Conectivos Críticos II

Abaixo segue o segundo bloco de textos que o idança publica em parceria com a mostra Interação e Conectividade IV, que aconteceu em junho, em Salvador, com organização do Dimenti. Publicaremos as impressões dos críticos convidados do evento – os jornalistas Joceval Santana (BA), Christianne Galdino (PE) e Carlinhos Santos (RS) – em blocos de três textos. A próxima será a última semana.


CIDADE COMPARTILHADA, MEMÓRIA EM MOVIMENTO

Carlinhos Santos

A cidade gesta e gere movimentos. A urbe não cansa de esconder e revelar suas entranhas e seus estranhamentos. Na cidade contemporânea, corporeidade é questão pertinente. Ela configura e problematiza o passar e os passantes. A maquinaria dos gestos desta azáfama, deste vaivém dos grandes centros, engendra uma coreografia de caminhos, um compartilhamento de sinalizações, provisoriedades e possibilidades. Há o percurso e há o muro de impedimento. Existem o cinza da paisagem e a alternativa de tingimento desta paleta gris. No meio de tanta pressa, suspende-se tamanha urgência, tentando ver melhor o entorno e o interno deste corpo pulsante. Três momentos significativos da programação do Interação e Conectividade, protagonizados pelo coletivo baiano Construções Compartilhadas.

Pelo começo, atento ao preciso discurso que nomina o grupo: compartilhamento de propostas, de gestos, de alternativas de inserção de muitos discursos em torno da performance, da urbanidade e da cidade como palco de questões urgentes da arte: (pingos e pigmentos), assim, graficamente enunciando um espaço determinado, extrapola a configuração de sua própria ideia, borrando o entorno, pintando o corpo urbano com seu discurso imagético vibrante.

Há uma possibilidade de olhar para este conjunto de sombrinhas rosas como uma fala sobre bordas e borrões, sobre disciplina e indisciplina na contemporaneidade. Eis que, isoladas, em duos ou trios, as passagens clamam foco, pedem delimitação do olhar, filigrana, pontuação. Quando reunidas, numa mancha fúcsia eloquente ou numa linha rosa que extrapola 40 metros de comprimento, rasgando o horizonte azul da Baía de Todos os Santos, a verborragia desta ação artística é contundente. Ecoa no olho, reverbera um momento, suspendendo o cotidiano, elevando-o para um eterno passageiro, que só restará na memória. Pertence, então, à condição da poética efêmera, que mobiliza quem a vê (o aqui e agora) e sensibiliza o devir (o tal compartilhamento de sensações, emoções, inferências).

Na tangência deste encontro (im)possível, clama-se pelo aguçamento da percepção. E o gesto não é mais apenas o gesto coreografado. É a dissolução desta ação estética, que agora potencializa e replica uma co-evolução: da cidade e dos cidadãos.

Pingos: pontos, referências, resíduos, elos. Pigmentos: esgarçamento, contingência, tessitura, corrente. Pingos e pigmentos, contexto perceptivo que aciona a possibilidade de dialogar com multidões. Uma poética anarco-organizativa: fala de urgências, urgem outras falas. Da Praça Campo Grande ao Solar do Unhão, um percurso que propôs diálogos, ao mesmo tempo em que falou silenciosamente. A natureza do gesto, o trânsito de humanos, as cores do movimento. Habitar a cidade versus hábitos da cidadania: contundência de muitos matizes.

Ao M.U.R.O. e suas espacialidades, então. A intervenção agora se espraia pelo espaço, problematizando as passagens. Paradas e permissões, bloqueios e fluxos. Uma barreira móvel, a mobilidade dos impedimentos.  A argamassa ausente ergue a fragilidade da obstrução. Tijolo por tijolo num desenho ilógico. As falas coladas aos pedaços das peças: lar, retire, fim, imóvel, fronteira, me leve, vim, parece, repare. Textos e intertextos: privado do caminho, que atitude terá o usuário destes percursos? Alguns tinham certeza de que a performance era para a cantora de axé, uma vez que estava em frente ao sólido arranha-céu no qual a estrela vive. Mas os pedaços daquela obra tiveram, enfim, um dos destinos sonhados pelos seus autores: na noite do segundo dia, (eu vi!) os tijolos foram levados por um ambulante. Agora teriam o destino reles a que se destinam? Mas a realeza da arte não está, justamente, em se permitir significativa para quaisquer dos fins?! Da Barroquinha ao Corredor da Vitória, venceu a utilidade do procedimento: para o óbvio e, também, o imponderável. Mão dupla no mapa das possibilidades de significância da ação.

