Ancora do Marujo / Foto: João Milet Meirelles
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Conectivos Críticos III (2011) – Caixas, sex bombs, superpoderes e o futuro da humanidade

(Texto dedicado a Cristiane Bouger e feito pra ler ao som de Sex Bomb, do Tom Jones)

Tava vendo agora um seriado chamado Terra Nova. Estreou esses dias, é de ficção científica. Tipo assim: Século 22, a humanidade poluiu tudo o que podia, superpopulação, apocalipse iminente, e uma família – papai policial, mamãe médica, um casal de adolescentes e uma menininha fofa – viaja no tempo pra tentar a vida na Terra paleozóica, junto com outras famílias parecidas. Uns são comidos por dinossauros, blablablá, não vem ao caso.

O que vem ao caso é o incômodo que eu sinto toda vez que eu vejo histórias futuristas e percebo que os autores se ocuparam tão pouco em pensar nas estruturas sociais, em pessoas. Os caras pensam em tecnologia, figurino, cenário, consultam cientistas e especialistas pra pensar nessas coisas. Só que ninguém pensa que talvez, daqui a um século, nem todas as mulheres tenham cabelo comprido e os homens cabelo curto, que talvez existam mais famílias com estruturas diferentes de papai-mamãe-filhinhos, que talvez nem todos os homens sejam provedores e nem todas as mulheres sejam nutridoras, que existam alternativas à monogamia, que nem todos os corpos sejam magros, malhados. Que talvez os militares não estejam no comando. Que talvez existam viados, transexuais e travestis em cargos de poder. Que o que é considerado bonito e normal hoje talvez não seja daqui a um século.

E que hoje mesmo, aqui entre a gente, tem muitas pessoas que vivem de formas muito diferentes do futuro apresentado em Terra Nova. Já existe – pasmem – homem de cabelo comprido e mulher de cabelo curto. Até de cabeça raspada já vi. Já existem famílias de mamãe-mamãe-filhinhos, famílias de amigos, famílias de amigo-amigo-prima-filhinhos, existem famílias sem filhinhos. Existem – pasmem – mulheres com mais de 50 quilos que são bonitas e normais. Existem – pasmem – mulheres que não querem casar, nem ter filhinhos, nem um homem protetor. Rico empresário tatuado, travesti professora, viado militar, nada cabe nesse futuro. Só o que já foi reconhecido e eternizado como normal, consagrado pelo uso.

Agora, justamente os americanos, que criaram e criam séries como essa, também usam bastante uma expressão assim: “to think outside the box”, “pensar fora da caixa”. Que caixa é essa? O que é pensar fora da caixa e pra que serve? Como faz pra pensar fora da caixa?

Performance in-box

O meu assunto aqui é outro, na verdade. Eu queria falar dos trabalhos que foram apresentados no dia 13 de junho, na programação do Interação e Conectividade V: Pau Brasil, de Aldren Lincoln, 44, de Simone Gonçalves e Salmon Nela, de Giorgia Conceição. As três performances aconteceram na mesma noite – que a gente estava chamando informalmente de “Noite Queer”, ou “Noite Bicha” –, após uma conversa com o Eduardo Bonito e a Isabel Ferreira sobre o projeto com.posições.políticas e uma introdução do Jorge Alencar, que leu alguns trechos do seu texto Cirque de Solange.

O Âncora do Marujo, lugar onde tudo isso aconteceu, criou uma moldura muito específica para essas ações, pela própria estrutura do lugar, mas principalmente pelo histórico.

O Âncora é o meu segundo lar em Salvador. É uma casa de shows, boate, bar, que aos poucos foi se tornando um local de resistência da cultura do transformismo e dos shows de dublagem que acontecem lá todas as noites (com exceção das segundas, quando não abre). É um lugar onde os gêneros derretem e se misturam, onde você pode ser bicha, mulher, bofe, travesti, sapatão, pode passear entre essas coisas, não ser nada, sentar quietinho e assistir aos shows anonimamente, a não ser que alguma das artistas que se apresentam lá com frequência – como Valerie O’Hara, Carolina Vargas, Beatrice Mathieu, Larissa Bravo, Gina de Mascar, Sher Marie, Rainha Loulou, Mitta Lux, Scarleth Sangalo, Marina Garlen – resolva te convidar para o palco e te abordar com perguntas indiscretas.

