1POR1PRAUM / Foto: Tiago Lima

Conectivos Críticos III

Abaixo segue o terceiro e último bloco de textos que o idança publica em parceria com a mostra Interação e Conectividade IV, que aconteceu em junho, em Salvador, com organização do Dimenti. Confira as três últimas análises de espetáculos feitas pelos críticos convidados do evento – os jornalistas Joceval Santana (BA), Christianne Galdino (PE) e Carlinhos Santos (RS). Aproveite e leia os textos anteriores!

NIETZSCHE POR FUKUSHIMA: O CANSAÇO TRANSFORMADOR

Christianne Galdino

Ter fé é dançar à beira do abismo – sentenciou Nietzsche no final do século XIX. E como seria essa arriscada dança dos crédulos, imaginada por ele, hoje, no futurista século XXI? Mesmo sabendo que o filósofo estava usando uma metáfora, foi inevitável para mim, depois de assistir ao mais recente trabalho do bailarino paulista Eduardo Fukushima, não fazer uma associação imediata à famosa frase. Partindo do seu próprio corpo, e provavelmente das suas crenças e descrenças, Fukushima decidiu não ficar somente à margem, na iminência de, à beira do abismo… Ele mergulhou no seu próprio abismo, e dessa queda voluntária e intencional trouxe sua dança. Caído no abismo, o bailarino começou uma viagem exploratória, uma expedição pelos seus gestos e movimentos para ver o que naturalmente permanecia. O que se incorporava. O que era seu. Usou o que o seu corpo conhecia para descobrir o que não conhecia, expandindo os movimentos que já havia experimentado em fases anteriores da pesquisa. Nem teorias nem temas, somente o corpo e essa vontade de autoconhecimento guiam esta sua busca como intérprete criador há pelo menos quatro anos, sendo ponto de partida e chegada de três solos e item principal do seu processo criativo. E por falar em processo – atual palavra-vedete dos eventos, editais e discursos da dança contemporânea – seu trabalho mais recente, Como superar o grande cansaço? (2010), aproveita bem a natureza inacabada dos processos, abrindo uma janela e mostrando pra gente em tempo real essa pesquisa em curso. Os improvisos diários feitos na sala de dança chegam ao palco, mantendo a cara de ensaio. A escolha de um figurino casual, a ausência de cenografia, iluminação simples, e a forma de iniciar e finalizar o solo ajudam a estabelecer o caráter processual.

Em cena, vemos um bailarino aparentemente exausto insistindo em se cansar mais e mais, e parecendo nunca chegar ao esgotamento total. Fukushima partiu de seus depoimentos pessoais, das situações/condições do seu corpo, suas aflições e deficiências e foi levado literalmente ao chão, mas não ao fundo do poço, e sim a um solo fértil que vai florescendo novas possibilidades coreográficas a cada toque. Cobrindo o chão de movimentos fragmentados, martelando todo o espaço ora com as pernas, ora com os cotovelos ou a cabeça, ele descobriu seus cansaços, físicos, psíquicos, existenciais. A trilha sonora, criada pelo próprio Fukushima em parceria com Felipe Ribeiro e inspirada em improvisos de Henrique Iwao, Mário Del Nunzio e Jean Pierre Carón, reforça as marteladas, parecendo indissociável da movimentação. Ele trata então de preencher todo o espaço com essa cansativa partitura, mas o que poderia ser motivo de desistência se transforma em insistência de movimentos e gestos. Qualquer semelhança com os estudos do cansaço e a transvaloração proposta por Nietzsche não é mera coincidência. A inspiração veio do filósofo mesmo, mais especificamente das discussões sobre o niilismo, onde Fukushima descobriu a vontade de potência, o niilismo ativo como caminho para sua dança e sua vida, tal como Nietzsche, que somente na enfermidade diz ter encontrado a razão. A sensação que tivemos é que quanto mais cansado o bailarino ficava, mais dança conseguia gerar. Assim foi até mais fácil entender a vontade de potência e o niilismo ativo de Nietzsche, vendo essa ideia incorporada no cansaço produtivo de Eduardo Fukushima.

