Vestígios / Foto: Tiago Lima

Conectivos Críticos 2012 – Vestígios

Em uma parceria entre o Portal Idança e a Dimenti Produções Culturais, segue a publicação do quarto bloco do Conectivos Críticos 2012, que reúne cinco textos selecionados em convocatória pública que tratam de alguma obra ou processo artístico apresentado no Encontro de Artes Interação e Conectividade VI, realizado de, 30 de maio a 03 de junho, em diferentes espaços de Salvador (BA). Os textos inscritos foram feitos por estudantes, acadêmicos e livres pensadores, que testaram relações entre palavras, imagens e modos de escrita num movimento reflexivo e performativo. 

Em seguida confira dois textos escritos sobre a performance Vestígios de Marta Soares.

Vestígios

Por Paola Vásquez

Entrou na sala. Tinha umas 30 pessoas lá dentro. Tinha ganhado o convite de uma amiga que ainda não havia chegado — Aquela Rebeca… sempre atrasada. Ninguém merece! — Teria que entrar sozinha. Não tinha jeito. Mas depois Rebeca ia ter que lhe dar uma boa explicação.

Foi penetrando a sala. Havia uma mesa e um monte de areia em cima. Dois telões na parede. Era meio assustador entrar numa igreja na penumbra. Mas todo munda estava lá e olhava pro monte de areia, então, fez igual. Só aí reparou que havia também um ventilador que soprava a terra pra fora da mesa — Que estranho — pensou. Ficou olhando, olhando, olhando… — E aí não acontece nada não? — Era engraçado observar todo mundo examinando aquela areia toda circulando o ar. Começou a observar as paredes da igreja. Pedra. Um altar no fundo. De repente ouviu uma exclamação.

Voltou o atenção para a mesa. Todos miravam algo muito interessante em cima do móvel: uma pedra. Embaixo da areia tinha uma pedra! As paredes eram de pedra. A mesa era de pedra. O chão era de pedra e embaixo daquela enormidade de pó havia uma pedra. Estava feliz porque começava a entender alguma coisa. Afinal o que é a areia senão um punhado de pedrinhas minúsculas?

Reparou que o chão começava a se encher de um branco suave. O ventilador ia escorrendo os grãos pelo terreno e tudo ali parecia flutuar em nuvens, como num sonho. O branco do piso ia
aumentando e a brisa soprava como se quisesse dilatar o tempo, estender a vida. Como uma
ampulheta que trabalha infinitamente pra um lado só. Até que era bonito. Legal de olhar. Sentiu que começava a ficar nauseada, equilibrava-se no vento e sentia o coração flutuar. Sentiu também uma vibração na bolsa. Era o celular — Alô. Rebeca? Isso é hora de chegar? Não posso falar, tô aqui dentro. Depois a gente se fala. Tá bom, pode ir. Thau.

Então viu o que não queria acreditar que estava vendo. Não eram pedras. Eram pés. Se desenhava, diante de seus olhos, um alguém soterrado pela areia. Uma pessoa viva que de livre e espontânea vontade se meteu embaixo da terra — Porque diabos alguém, em sã consciência, vai enterrarse?!?!??! — Lembrou, então, que tinha muito medo da morte. Não queria morrer de jeito nenhum. É claro que sabia que isso algum dia iria acontecer mas isso era para “um dia”. Não agora. Ainda não tinha se casado. Ainda não tinha filhos. Ainda não tinha viajado pra todos os lugares que imaginava conhecer. Seu pai sempre lhe falava dos lugares que tinha ido. Era bom ouvira voz dele. Mas seu pai já havia morrido. Estava enterrado.

Um corpo sepultado. Jogado. Abandonado. Como se estivesse há muito tempo a espera de algo que ainda não chegou. Cansado. Ao léu. Largado ali há muito tempo. Esquecido por todos. Como se os anos já estivessem acostumados a passar por aquela figura sem sem notar. Um corpo desamparado. Só. Lembrou do Renato. Tinha 40 anos e ainda não não era casada. Tivera alguns pretendentes mas não tinha paciência com namoricos. Era uma coisa que dava muita dor de cabeça, costumava afirmar. Mas invejava suas amigas casadas. Pareciam tão felizes em com seus filhos e castelos encantados. Ficava triste quando se lembrava como terminou o Renato. “Ele simplesmente foi embora!!! Disse que gostava de mim mas não aguentava mais, que eu só me preocupava comigo, que eu era muito ciumenta, que eu não sentia a mesma coisa por ele….. mas que o problema não era comigo….”. Depois de um tempo, o Renato resolveu a questão de amor não correspondido. Foi visto visto, na semana seguinte, com Suzana, uma amiga do trabalho.

Mais um pouco da areia saiu. Percebe-se agora que de fato, é uma mulher. O corpo fazia uma grande e sinuosa curva no quadril. Não tinha dúvidas, era uma mulher mascarada pela areia!! Por que as mulheres se escondem?? Quando era mais jovem queria ser homem. Homem não menstrua, não fica grávida, não tem obrigação com a casa, marido, filhos. Homem é livre. Lembrava da mãe que dizia — fecha as pernas que moça bonita não se comporta desse jeito. Isso são modos?!  — Que  raiva!! Porque que tinha que usar saia!?!?! Homem não tem esse problema. Ao contrário! Se arreganhar as pernas e mostrar o pênis na rua, é normal. Coisa de homem. Mulher precisa se esconder, se preservar. Com o tempo se acostumou a usar saia. Ter modos. Com o tempo se acostuma a tudo.

