Conectivos Críticos I

A partir desta semana, o idança estreia nova série de textos, numa parceria com a mostra Interação e Conectividade IV, que aconteceu em junho, em Salvador, com organização do Dimenti. Publicaremos as impressões dos críticos convidados da mostra – os jornalistas Joceval Santana (BA), Christianne Galdino (PE) e Carlinhos Santos (RS) – em blocos de três textos durante três semanas. Aproveite!

CONFISSÕES DE UM CRÍTICO DESTITUÍDO – PACTO, SIMULAÇÃO, LUGAR E INCLUSÃO ATRAVÉS DA OBRA DE CLÁUDIA MÜLLER

Joceval Santana

Eu não vi Cláudia Müller. Não a vi dançar, propriamente dito, ela não fez a Entrega de Dança Contemporânea em Domicílio para mim, nem fui um dos escolhidos para um acordo individual que ela fez na calada no teatro, em Exhibition. Fui traído pelas circunstâncias – e a traição foi um dos primeiros sentimentos mobilizadores deste texto, que deveria ser gerado de um estágio de convivência mais próximo com Cláudia Müller.

Não a vi dançar, assim como não a vi da primeira vez em que tive acesso ao seu trabalho, com a videodança Fora de Campo, no qual a própria bailarina e coreógrafa não é filmada, mas, sim, as pessoas que pediram ou receberam em casa, na rua, no ambiente de trabalho a sua entrega. Na videodança, mais do que as discussões implicativas da sua proposta acerca dos meios de financiamento, produção, distribuição, fruição da arte e o paralelismo com sistemas de mercado e consumo, chamou-me atenção a possibilidade de construir no meu imaginário “uma” dança a partir da reação dos seus espectadores – suas emoções, tentativas de explicação/entendimento e até mesmo suas simulações, tentativas de reproduzir os movimentos de Cláudia. Essas reações foram selecionadas, recortadas e editadas, construindo uma obra que caminha pela tensão, e fusão, entre o presencial e a ausência.  E na qual o corpo, através da câmera, se oferece também como uma narrativa de invenção.

Fora de Campo é capaz de produzir em nós, (tel)espectadores dos espectadores, a construção de imagens, referências e mesmo memória daquele corpo e daquela dança à qual não tivemos acesso “direto” ou sequer intermediado pela fidelidade manipulada da câmera. No entanto, se a opção de Cláudia Müller em permanecer fora do enquadramento instiga, ao mesmo tempo, sua videodança sugere constantemente a legitimidade da sua dança (como forma de gerar emoção) e da sua estratégia de apresentação (como forma de discutir inclusão).

Algum tempo depois, durante a divisão de tarefas do Interação e Conectividade, “briguei” para acompanhar o trabalho de Cláudia e produzir textos  a partir desse compartilhamento. Menti no começo deste texto, vi o trabalho de Cláudia Müller uma única vez, quando ela fez entrega numa reunião de diretores da Fundação Cultural do Estado da Bahia, estes surpreendidos pelo discurso eminentemente político da obra. Mas, pela própria plateia – sei que o perfil de quem assiste é constitutivo da obra, e de maneira especial, desta obra – e pelas condições em que se deu minha presença de “jornalista” no local, prefiro colocar esta experiência como extraordinária, e reafirmar para fins deste texto que não vi Cláudia Müller. Não acompanhei suas entregas, suas oficinas, e, última esperança, no espetáculo Exhibition cheguei até o foyer, mas não fui um dos escolhidos para entrar no teatro, embora uma das “atendentes” tivesse me garantido que todos entrariam.

Para ver Exhibition, uma pequena fila se formou atrás do aviso de lotação esgotada. Acesso apenas para as pessoas relacionadas ao festival, mas, mesmo assim, algumas ainda ficaram de fora. No foyer, aguardava-se a entrada na sala de espetáculo, enquanto exibições em um vídeo funcionavam como reafirmação da obra de Cláudia (com depoimentos sobre sua participação num festival de arte contemporânea) e simulacro (com comerciais de uma marca fictícia de açúcar, vinculando-a a conceitos de requinte e felicidade instantânea, com forte acento no artificialismo). Em determinado momento, os atendentes passaram a servir Chandon aos que ultrapassaram a porta do foyer e o que era uma movimentação um tanto suspeita se evidenciou: pessoas escolhidas para entrar no teatro, onde passavam alguns minutos e saíam. Mas nem todos tiveram a sua vez… Algo foi rompido no pacto/palco do acesso?

