Single / Foto: Tiago Lima
  • Sem categoria

Conectivos Críticos I (2011) – Por uma democracia dos sentidos

Criticartas multi-endereçadas sobre Verdades Inventadas, de Thembi Rosa, e Single, de Leo França

Gustavo Bitencourt*

Preâmbulo: oh, quem sou, onde estou

Esse é o primeiro texto sobre o Interação & Conectividade 5 e confesso que começar é muito difícil. Foram uns dias muito cheios, de convivência, muita amizade, muito trampo, concordância, discordância, debate caloroso, boate, caipirinha, piadas internas e externas, diversos projetos, sincronias e ideias. Já acabou faz quase três semanas e eu ainda não absorvi direito.

E essa função de escrever sobre os trabalhos carrega uma série de questões que discutimos há bastante tempo sobre o que faz a crítica, a que e a quem se destina, do que fala e, principalmente, quem é que fala na crítica e de onde fala. E com essas questões, vem uma puta responsabilidade.

Responsabilidade de falar pra vocês, que talvez conheçam, talvez não conheçam, esses trabalhos e esses artistas que eu menciono. E de falar também pra vocês, artistas, de coisas sobre as quais a gente não teve tempo ou vontade de conversar enquanto estava perto. E de falar também pra mim, que tenho esse hábito de entender o que eu tô pensando enquanto comunico. E eu tô percebendo, ao escrever, que o lugar que eu ocupo nesta escrita vai ficando mais claro pra mim na medida em que eu escolho os meus interlocutores.

Então, parece que vêm bem a calhar esses trabalhos, esses artistas, dos quais eu vou falar aqui: o Leo França e a Thembi Rosa, por vários motivos, que vão se esclarecendo até o final (senão, dá pra reclamar aqui nos comentários abaixo).

Mas um deles é: Thembi, Leo, entre as pessoas que estavam nesse evento, vocês são duas das que eu menos conhecia antes, tinha conversado menos, visto pouco. Leo, que inclusive já tinha morado aqui em Curitiba, e temos vários amigos bem próximos em comum. Thembi já tinha encontrado em alguns eventos, mas via de longe, talvez um oi-tudo-bem. Dessa vez, eu tive a oportunidade de sair pra beber com os dois, e isso muda muito.

Geringonça & breguetinhos

Leo apresentou Single (foto), Thembi apresentou Verdades inventadas, e já de cara dá pra encontrar uma série de paralelos entre esses trabalhos: ambos são performances-instalações, ou instalações performáticas, ou performances instalativas, sei lá o nome – o fato é que procuram estabelecer um tipo de relação com o tempo e com espaço diferente do sentar-e-assistir com duração definida. Também são trabalhos que trazem um interesse pela sensorialidade, e por levar ao espaço institucional, da apresentação, pedaços de outros lugares.

Thembi se inspirou, segundo o release, num sistema de alarme que havia em antigos palácios japoneses, que era um chão de madeira que fazia barulho quando pisado. Aí, com os músicos d’O Grivo, um duo musical de Belo Horizonte, criaram um tablado-geringonça que, ao que me parece, amplifica e modula o barulho da madeira, funcionando como uma espécie de teclado gigante. Ela improvisa sobre esse chão durante algum tempo, experimentando esses sons, enquanto na parede são projetadas imagens, às vezes da parte interna da geringonça, às vezes de detalhes do corpo dela ou do espaço ao redor. Ao final, ela convida as pessoas para também subirem e testarem o mecanismo. Em Salvador, isso aconteceu na capela do MAM, um lugar com uma arquitetura especial, e que dava a possibilidade de ver de vários ângulos, inclusive de cima.

O trabalho do Leo é complicado de explicar pra quem não viu, mas vou tentar. A gente chegava por um pequeno pátio externo do ICBA, e ali já estava instalado um carro, com a bunda pra dentro do pátio e o porta-malas aberto. O carro estava atravessado, meio dentro, meio fora de um portão bem estreito que tinha lá, dando uma sensação de invasão mesmo. No porta-malas tinha um monitor, passando um vídeo que mostrava pessoas da cidade testando e falando sobre um equipamento sonoro que o Leo criou: um headphone de conchas, que tem barulho de mar. Depois, outro vídeo mostrava detalhes da cidade, muros, pessoas, ruas, águas, e, reincidentemente, uma coisa que eu só vi em Salvador (e só reparei depois desse trabalho) que são umas pontas de metal afiadas que as pessoas colocam nos muros das casas pra que ninguém tente pular – e doravante chamarei de breguetinhos, porque eu não sei o nome daquilo.

Também dentro desse pátio, próximo ao carro, estava o vendedor de espetinhos, com seu carrinho, vendendo. Na verdade ele tá ali sempre, trabalhando na frente do prédio, mas nessa noite o Leo convidou o cara pra entrar.