Pra mim, que estive trabalhando em Salvador esses tempos, acabou virando uma casa de família, onde eu podia chegar mais cedo, assistir à novela das oito com Fernando, Wilson e Angélica, que trabalham no bar à noite, e moram no andar de cima, no mesmo prédio.

É um lugar pequenininho, uma caixinha, com um palquinho no fundo, e atrás dele um camarim apertado, onde eu já tive o privilégio de observar mais de dez bichas em pleno processo de transformação ao mesmo tempo. Na noite em questão, o Âncora ficou ainda menor, ocupado pelo público do festival. Sem ventilação, abafado, abrigando uma conversa sobre arte contemporânea sufocada por outras conversas, barulhos de copos, barulho da rua, o que me fazia pensar o tempo todo que tinha sido uma escolha errada realizar aquele evento lá. Até que começaram as performances.

Primeiro a Giorgia Conceição, com Salmon Nela. Com o corpo salpicado de paetês, os peitos cobertos por uma espécie de bijuteria gigante, preta, o rosto quase todo coberto por uma maquiagem preta superelaborada, ela oferece pedaços de salmão para o público, numa bandeja. Isso tudo ao som do Funk do Salmão, com música e letra da própria, e gravado em parceria com o músico Paulo de Nadal.

Simone Gonçalves apresentou 44. De calça larga azul clara, uma camiseta regata branca, tênis e uma maquiagem exagerada, com direito a cílios postiços, batom vermelhíssimo e sombra azul, ela dança uma coreografia marcada por referências fortes da dança de rua e do axé. A música e fundo é o clássico Não tente me impedir, de Silvano Salles, o cantor apaixonado.

O Pau Brasil, do Aldren Lincoln, tinha uma estrutura dramatúrgica mais formal. O que eu quero dizer com isso é que o trabalho se sustenta numa sucessão de acontecimentos específicos e que depende de um público que acompanhe do começo até o fim. Aldren dança ao som de Perdeu, do Caetano Veloso, faz um strip-tease pela metade, se exibe com peitos de manequim, se espanca violentamente com o próprio cinto, e depois começa a contrair separadamente pontos muito específicos do corpo (tipo contraindo um pedaço do abdômen, depois uma parte do quadríceps, depois um peito só, dá uma certa aflição), convida gente do público pra tocar em partes do corpo dele.

Giorgia apresentou ainda uma outra performance, surpresa pra gente e pros organizadores do evento, em que ela fazia um strip-tease clássico, num clima de cabaré dos anos 1940, com espartilho e peruca loira, que terminou numa dança dos peitos e banho de champanhe.

A moldura e o quadro

Por um lado, o Âncora do Marujo e o contexto queer – termo que não me agrada nem um pouco, mas que eu não tenho conhecimento suficiente pra recusar, nem propor outro pra substituir limitam o que se pode ler nesses trabalhos. Fiquei imaginando que ao ver a Simone Gonçalves dançando num evento de dança de rua, por exemplo, talvez eu perdesse menos tempo tentando adivinhar se ela é lésbica ou em criar relações de significado entre os cílios postiços e a calça de b-girl. Mas outro contexto criaria outros limites, outra moldura. Talvez eu me ocupasse mais com a relação entre a música romântica e a dança de rua, sei lá.

Por outro lado, o que o palco do Âncora fez com esses trabalhos foi evidenciar o que ele já evidencia por vocação: a história daqueles corpos e a capacidade intrínseca de seduzir. Quase todas as noites, aquele camarim recebe caras comuns, às vezes de boné e bermuda, uns bem tímidos, que saem de lá transformados em mulheres enormes, sensuais, avassaladoras.