Não, o lá-fora também fazia parte do espetáculo – e o lá-fora do lá-fora, barrados. Cláudia Müller espetacularizava a institucionalização do acesso, a inclusão (que pressupõe uma exclusão), os critérios de seleção e o poder sobre eles.

Mas uma vez sem vê-la, a projeção da sua presença se fortalecia em mim e me provocava. Percebi, ainda um tanto perdido pelo que foi negado, que sua presença/ausência tinha sido muito marcante para mim nos últimos dias: pela angústia de não conseguir acompanhar o seu trabalho e pela curiosidade em saber das pessoas que o viram o que elas achavam. Percebi o quanto tinha falado sobre Cláudia naqueles dias.

Cada obra engendra a sua própria crítica ou forma de reflexão em cada espectador. A de Cláudia, naquele momento de “traição” – eu, que havia sido institucionalmente delegado a refletir sobre ela –, provocou em mim uma necessidade imediata de construir essa reflexão a partir de outros olhares. A questão que se colocava, também imediatamente, era: se o olhar do crítico é apenas um olhar possível sobre o alcance de uma obra, legitimado principalmente pela publicação desse olhar em veículos e com assinaturas de diferentes graus de valoração no nosso imaginário, seria possível e mesmo capacitado escrever uma “crítica” a partir de múltiplos e outros olhares? Como se estabeleceria esse diálogo com o leitor, que viu ou não a obra? Como assumir outros lugares nesse diálogo? O valor de credibilidade escaparia ou se fortaleceria?

Aos escolhidos de Exhibition, um por um, eu soube, Cláudia propunha um pacto. Eles falariam sobre um espetáculo de dança que os tinha emocionado e, em troca, ela dançaria para eles. Tudo teria sido registrado por câmera, os depoimentos e as reações. Acredito que Cláudia vá usar esse material coletado em uma próxima obra.

Resolvi fazer uma simulação: perguntei às pessoas que emoção o trabalho de Cláudia Müller lhes causava. Colhi os meus depoimentos e reações; espectador do espectador; jornalista, recortei, conduzi, editei; crítico, acreditei que poderia apontar e redimensionar o espaço da emoção e da reflexão. Traído, cumpriria minha parte.

Fiz o texto – que não é este. Construí uma visão daquilo que não vi. E tento oferecer aqui, eu mesmo, uma possibilidade de revê-la. Mesmo para quem teve acesso a ela. Uma possibilidade a mais de construir imagens, referências, discurso, reflexão, registro.

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PERCURSOS, PESSOAS E PROCEDIMENTOS

Carlinhos Santos

Infiltrações / Foto: Tiago Lima

Peça de Pessoa, Prego e Pelúcia, peça de poesia e procedimentos. Performances reunidas, coletivo de um só. Da ideia de problematizar o público, ao público: peça de pirralhos, também para crescidos. Parcerias postas: Couve-Flor com pesquisa dramatúrgica de Jorge Alencar. Penumbras que revelam personagens. Proposta de dramaturgia em solos perpassados, pontos que se unem, picturas cênicas. Possibilidades de percurso, pesquisa mesmo: sobre as tais perspectivas de coletivos terem traços nas partes, amarrando um todo. Mas esse conjunto pode ser repartido, sobrevivendo aos recortes, pois enverga assinatura.

Peça de pertencimento, primeira peça do fractal de performers e bailarinos. Partituras corporais, plugadas em tecnologia. A roupa nova do rapaz é high tech, pois assim são também suas articulações artísticas. Ponta, não da sapatilha, mas da antena que pensa sobre os passos da dança inserida nas artes da contemporaneidade. Pensamentos, de novo, em torno das putrefações. Sim, pois estetizar os puns e os pipis, sangue e excrementos, pode incomodar e parece até carregar um quê de perverso. Mas eis aí a peça potencializando este papo também.

Peça de produção de significados, que pescam ideias em torno de referenciais imagéticos como os de Tim Burton para redefinir universos. Na continuidade da intervenção do coletivo (curitibano) Couve-Flor, uma aposta na inteligência cênica, sem língua do pê. Pêpor pêque pêpa, pêre, pêce, pêsem, pêpre, pêmais, pêfá, pêcil, pêtra, pêtar, pêcri, pêan, pêça, pêco, pêmo, pêbo, pêbi, penha?

