Contra a falácia da diversidade, a constituição do comum

Findo um ano – E que ano trabalhoso! -, somos assaltados pelas previsões costumeiras. A necessidade de controlar o futuro a partir da diminuição da margem de risco toma cores tupiniquins na voz de gurus e macumbeiros de plantão prontos a nos encher de presságios acerca daquilo que de fato desconhecemos. O fim do ano é sempre um marco – uma lembrança retomada de nossa ignorância e nossa incompetência em compreender e manejar o fluxo do tempo (o tão propalado devir).

De todas as previsões que ouvi, uma me despertou especial atenção: neste ano que ora se inicia não sairemos do lugar, não conseguiremos nada fazer a não ser contando uns com os outros. A experiência da partilha – das decisões às ações, das ações à regência de seus desdobramentos – se impõe como urgência e necessidade. Mais que isso, ela se impõe como modo regulatório novo das relações. Aí toda uma sabedoria que a era Obama nos ensina. A chegada de um Hussein à Casa Branca enseja uma série de importantes e novas representações de nossa coletividade que toca de modo bastante íntimo naquilo que o filósofo Antonio Negri recolhe da quase simplória palavra comum para desenhar conceitualmente uma nova categoria a nos informar acerca de nossa condição contemporânea.

Ainda em 2008, inspirei-me na palestra de Negri intitulada A constituição do comum, proferida no Brasil em 2005 e mediada pelo então Ministro da Cultura Gilberto Gil, para uma fala proferida no Seminário Economia da Dança realizado como parte da programação do Panorama da Dança 2008 em parceria com o SEBRAE. Importante e inédita iniciativa do festival, o Seminário contou com diversas participações e contribuições em variadas modalidades conjugadas entre si. De todas, destaco os grupos de trabalho integrados por vozes diversas da dança no Brasil e cujos documentos compõem o blog do Seminário Economia da Dança, recentemente disponibilizado na rede. Ali, um outro portal de comunicação entre as pessoas que se sintam atravessadas por este tema e, assim sugiro, pela chamada de Negri que tão valiosamente pode nos levar a entender nosso conjunto de dança a partir de um novo senso – o que eu chamaria de singularidade do comum.

Convoco todos os leitores desta coluna a participarem lá no blog do diálogo em torno de um ponto que, para além de todas as divergências ideológicas existentes, nos une no modo indelével. Pensar uma Economia da Dança é uma provocação e um corte cirúrgico em conformações ultrapassadas de nosso setor, apoiadas por divergências e polarizações históricas sejam elas balizadas ou simplesmente apoiadas na costumeira ignorância mútua. Ponto central em minha fala no Seminário, a pergunta: “Até que ponto, na dança, estamos de fato dispostos a dizer a partir da primeira pessoa do plural?”

Nas palavras, trata-se nem sempre tão somente de conceitos. As palavras antes ensejam vontades políticas que se diferenciam entre si pelos recortes a que dão nome. E é por isso que depois de ouvir Antonio Negri (todos vocês podem facilmente fazê-lo a partir da postagem do link no blog supracitado), talvez possamos nos dar a pensar uma economia da dança a partir da audaciosa ideia de uma singularidade do comum, invertendo a lógica vigente que nos fala da condição contemporânea como um conjunto de unidades diversas entre si. Talvez este contraste conceitual possa nos ajudar a pensar a dança para além do que venho chamando de falácia da diversidade.

Parafraseando Gilles Deleuze e Félix Guattari, poderíamos talvez falar de conceitos prêt-à-porter. Trata-se de palavras que entram na moda por se tornarem valiosa moeda de troca no varejo rarefeito dos discursos. Como a própria lógica do consumo o exige, são palavras prontas para usar; perigosas palavras que servem para vender ou franquear uma ideia. Esvaziadas de ideologia pela insistência e recorrência, transformadas assim em conceito-clichê, propagam sim uma ideologia – a de que são sujeitas a tantas combinações quanto o exija a persuasão inerente à venda publicitária. Sua recorrência torna-se assim um sintoma: entra na moda exatamente no momento em que seu poder de enunciação e de resistência, sua precisão de corte e sua potencialidade corrosiva entram em decadência.