No trabalho dos artistas daquela noite, esse contexto fez com que eu me interessasse menos em saber “do que eles estão falando”, ou mesmo pelo que estavam fazendo, e fosse aos poucos me deixando seduzir por cada uma daquelas três presenças fortes e únicas.  E a sedução parece ser mesmo um ponto-chave e uma técnica que os três dominam com proficiência. Mais do que falar sobre sexualidade, gênero, queer, o que quer que seja, eles performam, com muita franqueza e não por isso com menos glamour, uma mistura entre a própria sexualidade vivida e a imaginada, passeiam entre a própria experiência de vida e ideais coletivos de beleza, força, sensualidade. E isso coloca em cheque muito do nosso imaginário.

Simone, com um corpo forte, lindo e ágil e um rosto de modelo, ao mesmo tempo escondido e ressaltado por uma maquiagem de boneca, que não é sempre que se vê na pele de uma mulher negra. A Giorgia, gorda e linda, pornográfica e quase tímida, chiquérrima, mulherão e menininha ao mesmo tempo. O Aldren, moleque quietinho, de aparelho nos dentes, que eu tinha visto uns dias antes de jeans e allstars, e que ali era um cara gigante, go-go boy, sadomasoquista, manipulador, violento e submisso.

Por meio da sedução, o que eles fazem é embaralhar um monte das imagens que a gente já tem gravadas na cabeça e enfiar entre elas, às vezes à força, às vezes com mais delicadeza, outras possibilidades. Tem uma singularidade em cada um desses três corpos que não caberia certinho em nenhum contexto e que necessariamente produziria conflito e movimento em qualquer lugar.

Quem tem cu tem medo

E eu fico achando que, pra pensar fora da caixa, precisa viver, ou ter vivido fora dela. Precisa não caber direito, não se ajustar, não estar totalmente confortável ali. Porque senão, não tem referencial, não tem nem parâmetro pra entender o que tá fora, o que seria esse fora.

Não é à toa, por exemplo, que é tão difícil convencer brancos da existência do racismo, heterossexuais da homofobia, homens do machismo, magros da opressão que representa o corpo esbelto e sarado da publicidade. Se você não tem motivação pra sair de onde está e se colocar no lugar do outro, você simplesmente não desenvolve essa habilidade.

O fora da caixa cria histórias, assim como necessidades próprias. Você desenvolve outros superpoderes, conecta outros tipos de informação, olha pras pessoas de outros jeitos.

Por isso, a sedução e a sexualidade presentes nesses trabalhos têm um caráter revolucionário. O que se está propondo é que a gente substitua, mesmo que temporariamente, as imagens que estavam alojadas na nossa memória sob as legendas “sexy”, “bonito”, “bonita”, “atraente”, “desejável”, “glamuroso” por outras imagens que a gente não imaginava que coubessem ali. E que talvez não caibam mesmo, em lugar nenhum, porque não são simples. São contraditórias, complexas, apontam pra muitos sentidos, e de certa forma são uma afronta ao estabelecido, à convenção.

Isso por uma via que não é só racional, que não segue necessariamente uma lógica explanatória, mas acessando principalmente os nossos desejos, fetiches e mitologias. Acessando o que tem na gente pra além do discurso e da análise, com um grande potencial de transformar, de ajudar a implodir o futuro hetero, branco, cristão, militar, literalmente paleozóico, monogâmico, olavodecarvalhiano, magronormativo dos autores das histórias de ficção científica.

Porque, no final das contas, o desajuste é de todo mundo. Ninguém cabe certinho na caixa da normalidade, e todo mundo já foi ameaçado por ela. Já correu pelo menos o risco, por menor que fosse, de ser empurrado pra fora em algum momento da vida. O que falta, talvez, é ver o fora da caixa como um lugar que também pode ser desejável. Ver que fora da caixa também se vive, trabalha, come, ama, trepa, dança, até reza. Que fora da caixa não é definitivo: dá pra sair, voltar, dar um tempo na portinha, conhecer outras caixas.

Só que fora sempre tem mais espaço.

* Agradecido ao Dimis Jean Sores, pela olhada final.

Gustavo Bitencourt é artista, gordo e bem viado, dependendo do dia.