Entrando no prédio, a gente passava pelo saguão, cujo chão estava forrado com papel branco, alguns tijolos espalhados, como se estivessem segurando o papel, e no centro, formando uma espécie de passadeira, tinha um texto, bem bonito, que falava de diversas coisas: distância, violência, subversão, virtualidade. Aí entrava no teatro, com luzes bem fraquinhas, onde as cadeiras estavam ocupadas por tijolos. Mais ou menos no meio tinha um aquário, e dentro tinha água e areia no fundo, e umas esculturas feitas com vários breguetinhos. À direita, três headphones de conchas, pra quem quisesse experimentar. Bem escondidinha, num canto do palco, tinha uma vitrola, ligada, decorada com breguetinhos que giravam e criavam uma sombra.

No fundão do palco, estava o Leo, com uma roupa meio cinza, de um tecido elástico, deitado em cima de um murinho da mesma cor da roupa, como se fizesse parte dele. Nas costas da roupa, tinha uma coluna que também era feita de breguetinhos, então, bem de longe, até dava pra achar que os breguetinhos estavam no muro e não nele. Depois de um tempo, ele começou a descer do muro e passear pelo chão, com uma movimentação rasteira, meio de réptil, às vezes voltava pro muro. Como começou num horário marcado, as pessoas passaram por tudo isso, e depois ficaram ali pelo pátio, revendo os vídeos e comendo churrasquinho.

Um certo estado de alerta

A sensorialidade é um ponto fundamental desses trabalhos e, pelo pouco que eu conheço, também na trajetória desses dois artistas. Do Leo eu vi Brucutu, um trabalho que ele desenvolveu na Casa Hoffmann, em Curitiba, em 2007, mas que eu só fui ver depois, no Sesc Santos, durante a Bienal de Dança. Agora vi também uns trechos de Brecha, outro solo dele, no Youtube. Da Thembi, eu só tinha visto Confluir, quando ela apresentou no Panorama.

Mas desses pouquinhos, já dá pra sacar que tem vários elementos que se repetem nos trabalhos dos dois, e eu acho muito legal isso, poder ver num artista essa vocação arqueológica, de ficar escavando, testando, recombinando elementos, encontrando outras relações. No inventário do Leo tem muros, violência, dor, som, poesia, espectador, musicalidade, cotidiano, urbe, invasão, subversão, terrorismo. No inventário da Thembi tem geringonças, movimentos provocados por elas, bucolismo, texturas diversas, sonoridade, presença, motivações concretas e presentes para se mover.

Os dois se instalam num espaço de apresentação – institucional, depois eu explico porque essa ênfase – trazendo os seus inventários. Eles nos convidam a acessar o que está e o que não está ali, por meio dos sentidos, ou ainda, por meio de um certo estado de alerta dos sentidos que não é exatamente o que a gente tem no cotidiano, quando vai num banco automático ou sai pra comprar pão. Esse convite é também uma proposta de autonomia: pelos sentidos eu sou convocado a exercitar escolhas, fazer recortes, definir trajetos.

No entanto, pra mim, parece que os interesses dos dois ao propor esse tipo de relação são muito diferentes, e é aqui que a gente entra no assunto que eu trouxe no começo: quem fala, de onde fala, pra quem fala.

Procedimentos de camuflagem

Leo, eu fiquei pensando muito numa conversa que a gente teve, sentados lá na rede do ICBA um dia depois do almoço. Eu falei que eu tava inseguro pra escrever esses textos, como as pessoas iriam acessar, se não iriam acabar encontrando neles as estrelinhas que a gente tá tão acostumado a ver nas críticas de jornal. Aí você falou uma coisa mais ou menos assim: “Talvez o crítico seja só um tipo de espectador com uma atenção especial pra ver um trabalho e falar sobre”. Eu achei que esse pensamento combina muito com você, e me perguntei se artista também não é assim, alguém com uma certa atenção especial pra olhar pras coisas e falar sobre. Que fique claro: longe de mim achar que artista é um ser especial, ou especialmente sensível, ou qualquer bobagem dessas. Mas pode ser, sim, alguém que elege certas coisas no mundo pra investigar com mais cuidado, e que se propõe a comunicar o que vai descobrindo.

Mas tanto a investigação quanto a comunicação se alteram e se definem não só com as coisas que a gente acha pra investigar, mas também, e acho que principalmente, a partir dos interlocutores que a gente elege e da maneira que a gente escolhe se relacionar com eles (vocês, nós, eu).

