Estar aqui ou ali / Foto: João Milet Meirelles
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Conectivos Críticos I (2011) – Cocada, caipirinha e outras misturas más

Maíra Spanghero

A música invade a praça do Campo Grande com hits. O DJ parece um “homem de preto” ou um dos repórteres do CQC. Parado, de terno escuro, braços cruzados, está simetricamente posicionado entre duas colunas. A chuva deu uma trégua, o espetáculo tinha sido transferido por causa dela. Será mesmo um espetáculo? De repente, surge ele, pelo meio das pessoas. Já andava pelos arredores antes. Meio andarilho, meio louco, carrega uma mochila que parece caber o mundo. Megafone, som portátil, estilingue, muitas bugigangas, todas necessárias. Ele fala, se movimenta e provoca interações com os presentes. “O reino de Brogodó é aqui”, “cadê o cacau?”

O nome dele é Kleber Lourenço. Ator, bailarino, educador, encenador ou simplesmente criador independente, o pernambucano, nascido em Caruaru há 31 anos, mostra seu recém criado solo Estar aqui ou ali? em Salvador. Contou com a colaboração de Mozart Santos (DJ, operação de som), Missionário José (trilha sonora), Jorge Alencar (co-criação e dramaturgia), Roberta Ramos (pesquisa teórica), Java Araújo e Gabriel Azevedo (direção de arte). A produção é do Dimenti, que promove o quinto Interação e Conectividade, projeto de intercâmbio artístico com apresentações, debates e residências realizado no Instituto Cultural Brasil Alemanha, mais conhecido por ICBA, na capital baiana. Ouço uma moça dizer: “eu vou olhar de frente que vejo melhor”.

Estamos no momento da intervenção em que ele monta um “lounge” com a ajuda do público. O que é “um lounge entre aspas”, pergunta minha consciência. O que é uma operação entre aspas? Para isso, utiliza uma canga e pulseirinhas para seus “convidados”. “No meu lounge só entra quem tem pulseirinha”, ironiza ele. As bordas da canga também estabelecem os limites entre o público e o privado. Ou o privado dentro do público. A pulseirinha, objeto de desejo e fetiche, sinaliza a diferença entre os que estão fora e os que estão dentro1. Sentado em seu lounge-favela (mas ainda um lounge – é o nome que faz a coisa ser?), com seus amigos de pulseirinha, este homem – metade Kleber metade outros alguéns – mostra fotos de sua família (a imagem de Ariano Suassuna está entre elas). Assim, ele vai montando um acontecimento, criando um clima de (falsa) intimidade, furando as fronteiras e jogando a realidade para o espaço da experiência artística compartilhada.

O vendedor de picolé pára e observa. Kleber (não dá para chamá-lo nem de performer, nem de ator, muito menos de dançarino) acende um incenso. Com grandes doses de ironia e crítica, faz uma caipirinha enquanto conversa. Entremeia frases de um inglês suficiente só para atrair atenção de gringo turista. “I like caipirinha”. O corpo-pára-raio de Kleber vai mais longe. Ele tem um mordomo de nome Ariano (!), que o ajuda de diversas formas: traz gelo para a bebida, carrega objetos e dá todo e qualquer tipo de apoio para a cena. “Aí você mexe, você sacode, você balança”. É um mordomo negro em plena praça. Sabemos que essa história é baseada em fatos reais e a linha divisória entre a realidade e a ficção está manchada. Fazemos parte da experiência, encenamos a vida real e podemos até inverter papéis. “Vai amassando, vai triturando e sai um caldo que te deixa feliz… você dança….”.

Beber caipirinha deixa todo mundo bem, mas uma hora a festa acaba, verdade seja dita. Estamos todos sem pulseirinha. A migração (caminhada) de um lado para outro da praça dilata o corpo-nômade de Kleber. Metamorfose ambulante, caixeiro-viajante, cangaceiro-índio-officeboy-pop, vira-lata de terceira geração, pai de santo do folclore nacional? Ou coisa que o valha. Sua identidade é móvel, é uma mochila que ganha a forma de suas memórias e dos objetos que a preenchem. E, então, ele delimita um território, arma um ringue e o duelo começa. A música rompe a barreira entre o dentro e o fora (rompe?). DJ e intérprete estão em cena e aqui é claramente um espetáculo. Ele se camufla e se delata num corpo-mosaico: é índio, é negro, é popular, é rei, é branco, é mameluco, é sansei, é erudito, é escravo, é não-sei, é…. o quê?!?

“Um brinde pra quem tem pulseirinha!”.

Pit stop

Kleber nasceu em Caruaru, mas já morou em Arapiraca, Maceió, Palmares, Belém do Pará…. até que voltou para Recife na adolescência. Andou sertão e litoral afora. Seu corpo está-sendo-tem-sido um colecionador de emoções e experiências, de objetos comprados e ganhados a estórias e memórias que lhe constituem uma identidade líquida. Diz que gosta muito de palavra e que pensa como um criador – não propriamente ou somente como um ator, um bailarino ou um encenador. Tenho a sensação de que as palavras nos traem. Graduado em Artes Cênicas, com formação em dança e manifestações populares, Kleber tem tido uma atuação profissional diversificada, o que inclui uma temporada de seis anos como bailarino e assistente de coreógrafo no famoso grupo Grial, criado por Ariano Suassuna e Maria Paula Costa Rêgo. Quando deixa a companhia, em 2004, ele começa um novo projeto e, quase sem saber, um outro caminho.

