamente uma Comunidade de Dança. Sendo ao mesmo tempo assujeitada e agente dessa comunidade, eis um saber que é o saber da experiência, o saber do vivido na comunidade. Logo, a inteligência que cria o plano é, por um lado, o protagonismo de Lúcia e por outro esse saber da comunidade.

Eis aí a possibilidade dessa aliança, que só foi possível pela sensível mentalidade política que entendeu que representantes governamentais, para além de simplesmente burocratas e barganhadores de votos, são gente que possui alianças de conhecimento pelo vivido no seio de uma comunidade de sentido.

Segundo Ato

Aproveitando o seio, entro para o que me ocorre enquanto segunda grande marca: Beth Rangel assume a gestão da Escola de Dança da Funceb. Criada em 1984 pela coreógrafa e educadora Lia Robatto, essa escola veio responder a uma demanda de jovens que, desejantes do dançar, não tinham condição de pagar uma academia de dança. Apressadamente, podemos fazer uma associação direta dessa motivação histórica da Escola e a grande experiência de Beth Rangel com Arte-Educação no terceiro setor e a diversidade de projetos de extensão comunitária, implementados por ela enquanto professora da Escola de Dança da UFBA. Entretanto, além disso, Beth Rangel foi protagonista de uma virada democrática na história das graduações em dança no Brasil ao propor uma reforma curricular que reconhecia a existência de alianças entre os conhecimentos em dança; e, mais do que isso, ao ser implementada, essa reforma convocava os então professores a não só revisarem seus conhecimentos isolados em direção a esse ‘aliançamento’ dos conhecimentos, mas principalmente, o maior desafio, a se aliançarem uns aos outros, numa prática de docência compartilhada. Beth Rangel provoca o tratamento do conhecimento, bem como os tradicionais agentes na hierarquia institucional a se moverem de um conhecimento-posto a um conhecer a ser vivido, pois haveria de ser experimentado e criado, enquanto comunidade.

Aproveito o seio, não só pelo já conhecido estilo maternal de gestão de Beth Rangel, mas porque quem diz seio, diz sei-o. O tipo de experiência vivida por Beth Rangel, alimentada desde suas práticas artísticas, como ela gosta de dizer, “com sua mestra” Lia Robatto até o investimento do tratamento educacional com o saber artístico, parece ter feito surgir o entendimento da potência de um fazer que é comunitário.

Beth Rangel o sabia.

E estando numa posição governamental possível, fez-se tanto dos conhecimentos acadêmicos, quanto das vivências nos projetos comunitários, bem como de uma inteligência seletiva de constituição de equipes. Hoje, já no quinto ano de gestão, Beth Rangel é uma das posições do governo Jaques Wagner que se mantiveram diante das mudanças, ao mesmo tempo em que se somam conquistas numéricas e qualificações do trabalho da Escola de Dança da FUNCEB, considerado por alguns como um destaque no governo estadual dentro dessa gestão.

Ato Branco

Esses atos em direção à implantação, apropriação e exercício da democracia brasileira fazem eco surdo no vazio das políticas municipais soteropolitanas, sobretudo aqui destancando a área da cultura. Na fala do Dia da Dança, o então recém nomeado presidente da Fundação Cultural Gregório de Matos, o jornalista Ipojucã Cabral, desculpa-se pelo vazio, ré-produtivamente ecoando os dizeres de anos anteriores: “não temos dinheiro!” E mais, constatando o vergonhoso montante da verba municipal que é destinado à cultura, em geral, na cidade.

O que me parece evidenciado nessa fala é que o presidente, representante do governo municipal, atrita com o próprio governo, constatando a inabilidade governamental do Poder Executivo. Coordenando a mesa, a vereadora Aladilce Souza, representante do Poder Legislativo e idealizadora dessa sessão, concorda com o atrito.

Ou, ou…

Seja, seja, seja…

Não sei bem ao certo, mas parece que dizendo para os outros (cidadãos da dança), o atrito é evidenciado, mas internamente (nas posições do próprio governo) o atrito é silenciado:

7 e 8…

7) o legislativo homenageia a dança, mas se silencia em seu trabalho fiscal do executivo, como ponderou Fernando Marinho, presidente do SATED-BA;

e

8) o presidente da Fundação Gregório de Matos, senhor Cabral, parece não reconhecer no âmbito de suas competências de gestão, o fato de além de receber dinheiro para movimentar as ideias de sua gestão, a necessidade de pôr-se nos atritos internos, ato político dentro da própria instituição governamental.

Inclusive, importa movimentar as ideias de gestão do então presidente para algo mesmo necessário, pois elas já estão cheias de atritos já em sua aurora. Uma das ‘grandes ideias’ citadas por ele foi a criação de uma Companhia Municipal de Dança. Ideia que parece realmente evidenciar um desconhecimento das questões e vivências da dança em nossa cidade, seja pelas dificuldades claras vividas pela já existente companhia oficial do Estado, além das diversas questões geradas, desde financiamento à representatividade artística, que isso tem criado para a classe e para a cidade num todo; e esse não é um assunto apenas local. Mas como as referências do gestor são europeias (pra não dizer o ultrapassado [?] eurocêntrico), deu para entender que é só uma questão de

des/conhecimento.