Apesar do caráter biográfico confesso, a dança do jovem criador não tem pretensões de expressar ou narrar acontecimentos ou sentimentos, não quer contar histórias nem defender identidades. Ao contrário disso, ele tenta apagar o sujeito que executa a dança para a dança se tornar o assunto. Bebendo em fontes filosóficas e voltando todas as suas atenções de pesquisador para questões corporais, Fukushima encontrou um cansaço que não é sinônimo de entrega/desistência, que não se acomoda, que é impulso transformador; convertendo em movimento o niilismo ativo de Nietzsche. E como em uma sessão de hipnose, a repetição de sequências acaba levando o público a embarcar naquele estado, participar do processo, e experimentar o cansaço ali exposto e sua vontade de potência intrínseca. Ufa! É verdade! Nós cansamos também! E Como superar o grande cansaço? A ideia deste artista não é encontrar respostas… Por isso mesmo, Fukushima escolhe multiplicar as perguntas, transcrevê-las em linguagem corporal, revelando aos poucos um potente vocabulário que, certamente, ainda tem muito o que escrever.

1PORQUEM, PRAQUÊ, PORQUAL… DANÇA

Carlinhos Santos

1POR1PRAUM / Foto: Tiago Lima

1POR1PRAUM / Foto: Tiago Lima

A crise das companhias estatais de dança é recorrente. Ora por falta de verbas, ora pelos humores das gestões públicas, ou ainda pelo tipo de importância atribuída a estes coletivos de dança. Há, ainda, um embate estético que se alinhava no entremeio desta rede de situações, nestes compartimentos sobre possibilidades e imprevisibilidades. 1POR1PRAUM, que o Balé Teatro Castro Alves mostrou na programação do Interação e Conectividade, evidencia algumas destas questões.

Depois de muitos anos de trabalhos em sala, o grupo decidiu ir à rua. E o fez em meio a um momento delicado de sua história de 29 anos, no descompasso de espera sobre a renovação de seu grupo de intérpretes, a continuidade de alguns de seus bailarinos na companhia e, ainda, no estado das coisas que repercute no corpo de baile estável/instável.  O trabalho sinaliza também a chegada de Jorge Vermelho à direção artística do BTCA. Ele assina a concepção artística, com supervisão geral de Renata Melo.

Na apresentação, Vermelho diz que aposta na identidade destes corpos maduros. Quer buscar na individualidade de um (bailarino) a solução do caminho pra um outro (grupo de bailarinos).  Este movimento de fora e dentro, das partes tentando arranjar o todo, também aparece na estruturação do espetáculo que se vale de cabines individuais, recebendo um a um aqueles que, na praça, decidem assistir ao que está nos confessionários. O nome escolhido para os pequenos palcos é igualmente significativo. E como querem confessar estes corpos ditos maduros! Jogam-se em solos desbragados, sofridos, frágeis, irônicos, irreverentes, rumorosos, cômicos e, também, trágicos.

Nos 21 trabalhos mostrados pelos bailarinos-intérpretes há uma miscelânea de falas.  Desenham-se mapas imaginários, dança-se em torno deles. Há cartas destinadas a…, há busca de autocontrole, há descontroles e desencontros. Pequenas narrativas de um mundo de conexões possíveis: as internas e externas que, na verdade, seguem em simultaneidade: isolamento e conjunto, convenção e transgressão (sapatilha e tênis, estetiza o material gráfico).

Cena recortada: num destes cubículos, grita o gesto solitário de um destes bailarinos, cujo mote da ação é tentar falar. Sem conseguir. Enquanto o personagem gagueja, alguns do público choram. Por quem se chora, do que não se consegue falar? Por que se dança, pra quem se quer dançar? Balé de Tantas Contingências Artísticas.

Qual seria o discurso central deste 1POR1PRAUM? Talvez seja sobre o imponderável da estrada que, percorrida, pesa tanto quanto o descaminho que pode se anunciar para mais esta companhia oficial? Parênteses: em Caxias do Sul (RS), a companhia municipal que já foi APCA agora segue em (des)compasso lento.

Sintomático, também, que na semana em que o BTCA estava na praça, na programação organizada pelo Dimenti, tentando se mostrar visível para o corpo da cidade, o palco principal do Teatro Castro Alves recebia a milionária São Paulo Cia de Dança. É também disso que a montagem fala.  Pois este é, de fato, mais um dos nódulos da rede de, repita-se, possibilidades e imprevisibilidade dos caminhos da dança no Brasil.