No Single, isso é bem evidente. Os interlocutores somos nós, público de arte contemporânea, que estamos ali. Você nos traz pedaços de outros lugares da cidade. A sensorialidade aparece ali como um ato subversivo. É falar sobre Salvador, cidade grande, violência, muros, distâncias – coisas tão cotidianas que nos são invisíveis – só que sem falar e sem ser sobre. Não é explanatório, não tem tese a comprovar. É mais um beliscão, só que suave, um chupão no pescoço, é uma mistura de agressão e carinho, é um grãozinho de areia irritante na língua da ostra pra provocar a pérola. É uma tentativa, ao meu ver, bem sucedida, de chamar a atenção pro que não se vê, com a intenção clara de mudar o mundo, um pouquinho que seja.

Acho que tem muito a ver com um jogo de camuflagem, de mostrar escondendo coisas que a banalidade torna invisíveis. Tem isso no muro que vai pro palco, mas não é um muro de verdade, é um objeto de cena. Tem camuflagem na tua roupa de muro, na vitrola escondida na penumbra, nos breguetinhos disfarçados de decoração de aquário.

Outro exemplo é o carro de espetinho, quando vem pra dentro do pátio do ICBA. Ele se torna visível quando sai de onde fica sempre e é colocado num lugar onde a gente vai para observar coisas, para ver arte. Mas ele não vira exatamente um objeto de arte, porque ele mantém a função de vender comida – a mesma coisa que faria a 15 metros de distância, quando estava na frente do prédio. Isso eu tô chamando de camuflagem, o que está ali se misturando ao ambiente, mas conserva uma certa destacabilidade.

Seja pela forma, como no caso da roupa de muro, ou pela função, como o carro de espetinho – a camuflagem depende das regras de convivência, visíveis ou invisíveis, instauradas naquele lugar, naquela instituição. Por isso, quando a gente conversou, eu disse que ali, como as coisas estavam, ainda era fácil se apoiar no conforto das relações instituídas. Porque a gente sabe como olhar pra objetos de arte ali, e porque eles estão, na maioria, expostos como tal.

Falei também da possibilidade de fazer o caminho inverso, de levar a instituição de arte pra rua, ou de fazer com que as coisas na rua sejam vistas como objetos de arte. Digamos, de um jeito bem superficial, que a regra na rua seja passar pelas coisas sem notar, e que no espaço de apresentação a regra seja observar o que o artista me mostra. Nos dois lugares, a camuflagem pode ser um jeito de me desestabilizar, eu tenho que me reposicionar pra lidar com aquilo, porque não está exposto nem escondido.

Nesse baú de coisas que você trouxe, a camuflagem tá presente de várias formas, e tenho a impressão de que ela casa bem com o tipo de percepção que você quer estimular e indica um caminho pra continuidade desse trabalho, com diferentes modulações e funções.

Oração sem sujeito, verbo intransitivo, gente como a gente, sítio arqueológico

Thembi, essas perguntas – quem fala, de onde, pra quem – foram as que mais passaram na minha cabeça durante o Verdades inventadas. Nesses dias de festival, eu pude ver você se transformar da imagem que eu tinha, meio séria, até meio estóica – essas classificações que a gente faz arbitrariamente quando não conhece as pessoas – em uma pessoa divertida, que faz piada, mas ouve muito, tem abertura pra ouvir, com um timing impressionante. Uma pessoa que eu fui descobrir depois que já estudou Letras, que nem eu, o que me fez ficar inventando vários diagnósticos pra sua organização de raciocínio.

Aí eu vou lá assistir, e essa Thembi não tá lá. O que tem, na verdade, é uma presença forte e delicada, uma concentração e uma curiosidade pelo instantâneo, um corpo devoto dessa arqueologia, de escavar e descobrir o que tem de novo naquilo que já se conhece. Mas tem também, me parece, uma vontade de se dissolver, de sumir naquilo ali. A roupa tem umas cores e uma fluidez que meio somem na madeira, o vídeo mostra pedaços de coisas de uma forma até impositiva, o lugar da apresentação em si tem uma arquitetura que chupa a atenção da gente, e você se coloca inteira à disposição da geringonça, da ação sugerida por ela, pelo som dela, pela cor, pela textura. Pode ser um trabalho muito generoso, nesse sentido, querer ser uma oração sem sujeito, querer se colocar a serviço.

Por outro lado, se existe mesmo essa vontade de se dissolver, então por que o centro das atenções, por que esse palco que é teclado, a luz, gente sentada assistindo, o aplauso inevitável no final? Essas são as regras que regem aquele lugar em uma apresentação de dança: palco, performer, assistir, aplaudir. Por isso, me pareceu que tem uma lacuna entre essas duas coisas, o desejo e a abordagem. Eu tenho a teoria de que lacunas, em geral, são boas, são onde o nosso trabalho artístico acontece, quando a gente resolve trabalhar com elas. E talvez seja esse mesmo o jogo, sumir aparecendo, aparecer sumindo. Mas será que é isso que você quer? Será que é isso, verdades inventadas?