Afinal, diante disso, ele não só se pôs aberto, mas, assim como o Secretário de Educação, Cultura, Esp…, João Carlos Bacelar, convocou a classe para nos reunirmos no sentido de iniciar uma construção de fato: talvez algo lhes passou, algo lhes aconteceu, algo lhes sucedeu, tocou-os, afetou-os…

E, como na dança, depois do 7 e 8, inicia-se algo, ao alvorecer do mês da dança, pode se estar abrindo uma nova aurora para a dança no município de Salvador.

Esquecimento

Um dos poucos dizeres diante das reticências, em função do horário, na sessão da última quinta-feira, foi de Fernando Marinho, presidente do SATED-BA. A subida ao microfone foi também o surgimento da lembrança à mente do coletivo que ali se reunia. Sob o signo do esquecimento, o presidente deslizava por uma lista de compromissos e fazeres dos quais foi agente participativo, em nome da dança, e que não apareceu na fala de nenhuma das pessoas da mesa, muito menos no próprio convite de constituição da mesa como representante oficial da classe profissional da dança.

Como uma das relevâncias trazidas vigorosamente por Dulce Aquino (historicamente mobilizadora política da classe na cidade e no país) foi justamente sobre políticas de profissionalização da arte a partir do Ministério da Cultura, pareceu haver um contra-senso no discurso do coletivo.

Mas como é na falha do dito que se abre o caminho para o não-dito, a questão (re)surge para nós. E pergunta:

7) Será que esse esquecimento de um agente de participação ativo em nome da dança é a repetição des/conhecida daquele atravessante do desvalor, nomeado no texto anterior.

E ainda,

8) Sendo esse agente o órgão de representação oficial da dança enquanto profissão: será que os artistas da dança, que tanto clamamos por dinheiro (como foi feito nessa mesma sessão) não temos inserções mais satisfatórias na economia e na sociedade, porque ainda conhecemos nosso fazer muito mais pelo amor [amadores] do que pelo trabalho [profissionais]?

Ato de Convocação

Interseção de des/conhecimento e esquecimento: material de alicerce.

Não só as “Múltiplas Perspectivas da Dança”, como foi nomeada essa sessão de homenagem num ato caro da vereadora Aladilce Souza, mas as múltiplas vozes da dança, na virada democrática, parece também começar a constituir lugares comuns de diálogo. Para a firmeza desses alicerces tanto se dispensam cimentações radicais e inflexíveis quanto se demandam fertilizações e nutrições constantes no sei-o da comunidade.

L

O

G

O

Na segunda edição do evento Experiências Compartilhadas, da programação de dança do Espaço Xisto Bahia http://espacoxisto.blogspot.com/, ocorrida nesse abril, com Norma Santana e elenco de Sorria, você está na Bahia, em certo momento a coreógrafa dizia sobre suas intérpretes: “elas ficam morrendo de medo de errar!”

.

.

.

“… porque quando elas erram, eu digo: ‘isso, isso, pega isso ae, que ficou ótimo!’”

Como quem dança tropeça no contra-senso ou mesmo no dissenso dos dizeres, nasce a possibilidade de um novo percurso criativo para os tão desejados diálogos da dança enquanto comunidade e com o entorno que tanto nutrimos quanto pelo qual somos nutridos.

No tropeço de seus dizeres, a chamada de Cabral, presidente da FGM, parece apontar para uma chamada do conhecimento, essa razão do vivido que não apenas em uma ou noutra reunião se fertilizará e dará frutos, mas na convocatória desses que se sentem pertencentes da comunidade da dança. De modo que a mesma inteligência criativa que gera coreografias, possa ser investida para gerar formas de participação dos cidadãos da dança nas políticas governamentais.

T

O

D

A

V

I

A

Só escutemos o também chamado de conhecimento que nos fez Matias Santiago, ao comentar o último texto dessa coluna:

Vamos conversar? Vamos cruzar nossos desejos em prol do que seja comum a nós mesmos e ao nosso fazer? Vamos agregar as vozes que alcançam outras fronteiras às nossas vozes cansadas de tanto gritar nossos discursos ao mundo? Vamos conhecer nossos discursos? Vamos conversar? ?É o que eu desejo no momento (SANTIAGO, 2011).

Que o chamado do discurso, no trajeto, se metamorfoseie em fazeres… na continuidade democrática, eis a possibilidade de uma outra aurora em que desejos vão virando frutos na Comunidade da Dança.

REFERÊNCIAS:

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. In: Revista Brasileira de Educação, jan/fev/mar/abr, 2002, n. 19.

SANTIAGO, Matias. Comentário: DIZ, Puta… de CARNE… IÇAAA!!! Disponível em: https://idanca.net/2011/05/06/comunidade-chamada-ao-alvorecer-do-mes-da-danca/17701#comments. Acessado em: 30/04/2011.

Este texto teve a colaboração com intervenção crítica de Líria Morays (Artista da Dança e Doutorando em Artes Cênicas – PPGAC-UFBA).

# Siga o idança no twitter.