Como recuperar a potência perdida, salvaguardar a excelência que já esteve na sala grande e, hoje, decide perambular por praças, ruas e cidades, em busca de outros públicos ou, ainda, cumprindo o decreto oficial da itinerância? Partituras repartidas, fragmentos de um novo arranjo, re-inserção da companhia tradicional e oficial, que já soprou o novo pela baía de santos, nas possíveis conexões e interações do contemporâneo. Seria o sólido trajeto agora apenas uma espuma etérea nesta maré sempre novidadeira de tendências e urgências?

Talvez seja por isso que o BTCA tenha criado pequenos oráculos por sua dança. Tendas de milagres solitários coreografando/confessando ainda alguma esperança. Segredos contados e repartidos, escancarada vontade de se dizer significativo para estes tempos aquosos, escorregadios, voláteis e volúveis.

Nos confessionários da praça, o Balé do Teatro Castro Alves narra suas dores e dramas, põe em movimento a sua dança, agora pisando em novos territórios, ainda que poucos chãos da contemporaneidade se mantenham intocados.  E porque o percorrido é significativo, dá contundência a estas falas recortadas e fragmentadas, pode-se fragmentar também o título, tentando replicar a obra: 1PORQUEM, PRAQUÊ, PORQUAL.

DE ESCONDER PARA LEMBRAR – UM VASTO MUNDO DE REFERÊNCIAS, RECURSOS E MEMÓRIA

Joceval Santana

De esconder para Lembrar / Foto: Tiago Lima

De esconder para Lembrar / Foto: Tiago Lima

O encenador, coreógrafo e dançarino português Tiago Guedes disse que sempre gosta de conversar com os “miúdos” após o espetáculo, porque eles sempre têm perguntas interessantes. Foi curioso, pois, logo depois de ouvi-lo, uma criança acompanhada dos pais, que assistira ao espetáculo Matrioska, comentou que era “uma peça diferente, diferente MESMO”. O “mesmo” saltou aos meus ouvidos, assim, em caixa alta.

Tendo visto o instigante e imaginativo (poucos recursos cênicos muito bem aproveitados) trabalho que Tiago montou com seus intérpretes, a equação parecia simples: espetáculos interessantes despertam perguntas interessantes. Aquele garoto certamente as tinha… E a sua avaliação do espetáculo – diferente MESMO – me trouxe de volta à questão de que devemos não só ouvir mais as crianças, que acredito com suas reações mais genuínas e menos “comprometidas” ou contaminadas, mas, principalmente, oferecer-lhes oportunidades de exercitá-las.

Dia seguinte, ao sair do De esconder para Lembrar, da companhia mineira Meia-Ponta, ouvidos atentos, escutei de outro menino: “muita coisa, né, mãe?”.  Novamente, a avaliação sintética, direta, que casava com a minha sensação de que o espetáculo pecava pelo excesso. O “muita coisa” podia ser o figurino, o timing dos jogos interativos, a narração (principalmente a cena da história contada pela repetição com acréscimo), as referências ao universo infanto-juvenil (do esconde-esconde aos videogames, do trava-língua aos super-heróis)…

O excesso de elementos, dentro de uma mesma estrutura narrativa – com exceção para os recursos coreográficos, estes, sim, bem dosados ­– resultou num espetáculo volumoso, por assim dizer, que certamente tenta conquistar a atenção da plateia mirim pelo que julga ser a sua “língua”: seja imagética (a desordem dos quartos e dos quintais), narrativa (a coerência própria na passagem de uma brincadeira a outra e na interferência dos integrantes no desenvolvimento e desfecho delas) e de interpretação (com trejeitos e dicção que costumamos associar às formas como as crianças se expressam).

Sem contar uma história com princípio, meio e fim, daquelas que costumam propor uma “moral”, e com um razoável arsenal de elementos cênicos e fontes dramatúrgicas, De Esconder para Lembrar parece oferecer muito material lúdico e interativo ao seu público-alvo e também aos adultos que os acompanham, recorrendo à memória afetiva da sua infância, através das brincadeiras que ficaram ao sabor do tempo. Oferece muito; instiga pouco. Eu, adulto contaminado e comprometido, não senti alguma nostalgia de ser criança e ter licença para fazer perguntas interessantes.

Leia também: Conectivos Críticos I

Conectivos Críticos II