Product of circunstances / Foto: Tiago Lima
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Conectivos Críticos II (2011) – Pesquisa científica, pesquisa em arte e em dança

Um texto que eu não escrevi sobre Product of circumstances, de Xavier Le Roy

1. Sinopse

Product of circumstances é uma performance-palestra com uma hora de duração. Xavier Le Roy fala sobre o seu histórico no campo da biologia molecular, seu ingresso e um pouco da sua trajetória na dança, traça alguns paralelos entre esses dois campos. A fala é intercalada com projeção de slides e com momentos em que ele dança, ou se dedica a fazer certos movimentos sem significados específicos, mas que na maioria demonstram, de forma prática, certas partes da fala. Ao final, durante algum tempo, ele responde às perguntas dos espectadores.

2. Apresentação

Isso é basicamente tudo que eu tenho pra dizer aqui sobre essa performance. O Xavier é um artista experiente e emblemático na história da dança contemporânea. Existe uma vasta bibliografia sobre ele[i] e alguns textos sobre esse trabalho. E, além de tudo – e principalmente – a performance conta a que veio, ela carrega o seu próprio discurso, literalmente. E se alguém tiver alguma dúvida, ainda pode perguntar ao próprio Xavier no final, que ele responde tudo bem explicadinho.

Então, o que eu fiz foi deixar um link ao final pra baixar o vídeo da performance[ii], e também anexei o texto em português[iii]. Quem quiser, pode assistir e ler.

Aqui eu vou usar Product of circumstances como desculpa ou como ponto de partida pra falar de algumas questões que me parecem importantes agora, sobre pesquisa em arte e em dança, e que encontraram interlocução nesse trabalho, quando eu tive a oportunidade de assistir de novo, no Interação & Conectividade V.

3. Histórico

Conheci o Le Roy em 2004, quando ele ministrou um workshop na Casa Hoffmann, em Curitiba, e eu era bolsista de lá. Ele tratava de instruções como possibilidade de criação, um assunto que ficou reverberando no meu trabalho artístico por bastante tempo. No entanto, a impressão que ficou mais forte foi a que eu tive no primeiro dia, quando ele falou sobre colonialismo.

Ele não fez nenhum discurso longo. Simplesmente mencionou – sem a menor afetação e com bastante cuidado, como de costume – aquele contexto: um artista, francês, europeu, bem reconhecido, partilhando métodos de criação com jovens artistas brasileiros, curitibanos, naquele espaço. E usou esse termo mesmo: colonialismo. Ao cutucar essa circunstância inegável, acabou gerando uma discussão calorosa. Ninguém ali queria falar daquilo que, quando veio à tona, trouxe também vários afetos e desafetos. Eu pensei “Putz, que bom que ele falou isso”.

Só pra deixar claro, nem eu nem ele discordamos da importância da troca de conhecimentos entre pessoas, sejam elas de onde forem. Aquele período na Casa Hoffmann, em que nós, então jovens artistas curitibanos, pudemos conhecer métodos de criação de diversos artistas, na maioria europeus e estadunidenses, foi extremamente valioso, nos possibilitou uma abertura pra uma grande diversidade de perspectivas.

No caso do Le Roy, sei que tem sido um interesse dele nos seus projetos mais recentes promover diálogo entre artistas de diversos lugares, criando contextos diferentes para que isso aconteça. Trazer a questão do colonialismo, naquele momento, me parece agora uma estratégia de reconhecimento de território, uma tentativa de olhar com mais franqueza pro contexto político que vem grudado com qualquer escolha estética ou metodológica. Olhar pras circunstâncias.

Bom, daí que esses dias eu voltei à Casa Hoffmann pra assistir a uma mostra de processos dos bolsistas deste ano. Durante a conversa que veio depois da mostra, apareceram muitas questões sobre o que é pesquisa em dança, pesquisa em arte, o que cabe numa pesquisa. O tempo todo me passava pela cabeça essa comparação entre ciência e arte que aparece em Product of circumstances.

De pesquisa acadêmica, o que eu conheço bem é um bar que tinha na frente da universidade, que foi onde eu passei a maior parte da minha formação. Então, vieram bem a calhar as referências que o Xavier trouxe nessa performance, e é nelas que eu pretendo me basear aqui.