Peça de perspectivas, acenando para novos sentidos à intervenção cênica da trupe, pontuando um tanto de dramaturgia ao linóleo e outro de movimentação à cena. Ao investigar, o trabalho pertence à categoria da proposta que encontra novos nexos, reinventando e reiterando uma trajetória. A exploração deste caminho configura uma experiência rica, carregada de significados ainda em processo – pê de prego, pessoa e pelúcia, pê de poesia, pureza e precisão. Ajustes para a dramaturgia? Talvez, se a vontade do pêndulo recair sobre a opção do prólogo e epílogo. A exploração de todos estes pontos ainda está a exigir novas lógicas de configuração. Elas podem por mais pingos em is (imbricando as histórias das figuras), jotas (justapondo as narrativas de uns e outros), e até pês (pontuando outras leituras ao público).

O ponto de tangência da Peça de Pessoa Prego e Pelúcia e a performance Infiltrados, que o Couve apresentou numa praça do Rio Vermelho é, de novo, o gesto potente dos artistas na reinvenção dos palcos que pensam. Desta vez, como em muitas outras no percurso da trupe, o ambiente urbano é posto em evidência.

O jogo, de novo, é pintar de inventividade o gesto. E o vermelho foi a cor definida pelo nome do lugar onde se trabalhou.  De cara, a senha do Stevie Wonder cover pedia: olhos atentos ao mapa do lugar, ao entorno que, aqui e acolá, via surgir infiltrações rouges na paisagem. A leitura é orientada, anunciada por roteiro entregue a quem vai acompanhar a proposta.

“Vende-se presente”, anuncia o panfleto colado no ponto de ônibus. Este agora presenciado, este tempo do transcurso, repete-se no DNA dos artistas e na perspectiva da obra: jogar-se aos gestos corriqueiros, mas algo irrepetíveis, para eternizar aquela fotografia animada, aquele instantâneo em movimento: as rosas vermelhas jogadas no lixo e o aviso discreto, na murada do bar, proibindo que se mexa nos detritos. Como não querer recolher o resto do gesto, tentando carregar junto, para depois dali, um tanto daquele vermelho paixão dispensado na sarjeta?!

O quebra-cabeças exige presença, pois quer tratar do presente, do estar sendo. Propõe disposição de atentar às fitas longas, vermelhas, estendidas ao longe e, também, ao tom da cor do que come, bebe e lê a moça da mesa ao lado. Num zás, alguém passa e traz balinhas vermelhas, feito moranguinhos que desenham um caminho. Pura invenção, Alice na corrida urbana, sem coelho apressado, catando recortes do tempo.

O contexto da performance enche de novos sentidos um lugar. Material e imaterial, a ação artística do Couve-Flor repete e repete e repete os procedimentos. E, quando insiste em algo com firmeza de recursos artísticos, esboça um estilo.

Tanto as infiltrações urbanas quanto a ação de palco apresentadas pelo Couve-Flor durante o Interação e Conectividade são o reflexo de fractais conectados à inquietação, que revisitam questões recorrentes com gestos distintos. Os trabalhos expõem inteligência cênica, movimento articulado à performance, também atenta ao “in situ” (do contexto que gera o gesto, que reinventa o contexto, repercutindo em novas situações – artísticas, poéticas etc e tudo), desdobrando camadas de possibilidade de resultados a partir destes gestos elaborados por um pensamento artístico preciso e precioso da cena contemporânea brasileira.

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APRENDENDO A MATRIOSKAR COM TIAGO GUEDES

Christianne Galdino

Matrioska / Foto: Dimitri Wazemski

Matrioska? Parece uma palavra mágica, não é? Quem sabe da mesma família de abracadabra e shazan! Mas na verdade é o nome de uma tradicional boneca russa que guarda dentro dela réplicas menores de tamanhos diferentes. E essas várias camadas de uma mesma realidade, com diversas interpretações possíveis, marcam as criações do português Tiago Guedes, que desde 2001 investe em uma carreira mais autoral. Matrioska foi o nome que ele achou para intitular uma de suas obras, encomendada para o público infantil, mas que envolve em magia também gente grande. Segredos viram surpresas nessa peça de e para curiosos de plantão. São dois intérpretes apenas – no caso Francesca Bertozzi e Pietro Romani – mas parecem dar vida a uma multidão de coisas/seres indizíveis. Uma coisa que pode ser bola, pufe, bicho de pelúcia, e um ser vestido com uma malha preta, que tanto pode ser cobra, cachorro e gente, e que é ao mesmo tempo o recheio da coisa… Uma cantora lírica que canta em um idioma indecifrável é a mocinha, a heroína e também uma menina curiosa tentando desvendar os mistérios dessa história sem narrativa ou cheia de narrativas de outra natureza…

