Self unfinished / Foto: Katrin Schoof
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Conectivos Críticos II (2011) – Sobre ‘Self unfinished’

Salvador, 13 de Junho de 2011.

Querido diário,

Acabei de chegar do teatro! Assisti ao espetáculo Self Unfinished, do artista francês Xavier Le Roy. Foi uma oportunidade incrível ver o trabalho, ainda mais na Bahia! Isso aconteceu graças à iniciativa da galera do Dimenti, que produziu o quinto Interação e Conectividade, projeto de intercâmbio artístico com apresentações, debates e residências. A programação incluiu, também, um outro trabalho dele, o Product of Circumstances (1999), além de uma conversa pública, em formato de entrevista, que foi chamada de Tête-à-Tête.

Self Unfinished (assista aqui) foi apresentado pela primeira vez numa cidadezinha do interior da Alemanha em 1998 e, na época, chamou muito a atenção e foi praticamente um divisor de águas no panorama da dança contemporânea européia (junto com outras produções), justamente por ampliar a discussão sobre os movimentos do corpo e por trazer à tona as relações entre arte, ciência e mídia. Levei meus alunos do primeiro ano do curso noturno de Bacharelado em Dança, da Universidade Federal da Bahia, e muitos deles sequer imaginavam que dança também poderia ser isso. Nós lemos o ótimo texto “Que morram os artistas”, escrito pelo coreógrafo Jérôme Bel (publicado no Lições de Dança 4), que é amigo e parceiro de Le Roy, o que foi bastante útil por se mostrar um recurso reflexivo proveitoso e pedagógico. Jérôme analisou o espetáculo a partir de suas três cenas que ele denominou de “o robô, os monstros, o morto”.

Para criar “Self Unfinished”, Xavier Le Roy contou com a colaboração do fotógrafo francês Laurent Goldring. Dá mesmo para perceber que o espetáculo tem relação com as artes visuais e quando você vê, por exemplo, imagens do espetáculo no MoMA, dentro da exposição On Line: Drawing Through the Twentieth Century, fica ainda mais fascinado e logo pensa no cubo branco. No espaço asséptico, os movimentos são instantâneos em P&B: da Polaroid (nossa retina), imagens se formam e se revelam pouco a pouco, sem pressa.

Xavier diz que “a peça, em princípio, não é atrativa”: é silenciosa, lenta e requer concentração do espectador que, aliás, também faz parte da experiência ao levar adiante o fato inconteste de que o observador interfere naquilo que é observado: imagens ganham vida diante de seus olhos. Isso combina com a famosa frase de Marcel Duchamp: “são os espectadores que fazem o quadro”. É impossível não ver algo que não está ali: o corpo de Xavier não é mais humano. Jérôme Bel, por exemplo, viu “um homem sem cabeça, uma cabeça de elefante, um frango pronto para assar, um batráquio”. A esse respeito, o simpático criador disse: “eu não faço imagens mas trabalho com o que pode se tornar visível”. A dança, nesse caso, se torna um “dispositivo de visibilidade”.

Uma espécie de mecanismo de visibilidade também se fez presente durante o processo de criação através do uso de uma câmera de vídeo. O artista se filmava enquanto fazia movimentos, depois parava e assistia. O ato de ver foi, dessa forma, um procedimento indispensável para constituir esse discurso em dança. Para ele, o trabalho “é sobre a figura humana e as transformações do meu corpo através do movimento e através do modo como meu corpo aparece como sendo alguma coisa outra que um ser humano”.

Self unfinished / Foto: Katrin Schoof

Self unfinished / Foto: Katrin Schoof

No meio do branco, Xavier está sentado na mesa, com ar de professor de biologia molecular (para quem não sabe, ele é PhD na área). Ele levanta, atravessa o palco e liga o aparelho de som. Liga? Não sai barulho nenhum. Volta a sentar com as mãos na mesa. Começa, então, a se mexer fazendo barulhos. Era um movimento de cada vez e seu corpo parecia estar separado em partes. Lembrou-me um robô antigo, um corpo-máquina. Xavier contou que nunca quis representar um robô. Sua proposta foi a de fazer movimentos com sons, sem que um começasse antes do outro. E ponto. O resto ficou por nossa conta.

Uma das coisas que me intrigou sobremaneira foi o fato do artista ter conseguido manter em repertório a coreografia por contínuos 13 anos! E, ainda continua atraindo muito interesse. Ele disse que pretende continuar apresentando “Self Unfinished” enquanto seu corpo permitir e enquanto for possível driblar as pressões do mercado por produtos inéditos. Curiosamente, ele tem conseguido. Em parte, por sua postura diante desse mesmo mercado, em parte pela “portabilidade” da obra. Quer dizer, por se tratar de um solo, com poucas exigências técnicas, facilita sua apresentação mundo afora. Além do mais, essa facilidade leva a outra, como foi o caso deste evento, que viabilizou a apresentação do seu outro solo para o público baiano.

Ele “desliga” o som. Anda de costas em câmera lenta como se estivesse “rebobinando” o movimento de andar. Ele vai até a mesa, senta, levanta, volta e pára na parede. Deita de costas para nós, como se estivesse deixando a parede entrar em seu corpo. Fica lá um tempo. Levanta e vem atravessando o palco, ainda andando de costas. Desce o tronco e retira os all star. Seu corpo se transforma completamente. Duas pernas? Bicho de patas? Aranha? Vai explorando o ambiente, passa por baixo da mesa. Engraçado! Pessoas riem. A roupa agora é um vestido tubo preto (era da sua ex-namorada). Ele afasta os dedos das mãos com os dedos dos pés, mão direita, pé esquerdo. Outro corpo surge. Numa posição pouco comum e desconfortável, ele se desnuda. Desloca-se nessa posição, vai até debaixo da mesa e chuta o tampo. Depois, com os pés, vira a mesa de cabeça para baixo. Ele vai se vestindo e parece um “de trás para frente”. Onde começa, onde termina? Ele se desmantela e depois se reconstrói. Coloca a mesa no lugar e se senta como no início. Parece metódico e controlado como um cientista. Levanta, liga o som, sai da cena e deixa a música rolar.

Eu prometi que levaria Xavier para conhecer a Feira de São Joaquim, em Salvador. Só que não deu tempo. Mas eu entendi; nada está terminado ou acabado. Sempre é possível ver as coisas de um modo diferente.

* Crítica de dança e professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. mairaspanghero.wordpress.com

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