4. Justificativa e métodos

Product of circunstances / Foto: Tiago Lima

Product of circunstances / Foto: Tiago Lima

Porque pesquisa em arte é um assunto nebuloso. E, no caso da dança, que aqui no Brasil se entende como área de conhecimento há menos tempo que algumas outras artes, me parece que as pessoas ainda ficam mais na dúvida. No entanto, não é raro ver gente falando convictamente coisas como “isso é pesquisa”, “isso não é pesquisa”, e sempre fico com a pulga atrás da orelha. Quais são os parâmetros que a gente tá usando pra fazer esse tipo de avaliação? Eu sempre fico com a impressão de que a gente sempre usa parâmetro científico pra olhar pra pesquisa artística e nunca o contrário.

Percebam que eu não estou falando da arte como objeto de estudo acadêmico, ou pelo menos não só disso. Eu tou tentando pensar principalmente no tipo de pesquisa que tem como fundamento a prática artística, pesquisa em arte. E me parece que olhar pro campo científico não serve só pra trazer parâmetros de lá pra cá, mas também de questionar o que tem de específico nessa prática, de pesquisar em arte, com parâmetros artísticos. E talvez até de fazer o caminho inverso: produzir, em arte, parâmetros e modos de pesquisar que possam transformar outros campos do conhecimento, mudar o contexto político e mercadológico que atravessa esses campos, mudar o mundo, sei lá.

Então, o que eu pretendo fazer aqui é pegar algumas afirmações do Xavier sobre a experiência dele no campo científico, desdobrar um pouquinho, comparando com a situação da pesquisa em arte e em dança no Brasil, ou pelo menos no tanto de Brasil que eu conheço, propor algumas perguntas, praticamente nenhuma resposta, e ver no que dá.

5. Estudos de caso

5.1. Estudo de caso 1: “Carreira, poder, hierarquia”

Faz sentido que os parâmetros que vêm da pesquisa científica sejam os vigentes também na pesquisa em arte. Arte como campo de pesquisa é muito recente, um território inexplorado. O autor Silvio Zamboni, no livro A pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência[iv], situa o início disso, aqui no Brasil, em 1984, quando o CNPq abriu as primeiras bolsas pra essa área.

Agora me parece que essa data já traz subentendida uma ideia de que a pesquisa em arte só começa a existir no momento em que uma instituição reconhece isso. Mas será isso mesmo? Será que o Oiticica, por exemplo, não tava fazendo pesquisa em arte? E a Tarsila? E o Machado de Assis? E o Gregório de Mattos? E a Cacilda Becker? E o Noel Rosa? Qual deles fazia pesquisa, qual não fazia? Como dá pra saber? O que é que é pesquisar?

Mesmo sem poder responder a nada disso, fico pensando sejam as respostas quais forem, a sua validade depende de questões de carreira, poder, hierarquia: pessoas ou instituições têm mais ou menos aval para definir essas coisas, dependendo do poder que elas detêm. E definir essas coisas estabelece mercados, assim como formas corretas de proceder dentro desses mercados. Basear-se em “carreira, poder, hierarquia” é justamente uma questão que o Le Roy coloca a respeito do mercado da pesquisa científica. E eu me pergunto em que medida a gente, que pesquisa arte, consegue se diferenciar nesse aspecto.

Ele menciona uma discussão que teve com o diretor do laboratório onde trabalhava: Xavier não queria publicar os resultados de uma pesquisa, que achava irrelevantes, o diretor queria. “(…) Eu logo descobri que a experiência dele e sua posição social eram mais importantes do que qualquer argumento científico. As discussões raramente eram sobre questões ou problemas científicos, eram muito mais sobre carreira, poder e hierarquia.”

Eu reconheço que temos criado, na arte contemporânea brasileira, muitas formas mais flexíveis de hierarquia. Eu mesmo faço parte de uma comunidade de artistas que surgiu basicamente dessa preocupação e tenho visto diversas iniciativas parecidas. E, com hierarquias mais móveis, vêm também discussões artísticas mais complexas. É preciso argumentar mais e melhor com alguém que não tem que te obedecer.

No entanto, tem uma série de pequenas relações hierárquicas que vamos ignorando no dia-a-dia, e que não são menos opressoras porque são invisíveis. Tá no academiquês que a gente usa pra escrever o projeto, no dvd que eu mando pro festival, sem edição, com câmera parada, porque foi assim que eles pediram. Tá no jeito que eu optei por escrever a minha monografia, na logomarca que eu coloquei em cima de tudo, bem grandona, no meu cartaz. Na maneira de nos relacionarmos com orientadores, curadores, avaliadores, críticos, produtores, gestores culturais. Na maneira de nos opor, aceitar ou ainda ignorar convenções.

