Vestígios / Foto: Tiago Lima

Conectivos Críticos 2012 – Corpo como Resistência

Em uma parceria entre o Portal Idança e a Dimenti Produções Culturais, segue a publicação do terceiro texto do Conectivos Críticos 2012, que reúne cinco textos selecionados em convocatória pública que tratam de alguma obra ou processo artístico apresentado no Encontro de Artes Interação e Conectividade VI, realizado de, 30 de maio a 03 de junho, em diferentes espaços de Salvador (BA). Os textos inscritos foram feitos por estudantes, acadêmicos e livres pensadores, que testaram relações entre palavras, imagens e modos de escrita num movimento reflexivo e performativo.

Corpo como resistência que distingue e une duas danças

O filósofo italiano Giorgio Agamben disse: “a necessidade não tem lei”.

Boaventura de Souza Santos, sociólogo português, lembra-nos: “Não há uma maneira única ou unívoca de não existir…”

Como, então, pensar a condição humana, suas necessidades, memórias e existências, quando temos o corpo como local de resistência?
Dois trabalhos de dança, apresentados no Interação e Conectividade VI, em Salvador, no mês de junho de 2012 colaboram nesse sentido. VestígiosMatadouro. Neles há parecenças. Aquilo que pode ser e que, de algum modo, já é. Entender o que nos distingue é o que pode nos unir, e não nos separar, segmentar, ajuda-nos a estar juntos, a articular comuns.

Como, então, podemos dançar com eles juntos, criticamente?

Vestígios: um corpo submerso por uma areia fina que, delicadamente, move-se para mostrar um existente oculto, ocultado. Imagens que lembram dunas, areais, desertos litorâneos, contagem, tempo, ampulheta, sons de gente, de coisas, da natureza. Imagens que videografam o real e ficcionalizam, e nos desloca naquilo que a obra evoca e nos convoca. Memórias de corpos testemunhos de algo não testemunhável: a morte.

Vestígios / Foto: Tiago Lima

Vestígios / Foto: Tiago Lima

Matadouro: um latido de cachorro ao fundo na cadência de um tambor que ressoa um chamamento de corpos armados com facas e individualidades para um batalha pulsante neles próprios, a desenhar um mantra coreográfico e mestiço. Uma pausa que desestabiliza. Depois um circulo de passos individuais a ser escrito no tempo/espaço. Um campo de batalha a ser inscrito pelos/nos corpos em uma vigília coletiva: a vida.

Nesse movimento, o que pode aproximar duas danças em suas políticas do corpo é ser e estar politicamente engajado no que dançamos.

O filósofo francês Edgar Morin nos inspira mais um pouco:

“É preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus : o que é tecido junto”.

São, assim, duas obras de dança que nos possibilita comungar da rede de relações que faz um corpo que dança existir enquanto pergunta do/no mundo.

Vestígios, de Marta Soares (SP), é um solo feito de um silêncio de muitas vozes; e ainda, “o corpo como testemunho”, como prefaciou a pesquisadora Christine Greiner no folder do trabalho.

Matadouro, de Marcelo Evelin / Demolition Inc. & Núcleo Dirceu-PI, é um agrupamento de gentes que tensiona individualidades; e ainda, “corpo como campo de batalha”, diz o título da crítica de Helena Katz para o jornal Estadão.

Percebamos, ainda: são corpos de resistência, é nosso palpite.

A resistência como um dispositivo, um jeito, um arranjo, muitos jeitos, tantos arranjos. Um corpo que resiste é mais que um sobrevivente. Torna-se  testemunho dele próprio. Traz a hipótese da desistência não como fraqueza, mas, sim, como força, fortaleza, insistência, que tem seus pontos frágeis e, ao assumi-los, encontra modos outros de não sucumbir.

Os dois espetáculos tem, assim, o corpo como local de embate. Um silêncio epifânico numa intensa solenidade questiona-nos sobre que corpo é esse que insiste em permanecer quando resiste. Organizam-se como danças que tem a performance artística como estratégia que “destrói” verdades prontas.

Há pulsão de vida e morte, de morte e vida, em suas tessituras dramatúrgicas. Convocam o corpo dito humano para não mais negar sua condição, sua natureza, sua finitude.

Matadouro e Vestígios colocam-se abertos, ou seja, “criticáveis”, quando são, em certa medida, legitimados por bons olhares críticos e teóricos, como também legitimadores dessas tentativas da escrita crítica.

Nessa articulação do que parece comum, que não se basta aqui, há um revezamento interessante entre dança, crítica e teoria. Justamente para entendermos que a crítica não substitui a obra, mas com ela se relaciona; e ainda, que o fazer da crítica nasce do labor do fazer ver da teoria.

Pois, quando temos o corpo como resistência que distingue e une (essas) duas danças, não há como não sair ileso dessa experiência. Há?

Joubert Arrais é artista-pesquisador e crítico de dança. Doutorando em Comunicação e Semiótica (PUC/SP) e mestre em Dança (PPGDanca/UFBA), com formação artística pelo Centro Em Movimento (c.e.m/Lisboa). Escreve no enquantodancas.net.

Referências Bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio (2004). Estado de Exceção. São Paulo: Bomtempo.

MORIN, Edgar (2003). A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

SANTOS, Boaventura de Sousa (2006). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo: Cortez.

KATZ, Helena. O corpo, campo de batalha. Jornal O Estado de São Paulo (Estadão). São Paulo, 06 de dez.2010. Caderno 2