Tempo era o que mais tinha naquela sala. Precisava de paciência pra assistir. Ter concentração. Nem tinha visto que uma parte do ombro começava a aparecer. Mas também era meio distraída. Não reparava direito nas coisas. Seu apelido no colégio era ‘manteiga derretida’. E quando tudo dava errado, chorava. Sempre funcionava. Acabava que conseguia as coisinhas que queria. Agora não dava mais pra chorar por tudo. Tinha 40 anos. Não pegava bem. Usava outras máscaras.
A mulher da mesa já estava quase toda descoberta mas mantinha o rosto escondido. mascarado pela pela areia que não caia daquele lado. Mas porque aquela mulher se ocultava?

O que ela guardava?

Porque se enterrar? Quais as marcas, os traços, os sinais daquela vida obscura, não revelada,
envolvida em um manto de matéria volátil? Porque se encobria? Fugia de quem? Fugia de quê? Qual identidade daquele corpo? Era jovem? Velho? Acreditava em quê? Tinha religião? Gosto? Pensava? Vestia-se de mistério.

Quando a porta se abriu percebeu que era o momento de sair. Mas queria ficar uma pouco mais. Depois de revelar o corpo como não descobrir o rosto? Quem era ela? De súbito percebeu a resposta. Milhares de cigarras cantaram no seu estômago. Olhou pra baixo e viu os próprios pés enterrados na areia que, que aos poucos, caiu sem ninguém perceber. Pensou: “a mulher em cima da mesa não se cobre, se desnuda”. Olhou de novo pra ela e outra vez para a porta. As pessoas saiam. Iria fazer igual? Seus pés permaneciam enterrados, mortos, e a areia não parava de cair. O tempo continuava passando.

Então, finalmente, saiu pela porta. Já tinha parado de chorar.

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Sobre o tempo e o risco dos que se arriscaram…

Por Bárbara Muglia

De 30 de maio a 3 de junho de 2012, Salvador foi sede do Interação + Conectividade 6, sede de encontros de pessoas dispostas, sensações, reflexões, dizeres… O néctar alimentou ânimas, a minha ânima, a minh’alma. E alimentará este “conectivo crítico” cujo protagonista não seremos nem eu nem você, sequer as obras lá partilhadas, mas o TEMPO.

O tempo que a previsão não conseguiria prever tão variável e o relógio não imaginaria ser possível alterar, suspender, entrecortar, deixar passar, agarrar, largar, rejeitar, precisar, preencher, esvaziar.

O tempo impreciso precisado para perceber. Detalhes.

O tempo que leva um grão de areia pairar no ar.

O tempo que leva um corpo enterrado se revelar.

O tempo. Um corpo em movimento ao olhar daquele grão de areia.

O tempo que des-cobre o “vestígio” atrai olhos, corpos-olhos. Olhos colados num dedão do pé. Algum olho desatento leva um dedo a abrir caminhos por entre os grãos de areia. Rastro de quem passou. Vestígio do que ficou.

O tempo que leva uma mesa a flutuar, orbitar… E, como se fosse possível, o mundo aconteceu em “stop motion”. E se vierem me perguntar sobre o que era o filme, não contarei uma estória, porque a graça não estava no enredo, no entendimento racional do que acontecia, mas no sentido intrínseco ao próprio procedimento, na percepção da possibilidade de flutuação do tempo pelos corpos em a “corpo-interagir” e ação fragmentada.

O tempo que leva uma conversa por cortar.

O tempo que leva esperar por ela.

O tempo que levam 10 minutos a passar. Que situação coreográfica!

O tempo das memórias “feitocal” e água.

O tempo das memórias de criação no “basement”. No porão do teatro. Nos fundos da cena em cena. Nos porões da intimidade do artista. Nos porões da transformação do espectador em parceiro, co-criador, literalmente. O tempo da partilha. O tempo da escuta. O tempo do contato. O tempo do toque.

O tempo que leva pra uma memória ser agarrada, partilhada e perdida. Memórias pintadas na parede não com tinta, mas com gotas d’água que se secam no meio da lembrança.

O tempo que se leva para perceber a memória enquanto invenção de nós mesmos. “O corpo sabe o mundo” é o que estava tatuado em uma laranja a qual eu devorei e o tempo se fez digerir em mim. Corpo- sou. Corpo-sei.

O tempo  que leva para brincar de ser criança e ver Frida “desenhando” com fita-adesiva em chão e parede. O tempo que leva pra criança florescer e voar como borboleta.

O tempo de um quintal que ficou para trás e se deixou ficar. Um quintal em que se pode escolher a paisagem que substituirá o cromaqui”logo ao fundo. Escute o cheiro do gosto da melancia. O tempo da lembrança. O tempo de “Souvenir”.

O tempo que leva correr em círculos parar.

O tempo suspenso. Quando uma hora e um minuto não fazem toda a diferença num “matadouro”, mas fazem. Olhares. Tempo. Silêncio. Arrisque-se no primeiro aplauso para aquilo que não foi gostoso assistir.

E, se foram perguntas estampadas em bolsas coloridas que levaram uma mulher a adentrar a sala de espetáculo, encerro com elas:

Por que sentir sempre o mesmo sabor?

Por que pegar sempre o mesmo caminho?

Por que ouvir sempre a mesma coisa?

Por que fazer sempre do mesmo jeito?

Por que ser sempre a mesma pessoa?

Quanto tempo leva para arriscar-se?

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Paola Vásquez é artista e produtora cultural. Atualmente, gosta de trabalhar com palavras, canto e danças árabes.

 

Bárbara Muglia foi aprovada no mestrado em Educação – FE/USP  para 2013. Coordena o Núcleo de Dança do LAB-ARTE (FE/USP) e integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Gesto, Expressão e Educação (FE/USP) e o P.U.L.A. (EEFE/USP), nos quais investiga acerca das
experiências artístico-corporais.