Nas obras inacabadas das calçadas, o assentamento irônico de questões recorrentes sobre público e privado, a segurança dos encastelados (aqueles dos condomínios de luxo) e a insegurança dos que dormem na via. Afinal, aquelas casinholas poderiam ganhar moradores provisórios, assentando ao menos por uns instantes a co-habitação, o blábláblá do bêeneagá, a quimera conjugada em quarto-e-vala. Eis que especulação imobiliária também é uma questão emergente na metrópole pintada de multiculturalidade.

E há, ainda, o desfecho deste design da intervenção: emparedados em sua própria obra, os dois performers alertam aos passantes: cuidado com o cão feroz. Com máscara de cachorro de desenho animado, por trás do vidro do ponto de ônibus, o conceito de vitrine emoldura a situação. Será que aqueles latidos vão acossar o pensamento de quem os assiste? Pelo sim, pelo não, o gesto, por ora, estava acabado. Ou apenas instaurava uma nova arguição, pois aquele muro não existia, aqueles cães não mordiam, aquela casa não era daquela rua. Mas o caminho percorrido, este sim, estava tomado de ritualidades.

Então, no terceiro vértice das construções compartilhadas, Pra Te Ver Melhor, o vetor da descontinuidade. Como ver melhor o entorno, desacelerando o passo, distendendo o gesto, dilatando as pupilas dos que, às vezes, usam tapa-olhos imaginários, seguindo sua vida de gado (povo marcado, povo feliz)?

Corpos em latência tentam por lente nas ausências aglomeradas das paisagens humanas. Invisíveis nos movimentos pequenos, flagrantes e eloquentes, dada a sua imobilidade diante da velocidade da praça abarrotada, aqueles bailarinos geraram reações distintas: o morador da rua (sim, eles existem e têm endereço fixo, ainda que não oficializado) não acolheu o estranho invasor. Ao mesmo tempo, logo na esquina, um gesto solidário perguntava à performer se ela estava bem, se precisava de ajuda. “Não, é assim mesmo”, acudiu o vendedor, que já captara que aquele “assim mesmo” era de uma outra ordem, um tanto distante de seu vocabulário, mas ainda assim, “assim mesmo”. Na praça, piedade aos ignorantes da verborragia, reverência aos cientes dos limites.

Quais eram as pessoas daquele paço? As corriqueiras, aturdidas em seu cotidiano urgente de sei-lá-o-que ou as que sabiam ao menos um quê do que gestavam em suaves movimentos? De quais corpos se constitui uma cidade? Dos tantos anônimos, que cumprem sua coreografia autômata ou dos que, autônomos e autores, querem dançar em torno de visibilidades? Qual o olhar que pode, hoje, ressignificar a dança? Na praça, no contraste, no fluxo (des)contínuo, as respostas são apenas novos impulsos. E as perguntas é que instauram e acionam outras trocas.

Continuidade e descontinuidade, partilhamento das construções, redimensões: três variações de um discurso sobre o lugar de gentes e gestos. Ações contínuas, reverberativas, movimentos que rabiscam a cartografia da memória, a lembrança de um contexto. O mapa do corpo redesenhando a paisagem. Coreografias urbanas redimindo o cimento árido, as paredes do isolamento, as janelas sem vista, as esquinas dos desencontros. A cor desta cidade são eles.

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MARCELA REICHELT E AS ESCRITAS DO CORPO

Christianne Galdino

Como risco em papel / Foto: Tiago Lima

Escuro completo e um aparente vazio. Mas algo está acontecendo no palco. Ela está dançando no escuro mesmo… Ouvimos o movimento, sentimos a dança respirando, antes mesmo de podermos distinguir nitidamente qualquer imagem.  Escolhendo essa cena como início, Marcela Reichelt aciona em nós uma outra percepção, como se desejasse inaugurar uma forma diferenciada de nos relacionarmos com a arte, como se quisesse ativar em nós outra visão. A sensação é de estarmos imersos em uma escuridão absoluta, que vai abrindo brechas e revelando fragmentos de um corpo em movimento dançando para si mesmo. Talvez a ambiência criada, e essa postura da intérprete, que parece ignorar a presença do público, emprestem aos momentos iniciais de Como risco em papel características de voyeurismo e um caráter sensual, que se repete em várias cenas. Pelas frestas, enxergamos trechos da escrita corporal de Marcela, e abrem-se imediatamente muitas janelas de leitura. Como um trailer de filme e as orelhas das publicações, a artista apresenta-se em flashes, construindo uma sucessão de imagens marcantes, que transbordam força poética com uma sutileza desconcertante. A trilha sonora, uma criação primorosa de Diogo de Haro, surge com ar de música incidental, ajudando a criar pontes com o filme de Peter Greenaway, O Livro de cabeceira, que inspirou este segundo trabalho da bailarina Marcela Reichelt, agora na missão de intérprete-criadora.