Eu me perguntei também “Mas o que que ela quer comigo?” – no caso, eu público, transeunte, interlocutor. “Ela quer que eu também fique à disposição dessa máquina? Pra quê?” O que eu percebi, concretamente, foi um desejo de proporcionar uma experiência sensível, de sensibilizar. Isso, por si só, é muita coisa, e efetivamente acontece no teu trabalho, de um jeito muito envolvente. E sensibilizar traz um desejo implícito de transformação, mas achei que, ali, aparece como um verbo intransitivo. Sensibilizar quem? Porque, se o verbo não se refere a ninguém, é quem tiver lá. E quem vai estar lá sou eu – no caso, eu, público de arte contemporânea, gente como a gente. E me perguntei se eu sou o interlocutor certo pra você.

Deixa eu formular melhor: será que o tipo de transformação, de sensibilidade, que você quer produzir é em gente como a gente? É no mundo? É no mundo, mas por meio de gente como a gente? E pergunto ainda: que transformação é essa e a que ela se presta? Eu sei que são perguntas que não se responde, mas acho bom ficar fazendo, pra não perder de vista um quadro maior, pra pelo menos ficarmos mais desconfortáveis no nosso lugar.

Porque o risco é o teu mecanismo pra chegar aqui, na gente como a gente, e estagnar. Eu não sei muito bem o que isso significa na prática. Se é ir pra outros lugares, se é se enfiar em outros meios, se é o formato, se é o estado. Pode ser até que só pensar em outro tipo de interlocutor, ou ainda, só escolher esse interlocutor, já abra um outro caminho, um outro sítio arqueológico pra escavar.

Mas isso sou eu tentando imaginar desdobramentos possíveis pro teu trajeto, e projetar em você uma perspectiva minha, que talvez seja útil, talvez não. Mas sinto que falta alguma chave de acesso pra eu entender o que você tá buscando, alguma coisa que eu não saquei, queria conversar.

Epílogo meio glossário: instituição e democracia, enfim

Percebi que, falando sobre os dois trabalhos, fiquei bastante nessa questão das relações institucionais. Quando falo de instituição aqui, estou falando de regras, de grupos. De regras visíveis ou invisíveis que regem relações de grupos. Chamo de instituição, por exemplo, o ICBA, o MAM, o teatro, a sala de exposição, e também arte contemporânea, a dança, a crítica. Estou especialmente interessado em  chamar a atenção para como essas regras estão presentes na comunicação, seja num trabalho de arte, num texto, numa conversa qualquer, enfim.

Isso porque eu acredito bem sério que a minha autonomia depende desse conhecimento. Eu me torno mais autônomo à medida que percebo a minha posição nas instituições em que eu vivo e, desse jeito, posso tomar decisões. Não necessariamente contra, mas até como parte delas, de dentro. Posso propor mudanças nessas regras, se elas não servirem, porque elas também me pertencem – democraticamente. Quando a autonomia se responsabiliza pela coletividade, é isso que eu chamo de democracia.

O que eu tô cogitando aqui é: será que se eu olhar com mais cuidado pra onde eu estou e pra quem eu falo, não é mais fácil de perceber as diversas instituições que atravessam essa comunicação? Esse é o exercício, democrático, que eu propus pros dois, e tô me propondo ao escrever aqui. Mas com certeza não é o único jeito e não é o único foco possível.

No caso dos trabalhos do Leo e da Thembi, acho que tem também um desejo de produzir transformação, então me pareceu importante partilhar essas dúvidas e essa perspectiva – que, pra mim, é muito urgente. No entanto, é claro que esses trabalhos carregam muito mais do que essas relações que eu apontei, assim como o meu texto teria muito mais pra dizer. Só que foi assim que as três trajetórias, a minha e a deles, se cruzaram aqui, onde eu tô agora.

*Com olhares valiosos de Sheila Ribeiro, Eduardo Simões, Elisabete Finger e Elielson Pacheco.

Gustavo Bitencourt é diletante profissional, nascido e residente em Curitiba, Paraná. Formado em Letras pela UFPR e atuando constantemente em diversos campos artísticos, tem na indisciplinaridade uma das principais características de seu trabalho. Trabalha como ilustrador, designer gráfico, redator e tradutor, performer, ator, diretor de teatro, crítico, compôs trilhas para teatro, dança e vídeo. É integrante do Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial.

Quer deixar um comentário para a série Conectivos Críticos? Clique aqui.

Leia também: Cocada, caipirinha e outras misturas más

Metamorfoses do cacau

# Siga o idança no twitter.