A meu ver, no nosso caso, de quem pesquisa em arte, as discussões também são permeadas por essas relações hierárquicas e de poder. E, muitas vezes, com o simples gesto de aceitar, contradizer ou até ignorar uma convenção, estamos sobrepondo uma relação de poder a um argumento artístico – termo que eu tou inventando aqui e cujo significado eu desconheço.

Mas o Xavier fala em argumento científico, ele reclama que as discussões não eram feitas de argumentos científicos, mas sim de questões de poder. O que eu pergunto aqui é: será que investigar o que seria um argumento artístico, no nosso caso, não é também descobrir novos jeitos de nos relacionarmos com poder?

5.2. Estudo de caso 2: “Publicar ou perecer”

Falando dessa mesma situação, o Xavier menciona esse mote, segundo ele, conhecido no meio científico: “publish or perish”, “publicar ou perecer”. O cientista que não publica o seu trabalho é esquecido. E isso determina a sobrevivência do cara. Da publicação dependem também as verbas que ele vai obter ou não pra fazer novas pesquisas, conseguir emprego, depende a possibilidade de continuar trabalhando.

No mercado de arte, também dependemos constantemente de visibilidade para sobreviver. E, no caso de artes como a dança, eu me perguntei qual seria o nosso equivalente para a publicação. A primeira resposta que veio foi: a obra – seja ela uma peça, um performance, uma vídeo-instalação, tanto faz. A nossa pesquisa ganha visibilidade ao gerar uma obra, e isso é que nos permite continuar trabalhando.

É, de fato, dessa forma que o nosso mercado se organiza, de um modo geral. É a obra que gera a visibilidade, faz com que eu vá de um festival para outro, que eu acumule experiências no meu currículo e possa realizar novos projetos. Não é assim?

No entanto, observando os artistas-pesquisadores que eu conheço nessa área e os projetos que eles desenvolvem, eu fico pensando se todas essas pesquisas que viraram obra realmente precisavam disso. Será que o único desfecho possível para uma pesquisa em dança é uma obra?

Pergunto isso, porque eu também, muitas vezes, me vejo enredado nessa situação. Como fazer uma obra de um processo de pesquisa que não chegou exatamente nisso? Alguma conta eu tenho que prestar, algo eu tenho que mostrar, não só pra provar que foi um dinheiro bem investido, mas também para que o meu trabalho não fique limitado só à minha experiência, pra que outras pessoas tenham algum tipo de acesso a ele.

Agora, será que a minha pesquisa é necessariamente acessível por meio de uma obra? Será que não existem também outros jeitos de partilhar?

5.3. Estudo de caso 3: “Qual é o significado de resultados estatísticos?”

Porque essas questões me levam a perguntar a que se presta uma pesquisa em arte se, como eu estou supondo aqui, não se destina necessariamente a produzir uma obra ou a ser publicada. Então pra que e pra quem serve esse conhecimento?

Um destinatário óbvio é o próprio artista, que pode usar o próprio conhecimento em novos processos, na construção de outras obras, na própria vida. Ou também outros artistas, que podem acompanhar a pesquisa, de algum jeito, aprender alguma coisa com tentativas, erros, referências e métodos.

Não sei direito o porquê, mas eu não fico muito satisfeito só com isso. Seria justo, adequado: assim como a pesquisa acadêmica gera conhecimento acadêmico, a pesquisa em arte gera conhecimento artístico.

Mas não é simples assim. Esses campos não são assim tão separados, eles se cruzam o tempo todo. Arte como objeto de estudo acadêmico, ciência como fonte de referências para pesquisa em arte – esses são os cruzamentos mais comuns. Só que eu acho que pode ter mais que isso.

E me parece que a gente, da pesquisa em arte, ainda não sabe direito nem como tirar proveito desse conhecimento artístico, nem como disponibilizar a informação que produz. É num blog? Numa publicação? Num dvd? Fotos? A gente busca esse tipo de material quando está pesquisando alguma coisa? A gente pensa em torná-lo acessível a outras pessoas, de outras áreas? Como fazer isso?

Muitas vezes, em nosso meio, a gente usa a pesquisa para validar a arte como campo de conhecimento, e por isso a desatenção com esse conhecimento produzido chega a ser assustadora.

No caso da pesquisa científica, as coisas estão muito bem instituídas. Existe um certo tanto de publicações, todas atendendo a um formato mais ou menos semelhante, indexadas e prósperas, e é nelas que eu vou encontrar o material que eu preciso, por exemplo, quando vou estudar a relação entre oncogenes e câncer de mama, tema da tese do Xavier, quando trabalhava como pesquisador em um laboratório.

Os resultados da pesquisa dele, mesmo que irrelevantes, podem servir como ponto de partida pra outro cara que esteja começando um estudo sobre esse tema, pra uma revisão da literatura, por exemplo.