Uma aproximação visível com as artes visuais aparece em todo momento, seja nos desenhos coreográficos majoritariamente imagéticos, seja na presença de certos objetos cênicos e dos vídeos que são exibidos na performance. Porém, as cenas projetadas soam como capítulos à parte, guardam pouca relação com as partituras de movimento apresentadas por Marcela Reichelt, funcionando como complemento, algumas vezes, mas mostrando sempre uma trajetória autônoma. É como se dois espetáculos se intercalassem, e dialogassem em alguns momentos, porém cada um permanecesse no seu lugar. Mas ainda que se perca um pouco do ritmo da cena durante a exibição dos vídeos (principalmente no caso do vídeo que apresenta uma longa performance de rua de um bailarino), a dança escrita por Marcela, as falas do seu corpo se fixam na memória com um poder encantador tamanho que apagam qualquer possível descompasso. É difícil permanecer inerte, alheio diante do encontro com o corpo nu visceral de Marcela transmutado em bicho, em papel, gritando lentamente e em silêncio, a fusão entre corpo e escrita, e as tantas questões aí atravessadas. Mesmo quando a cena final tenta devolver a artista à escuridão absoluta do início, como se tudo e inclusive a identidade e as vivências impressas no corpo pudessem ser apagadas, a imagem daquele banho de noite se agiganta e se acende cada vez mais na nossa sensibilidade e na nossa imaginação. E dali não deve sair por um bom tempo. Delicadeza, mistério, sensualidade, enigma, oriental, ternura, feminino: são alguns termos que poderíamos utilizar se fosse possível traduzir em palavras Como risco em papel.

Talvez esse trabalho tenha sido rascunhado desde a criação do seu solo de estreia, Occo que, na verdade, ao contrário do que o título sugere, é repleto de células narrativas justapostas ou, em outras palavras, tem dentro dele embriões criativos capazes de gerar vários espetáculos. Apesar de Occo incluir ainda muito da movimentação do Grupo Cena 11 (como algumas quedas e a opção de organizar o espetáculo em cenas fragmentadas, independentes entre si e desconexas), onde ela atuou como bailarina até o ano passado e onde ainda estava quando criou essa obra, já vemos traços autorais no gestual e nas escolhas estéticas, que são confirmados e desenvolvidos em Como risco em papel, de 2009.

Estou falando de uma coisa difícil de explicar, que é cinética mesmo. É incrível, por exemplo, a exploração de torções que ela apresenta, indo até o limite do improvável, em uma deformação ou nova modelação corporal a cada “pose” e que, além de trabalhar a desconstrução de imagens, nos faz também refletir acerca das múltiplas identidades que assumimos no mundo contemporâneo. Impressiona a disponibilidade desse corpo descobrindo seu idioma particular, seu sotaque próprio, que sempre terá inevitáveis tons dos vocabulários que ele aprendeu a dominar. Isso é fato, e não é ruim nem estranho que assim seja.

O diálogo com as artes visuais já estava presente em Occo, algumas vezes mais bem resolvido, como na cena do vídeo das formigas simultâneo a uma sequência de movimentos de chão da bailarina, por exemplo. Mas eu ia dizendo que o Occo de Marcela Reichelt não tem nada de oco, é cheio de assuntos, o oco talvez seja então uma referência aos questionamentos que motivaram a criadora? É uma possibilidade de interpretação, porque estão em jogo nesse trabalho muitas questões relacionadas ao corpo social, aos estigmas culturais, aos estereótipos do belo e do feminino, a toda forma de prisão, sanção e convenção socialmente estabelecidas. A amplitude da temática e uma certa ansiedade criativa da, na época (2007), estreante coreógrafa, são visíveis no resultado cênico, que carece de maior foco nas escolhas para se realizar mais plenamente. Nada que um processo natural de amadurecimento da obra não consiga concretizar rapidamente. Ver Marcela Reichelt em cena é ver uma coleção de belas e fortes imagens, é ver um vocabulário de dança no momento em que está sendo gerado, é ver um corpo escrevendo poesia…

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FLUIDEZ E CONTINUIDADE COMO FORÇA POÉTICA NA OBRA DE CLARA TRIGO

Joceval Santana

Há uma necessidade em entender o encadeamento, a sequência, o fluxo e a organicidade do movimento que permeiam os trabalhos de Clara Trigo. Neles, que integram o repertório da Sua CIA, a busca da continuidade e de como ela se realiza de maneira fluida – entendendo fluidez, aqui, como ausência de ruptura abrupta e de fragmentação – são a força motora e poética do corpo, e também a sua principal maneira de estabelecer comunicação com outros elementos expressivos, sejam visuais ou sonoros. Não à toa, tem sido na poesia (falada ou cantada) que Clara Trigo por vezes tem buscado esse diálogo.