Matrioska é terno e cômico, singelo e complexo, como um clássico de cinema mudo. Distante da cenografia e figurinos megalomaníacos que ainda são sustentação de muitas produções cênicas para crianças “a la disney”, Matrioska cria por meio de recursos simples como o teatro de sombras um reinado absoluto da imaginação, com direito a cenas de suspense, episódios de comédia e até um certo tom operístico, realçado pela excelente trilha sonora, composta por Sérgio Cruz a partir de uma sinfonia de Rachmaninov. O jogo de esconde-esconde inventado por Tiago diz que nem sempre o que vemos é exatamente o que está sendo mostrado. O que há atrás do pano e quem é que existe embaixo do capuz e da meia? Como somente duas pessoas conseguem ser tantas figuras? As aparências enganam ou talvez seja melhor dizer: o visível é só uma das formas do acontecimento, e vem sempre acompanhado de muitos invisíveis. Criança ou adulto, esse espetáculo é um convite a “matrioskar”, ou seja, a ir além do visível, enxergar mais do que o óbvio, entender com os cinco sentidos, descobrir o outro, procurar novos significados do mesmo. Quantos significados pode ter um gesto simples? É desta simplicidade aparentemente despretensiosa que o coreógrafo extrai sua poética, levando a sério ser brincadeira, indo a fundo na missão de apresentar-se leve, independente do peso das questões que o seu discurso quer evidenciar.

E pelo visto a matrioskagem de Tiago Guedes vem de longa data, ainda que o caminho não seja linear. Em 2003, o gosto pelo invisível já aparecia em um dos seus solos iniciais, Materiais Diversos. Uma sequência de movimentos corriqueiros que bem podia fazer parte do cotidiano de qualquer pessoa (até das que nunca foram sequer público de dança) serviu de partitura para acionar a visão além do alcance. E como em um passe de mágica, cenas pulam do mundo da imaginação para encher de significado os movimentos aparentemente banais que ele naturalmente vai desfiando. É assim das abstrações colocadas no palco vazio, que o tudo vai se construindo pouco a pouco, primeiro na projeção do que conseguimos imaginar a partir de cada ação de Tiago, depois no cenário instantâneo que precisamente ele vai montando e desmontando. Chamas de isqueiro e spray com tinta verde ajudando a compor a paisagem no painel de jornais, sacos de lixo que surgem inesperadamente de debaixo de um tapete, deixando a cena azul… E a repetição da mesma sequência de movimentos corriqueiros, agora ganha ares de coreografia. Mais uma vez a opção pela simplicidade gera uma trama complexa de questionamentos e reflexões acerca de processos e procedimentos na criação artística contemporânea. No exercício da matrioskagem o lugar de trânsito é mais confortável, até mesmo porque podemos trazer os materiais diversos – para dar corpo às imagens e discursos desejados – de várias linguagens, do teatro, da música, das artes visuais etc. A lógica de apresentação do cinema mudo que aparece tanto em Matrioska como em Materiais Diversos fala alto, ecoando reflexões: será que a partitura é realmente a mesma ou… O que é que muda no corpo com a presença ou ausência dos diversos materiais? Será que tudo pode ser material para a dança? O que é cópia e o que é original? O que veio antes, o material ou o movimento desenhado com ele?

Experimentando texturas e intensidades diferenciadas na relação com seus tantos objetos cênicos, mesmo quando na versão invisível da coreografia, o criador português apresenta processo e produto ao mesmo tempo. Abre a cortina e deixa ver o antes da cena. Como se montasse um quebra-cabeça de trás para frente, Tiago brinca de novo com a nossa ilusão de ótica e nos leva ao lúdico ambiente do invisível, potencialmente poético, de onde provavelmente nós não vamos querer nem poder sair. Deitados e deleitados nos poemas imagéticos destes Materiais diversos, matrioskar não é só uma necessidade, é um hábito natural que inevitavelmente adquirimos, e que, como diriam os portugueses, “sabe muito bem” (ou traduzindo para brasileiro, tem um ótimo sabor).

Leia também: Conectivos Críticos II

Conectivos Críticos III