Em arte, a gente lida com um material muito diferente em natureza, que não necessariamente vai dar pra medir contando ou pesando, e que não necessariamente pode ser medido. Mas que também tem tentativas e erros e, se tem erros, é porque também tem resultados.

Agora, também é o caso de perguntar aqui: o que são resultados em arte? E será que podemos ser fiéis aos nossos resultados, assim como um cientista – pelo menos em tese – deveria ser fiel aos resultados que obtém? No caso que ele menciona, havia o objetivo de encontrar uma relação entre um tipo de gene e uma doença.

Em arte, os objetivos não são sempre claros assim. Às vezes se parte de uma referência, uma imagem, um desejo, uma raiva, perguntas, os objetivos vão se modificando, sendo deixados de lado, dando espaço pra outras coisas. Como ser honesto com esse processo na hora de partilhar os resultados?

Em um dado ponto, após três anos de uma pesquisa, que não deu em nada, na área da biologia molecular, Le Roy se perguntou: “Podemos confiar em estatísticas? Qual o significado de resultados estatísticos?”. E, se em arte, os resultados estatísticos não são necessariamente o jeito de entender uma pesquisa, eu pergunto: como reconhecer os nossos resultados? Como a gente sabe no que confiar?

6. Conclusão

Optei por esse formato abeenetesco meio como uma paródia, e também uma alusão ao fato do Xavier ter escolhido uma palestra pra performar a sua experiência. Agora, me assusta o fato de eu conseguir fazer isso com tanta facilidade – mas não me surpreende.

Não surpreende porque eu sei que de objetivos, justificativa e métodos depende o meu aluguel, meu supermercado, minha cervejinha. Tanto no meu trabalho em arte, como nos vários anos em que eu trabalhei na área de letras, traduzindo, revisando, escrevendo a linguagem científica, assim como uma certa maneira de raciocinar que vem junto com ela, representaram um meio de acesso ao mundo, à minha sobrevivência. Mesmo com uma carreira acadêmica curta, relapsa e inconstante, essa maneira de entender, analisar e categorizar informação faz parte de mim.

Mas me assusta, porque isso, de certa forma, destoa do que eu busco em arte: jeitos criativos de lidar com coisas cotidianas, subversão, questionamento, resistência, subjetividade partilhada, autonomia. Me assusta não porque eu considere o academiquês, ou a academia, ou a ciência como monstros opressores, mas porque talvez eu esteja me dedicando menos do que eu deveria ao meu trabalho, que é o de pensar e experimentar em arte, produzir conhecimento de um outro modo, com outros parâmetros, outros métodos. Mais do que um produto das circunstâncias, também ser capaz de produzir circunstâncias, modificar sensivelmente o que está em volta.

Por isso a insistência nesse tipo de questão, porque me parece que é entendendo melhor a natureza desse conhecimento que se produz em arte, que se pode fazer com que ela chegue a outros lugares, modifique estruturas sociais, saia dos meios aos quais ela está circunscrita.

* Com agradecimento especial à Paula Lice.

Gustavo Bitencourt é diletante profissional, nascido e residente em Curitiba, Paraná. Formado em Letras pela UFPR e atuando constantemente em diversos campos artísticos, tem na indisciplinaridade uma das principais características de seu trabalho. Trabalha como ilustrador, designer gráfico, redator e tradutor, performer, ator, diretor de teatro, crítico, compôs trilhas para teatro, dança e vídeo. É integrante do Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial.


[i] Sobre o Xavier Le Roy, pra quem lê em inglês, eu recomendo ler também esta auto-entrevista, que tem no site dele: http://www.xavierleroy.com/page.php?id=a55579f8a1306fbd89389d01068b6e571a686728&lg=en. Não tem tanta relação com o tema proposto aqui, mas a iniciativa de uma auto-entrevista, bem como o projeto e.x.t.e.n.s.i.o.n.s, do qual ela faz parte, acho bem relevantes.

[ii] O link para o torrent é: http://www.unfriendly-takeover.de/f14_Videos.htm Para baixar o vídeo, precisa instalar algum cliente torrent. O que eu uso é esse aqui: http://www.bittorrent.com/intl/pt/

[iii] Link para o texto da performance

[iv] (ZAMBONI, S. Pesquisa em arte – Um paralelo entre arte e ciência. Campinas: Autores Associados, 1998) Embora eu discorde profundamente da abordagem que ele traz de pesquisa em arte, acho uma referência importante pra quem se interessa pelo assunto.

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