Desenho / Foto: João Milet Meirelles

Conectivos Críticos 2012 – Desenho

Em uma parceria entre o Portal Idança e a Dimenti Produções Culturais,  segue a publicação do segundo texto do Conectivos Críticos 2012, que reúne cinco textos selecionados em convocatória pública que tratam de alguma obra ou processo artístico apresentado no Encontro de Artes Interação e Conectividade VI, realizado de, 30 de maio a 03 de junho, em diferentes espaços de Salvador (BA). Os textos inscritos por estudantes, acadêmicos e livres pensadores, testaram relações entre palavras, imagens e modos de escrita num movimento reflexivo e performativo.

DESENHO – Espaçar com subjetividade

Uns sapatos levados por um homem entram no espaço. O homem manipula umas folhas de papel com fita adesiva; desenha seu corpo nas folhas com seu corpo como modelo, não utiliza um lápis, utiliza um bisturi. Este movimento, desenhar o corpo, se transforma em uma ação com carne e sentidos. O bisturi, que para os espectadores, pode cortar qualquer coisa, passa tão perto do corpo do homem que nos esquecemos do desenhar e imaginamos o ferir, o danar, o querer morrer. Mas nem aí se fecha esta ação, pois a suavidade do percorrido do bisturi pelas folhas só deixa pensar nestes verbos (ferir, danar, morrer) como uma brincadeira com a vida. Surpreendentemente o homem levanta das folhas seu corpo de papel, com a mesma suavidade com que desenhou. No espaço temos um corpo de carne, outro de papel e um terceiro que não posso dizer se é corpo ou espaço do corpo, corpo em negativo ou não corpo. No espaço o homem com o bisturi cria um terceiro corpo, quarto corpo, quinto corpo e um coração, partindo sempre do anterior. No entanto a primeira imagem, o homem com sapatos e a última, o coração, são os únicos que ficam inteiros, os quatro restantes que habitam a horizontal perto do público, ficaram com um vazio no meio, um vazio que não cala senão fala do parir, do criar, do reproduzir.

Uma mulher que me lembra a imagem de Frida Kalho brinca com o papel, a fita adesiva e o corpo do homem dos sapatos. Ela esculpe com o corpo do homem e o papel, e numa admirável ação que supera qualquer tecnologia de espetáculo, duplica o corpo do homem com sapatos. Este novo homem de papel fica no espaço, pensado para onde ir, sua posição só espera o momento indicado para pular e habitar um novo espaço. No entanto, fica no seu lugar, se exibe como uma peça escultórica que engana os olhos dos espectadores, ele parece rocha, pesado, forte, ainda que os espectadores saibam que é ligeiro e mole.

O espaço começa a existir com outras ações que acontecem. A mulher Kalho, como o rastro dos corpos de papel, deixa seus próprios traços; com ligeira velocidade seus passos atravessam uma diagonal e no caminho deixa intermitentes linhas brancas; em outro momento, seu corpo no chão como casulo se transforma numa borboleta; os abraços que ela dá para uma das paredes do cenário se tornam asas nascidas de suas costas.

As ações anteriores tem a fita adesiva como ferramenta; o homem dos sapatos e a mulher Kalho a manipulam de jeito que superestimam o instrumento; a fita é tão rápida, ligeira e contundente no seu traço que dá vontade de manipulá-la e desenhar com ela; além disso, o som no seu acionar proporciona-lhe uma personalidade eficiente  –  devo admitir que minha existência neste mundo de máquinas se humaniza assustadoramente, pois já conferi qualidades humanas ao som dos objetos.

No espaço a mulher Kalho e o homem dos sapatos pintam e esculpem, a fita adesiva é o pincel e o papel é a argila; o espaço fica animado pelos traços e as imagens que agora moram nele. Estes objetos que preenchem o espaço não somente o residem, também oferecem um espírito, uma presença, uma personalidade. O espaço que inicia com a cor preta não deixa ler nada, só reafirma a convenção teatral da não interpretação, apoia os novos elementos que se realçam sobre ele; o cenário se transforma numa espécie de circuito, de rota, de caminho; o homem e a mulher tem transformado o espaço num lugar que da vontade de habitar; além da necessidade de observar os rastros, nasce a necessidade de utilizar os objetos, os corpos e o papel, a fita, os traços, o bisturi.

Desenho / Foto: João Milet Meirelles

Desenho / Foto: João Milet Meirelles

O espaço-lugar ganhou vida com as ações dela e dele. Eles deixam ver o espaço morto, inexpressivo, que é utilizado como contentor de coisas, cujo paradoxo ontológico é ser vazio, como o espaço que possibilita a configuração, como o local que contém os corpos onde ao mesmo tempo criam o espaço e o lugar para cada uma de suas criações. O espaço só existe enquanto que a mulher e o homem obram sobre ele. Em Desenho temos um espaço que responde à utilização subjetiva e é assim como existe. Enquanto que a mulher Kalho e o homem dos sapatos experimentam nele, o espaço nasce. O espaço deixa de ser o vazio que se preenche de coisas, para ser o habitado, o experimentado, o vivido. Assim “Não há mais espaço que aquele que é vivido subjetivamente” (PERAM, 2010). Estas duas pessoas apresentaram um espaço que pretendia ser objetivo para torna-lo num fértil panorama subjetivo.

Além de criar este espaço-subjetivo, este também é espaçado. “Espaçar é a liberação do local” (HEIDEGGER, 1969). O cenário se transforma em algo mais que um museu e um teatro; ao final da peça a mulher Kalho e o homem dos sapatos convidam, com um gesto limpo e gostoso, a entrar no espaço. A vontade de entrar no espaço, levantada por eles em nós é liberada depois da construção-animação dele. O teatro é liberado enquanto limite entre atores e espectadores e é liberado como museu enquanto barreira entre obra e observador; nos dois casos, espectador e observador abandonam seu estado passivo para ativar todas as vontades acordadas pelos primeiros atores; os dois lugares, abertos nesta encenação (museu-teatro), ficam liberados de suas originais e limitantes funções, para acrescentar seu ser no mundo. “Espaçar é atuar sobre os sites, em que um deus aparece; locais onde os deuses fugiram, locais onde atrasa o aparecimento da divindade” (HEIDEGGER, 1969). Já não existe a divindade no plano do prazer afastado, existe a divindade vivida, com experiência, a divindade que foi criada por humanos para o disfrute da humanidade.

 

Maria Fernanda Bonilla é atriz colombiana. Atualmente é mestranda do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA; pesquisa o tema do treinamento para atores na rua. Tem trabalhado em diferentes companhias de teatro e dança. Desde o 2003 trabalha no grupo colombiano Vendimia Teatro onde tem realizado temporadas internacionais e nacionais, encontros de teatro e seus trabalhos tem sido premiados. Também tem experiência na educação social, sindical e de gênero.