Jandira é o nome dessa viagem, jornada em busca de si próprio, desse outro em nós. Arnaldo Siqueira e Marcondes Lima foram os orientadores do primeiro solo que o artista realizou em 2005. Nele, passou a explorar diferentes texturas a partir dos códigos do teatro e da dança, dois de seus maiores interesses, ao lado da literatura. O espetáculo surge a partir de um poema surrealista do escritor mineiro Murilo Mendes, que constrói a dramaturgia junto com a sobreposição de imagens. Kleber está nu diante dos temas que escolheu: o arquétipo feminino, as questões de identidade e de gênero.

Em 2007, o interesse pela questão da identidade volta em Negro de Estimação, peça que fez em co-direção com Marcondes Lima. Quando este lhe mostrou o livro Contos Negreiros, de Marcelino Freire, Kleber se identificou imediatamente. De família negra e descendente de escravos, os sentimentos e as estórias que encontrou nas palavras do escritor também eram seus. Kleber e Negro de Estimação percorreram muitos palcos, de norte a sul, de leste a oeste. Negro-do-balé-clássico e afoxé-por-osmose são apenas outros nomes para a memória de seu corpo.

Estar aqui ou ali? tem início muito antes de sua estreia, se é que essas coisas têm mesmo um começo preciso. Foi em 2008, quando Kleber começa a estudar muitas coisas a respeito do processo de formação e colonização do Recife e do nordeste. Os livros do sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre viraram bíblias de cabeceira. Observou muito as cidades por onde passou. A residência artística de três meses em Lagos (Portugal), através do Programa de Candidaturas Internacionais do LAC – Laboratório de Actividades Criativas, ajudou a verticalizar a pesquisa. Finalmente, através do Projeto Encena Pernambuco (Sesc-PE), Kleber conseguiu condições para finalizar e “estrear” o trabalho em maio passado e, em seguida, circular por oito cidades. Tem se interessado especialmente pelo “aspecto do estereótipo da colonização que nos acompanha e essa relação dos estereótipos e das semelhanças”, conta entre um gole de café e outro.

Travestir-se: operação entre aspas

Claramente, a passagem de Kleber pelo espaço urbano e público faz contato com os transeuntes para criar outras texturas de realidade e imaginação, além de territórios possíveis, físicos e imaginários. Para isso poder acontecer em algum nível, ele faz uma cartografia prévia do lugar por onde vai atuar e conta com disponibilidade e espontaneidade dos passantes. Suas experiências de intervenção já foram realizadas em diferentes horários do dia e da noite, no meio de uma feira, na frente da igreja de uma praça central, numa rua movimentada. Às vezes funciona, às vezes não. Segundo ele, no interior, os corpos são mais disponíveis.

A obra está aberta e, dentro de um regime de manipulação, o público é coautor. Isso também acontece na parte final de Estar aqui ou ali?, que vou chamar de “a vez e a hora do karaokê”, quando Kleber oferece cerveja gelada e convida as pessoas que esperam pelo ônibus no ponto para escolher uma música e cantar. Ele já foi abraçado, já cantou junto e viu medo no rosto de alguns viandantes. Entre o estranhamento e o reconhecimento, do engajamento na experiência (seja ativa ou passivamente) decorre uma forte significação política. A própria ironia habilita uma zona de confluência. Para seu autor, o solo “constrói uma dramaturgia estilhaçada, carnavalizada, já que se percebe (e se encanta) por meio de identificações culturais provisórias, vacilantes e confusas. […] invade corpos disponíveis para construir um guia prático, histórico e sentimental da ocupação”.

Com o tempo, Kleber vai encontrar um lugar onde o estereótipo possa virar disfarce e assim penetrar em outras camadas da cidade e da confiança humana. Talvez ele se possa confundir ainda mais, sem necessariamente passar desapercebido, mas também sem que o pipoqueiro descubra que se trata de um artista ou de alguém “da cultura”. Entre a realidade e a ficção, entre a pessoa e a personagem, entre o público e o privado, entre a estrutura e o improviso, entre o popular e o erudito, entre o incluído e o excluído, entre duas margens existem um mar de conexões e sertões de ambigüidade.

Entre duas aspas, talvez Kleber seja mesmo apenas um rapaz interessado nos encontros que só acontecem na rua, do alvorecer ao entardecer, mais exatamente quando se está no meio do caminho.

1 O uso de pulseirinhas é uma prática comum nas festas soteropolitanas, como o Carnaval e o São João.

Maíra Spanghero é crítica de dança e professora da Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. mairaspanghero.wordpress.com

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Metamorfoses do cacau

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