Deslimites / Foto: Tiago Lima

Coincidência ou não, dois dos seus espetáculos, Deslimites e Estudo para Lesma, que experimentam esse fluxo de maneira incessante, foram apresentados no Interação e Conectividade, oferecendo uma possibilidade de estreitamento na averiguação daquilo que já considero um traço distintivo na sua obra. Mais do que para mero efeito de comparação, os dois se propõem um espelhamento e, por ele, teimo em chegar a uma coerência contrária: Deslimites é mais um “estudo” dessa possibilidade de movimentação investigada por Clara; e Estudo para Lesma, uma “finalização”.  Olhando por este jogo de reflexos, os dois se tornam bem-sucedidos, tanto numa certa incompletude do primeiro, quanto no acabamento do segundo.

A “narrativa” de Deslimites é linear: uma massa corpórea se desloca no espaço. A sua vocação é o deslocamento, a sua trajetória e, ao que parece, a sua forma de vida – micro ou cósmica. A primeira vez que vi Deslimites foi há cerca de quatro anos, na mostra do Rumos Dança, projeto de estímulo à pesquisa (o que, agora, me faz ainda compreender este trabalho com um “estudo”, distanciando-me da questão mais ampla de que toda obra seria um processo, blablablá). Naquele momento, Clara Trigo apresentou seu trabalho num palco italiano, o que reforçava uma imagem da linearidade da trajetória, que seguia de um lado a outro do palco. Dessa vez, o espaço cênico e a forma de deslocamento escolhidos possibilitam outra perspectiva e imersão: a dançarina cumpre seu percurso por entre a plateia, disposta no chão.

Nessa outra configuração, o corpo já não segue uma trajetória linear, ele está solto num espaço, a mercê apenas na força da gravidade e do encontro com outros corpos. Esses outros corpos, obstáculos, evidenciam a vocação de aquele organismo continuar em movimento; a cada choque, ele revê seu caminho, insiste, incorpora, desvia, mas jamais para. Seguiria assim ad continuum em um sistema, seja ele celeste ou orgânico? Haveria vida sem movimento?

Clara transforma suas proporções (sim, ela é uma mulher grande) numa massa compacta, “disforme”, cujos membros, tronco e cabeça estão em constante redefinição formal, plena de uma sinuosidade surpreendida por ângulos, pontas e arestas. É uma órbita irregular, autossuficiente e harmônica, na qual o conhecimento da existência do outro é meramente circunstancial. Cenicamente, seu elemento de diálogo é a música de Arnaldo Antunes: sua poesia concreta e a gravidade da sua voz também formam um corpo sonoro igualmente compacto – embora, contrariamente, repleto de fragmentação e mudanças de imagens/paisagens, o que amplia as possibilidades de interpretação de Deslimites. A música também parece que caminha pela continuidade infinita, tem anticlímax e chega a aparentemente anunciar o seu final.  Ao fim, fica a sensação de que Clara poderia não “encerrar” (no palco) seu espetáculo, apenas seguir adiante, não teve principio, não tem fim… Mesmo que, de alguma forma todo espetáculo tenha começo e fim, blábláblá.

Estudo para Lesma é o aproveitamento de algumas dessas características em prol da narrativa de uma fábula, alcançando um resultado maior de encantamento e comunicação imediata com o público (a princípio, infantil). O corpo maciço e a flexibilidade de Clara Trigo, bem como a sua movimentação “disforme”, sinuosa e angular, estão em favor da interpretação do molusco terrestre, que escorrega, entre contorções e “desvios” de rota frente a obstáculos, sobre o próprio abdômen. Basicamente, esse corpo vai assumindo formas de se deslocar ao longo de um percurso, enquanto a música de Eduardo Pinheiro, sugestiva de imagens e paisagens, conta a história de um amor entre uma lesma e um percevejo.

Mas o casamento se dá mesmo com os desenhos, feitos à mão e projetados na parede, dentro dos quais o pequeno animal do título se desloca. É uma estratégica cênica simples e funcional: permite um jogo de proporções e texturas, ludicidade, conforto ao olhar e delicadeza na junção com dança e música. Executados ao vivo por Isbela Trigo, os desenhos formam um cenário mutante de paisagens e, em sua própria realização, também propõem movimentos, que algumas vezes acompanham a movimentação de Clara, ou se deixam por ela acompanhar, difícil dissociar.

Assim, se penso “cenicamente”, posso dizer que Estudo para Lesma aproveita – e bem – alguns procedimentos estudados por Clara em Deslimites. Mas, se recorro a outro de seus espetáculos, vejo que algumas questões de Deslimites já se apresentavam antes em Ideias de Teto (como a deformidade) e voltam a aparecer em Banana da Terra (como a continuidade gestual), e a brincadeira com a poesia e a palavra, aqui e ali, a busca do lúdico, lá e cá… Enfim, parece-me que Clara me diz também que toda sua obra, até aqui, é estudo. Estudos.

Leia também: Conectivos Críticos I

Conectivos Críticos III