É assim que 30 anos tendo se passado desde o início das lutas que elegeram as minorias como portadoras de uma nova fala que importava, a palavra mais valiosa no discurso da diferença – a diversidade – pode agora tornar-se perigosamente um conceito prêt-à-porter. Muitas comemorações fizeram de 2008 uma chance de retomar a atenção para o movimento de Maio de 68 e inquirir-nos um pouco a partir desta importante herança e do que fizemos com ela. Sim, soubemos nos inventar como futuro daquela ruidosa geração. E isso implica em muita responsabilidade.

Afirmar a diferença a partir da pluralidade de lugares de onde se fala, dos discursos, portanto, tornava-se naquele momento o emblema de uma nova composição do comum. Isso continua vigente, mas três décadas se passaram e precisamos compreender a história que atravessa esta discussão para não permitirmos que a diversidade, aquela que responde pelo equilíbrio dinâmico e, portanto, pela sobrevivência de qualquer meio ambiente na própria natureza, se transforme no pastiche de uma idéia que serve tão somente a uma globalização contraditoriamente hegemônica. O crítico de arte Fernando Cochiaralle corajosamente chega a dizer: “Contra o global, pelo universal. Na festa barata de um multiculturalismo cansado, estamos hoje andando sobre o risco de um audacioso fio de navalha na busca talvez de um mundial sem totalidade como marca deste nosso turbulento e rico tempo.”

Na eleição retrasada, não pude furtar-me em identificar um sintoma. A demasiada recorrência da palavra diversidade e sua amiga dileta, a inclusão, na boca de candidatos com orientações políticas tão diversas quanto opostas, não poderia perfazer uma simples coincidência. De fato, direita e esquerda já não compunham qualquer distinção quando se tratava de procurar o modo mais certeiro de falar da constituição de um comum. Trata-se de conceitos valiosos tornados conceitos prontos para o consumo, bem ao gosto de plataformas muitas vezes esvaziadas de sentido.  Diversidade e inclusão são hoje palavras eleitoreiras que dão conta de explicar de modo fácil uma plataforma que na maioria das vezes não é política, mas assistencial. E isso é, seguindo Hanna Arendt, ainda político.

Importa inquirir a dinâmica íntima e velada presente nas ideias de inclusão e de diversidade. Para isso, ouso me utilizar do pensamento do quilate de um Giorgio Agamben, cuja leitura recomendo. Até que ponto incluir não é excluir dentro ou incluir do lado de fora? Até que ponto a falácia da diversidade não mantém os diferentes segura, cômoda e apartadamente em seus lugares de origem?

Do mesmo modo como historicamente o discurso gay soube passar de um século a outro atualizando seu discurso na substituição, por exemplo, do termo opção sexual pelo da condição sexual para dar conta dos processos de singularização próprios da homossexualidade, já podemos começar a inquirir severamente a diversidade e seu lugar no discurso da dança na busca de uma política cultural específica para o setor. Esta discussão é muito urgente, sobretudo agora, sobretudo no Rio de Janeiro que, pela primeira vez depois de tantos anos, tem a oportunidade de pensar conjuntamente as três competências diferenciadas do poder executivo. Coincidências legadas pelo último pleito eleitoral podem permitir às competências municipal, estadual e federal trabalharem entre si na elaboração conjugada, repito conjugada, de uma política nacional de cultura. Isso é inédito.

Seguindo a provocação do Panorama que dava subtítulo ao Seminário, estamos sim atrasados, pois esta condição favorável durará somente dois anos. Ao fim de 2010, uma nova configuração nacional nos levará para outros desenhos e novos desafios. Estamos atrasados, mas há material já produzido do qual podemos partir e seguir. Os documentos produzidos na Câmara Setorial de Dança, por exemplo, são valiosos neste processo. Lá, amparados por um sólido coletivo temporário da dança brasileira, atendemos à proposição do Ministério de trabalharmos como representantes da sociedade civil em instância consultiva na discussão de políticas específicas para o setor. E o fizemos a partir de terminologias e metodologias provenientes da Economia. A única condição de trabalharmos a partir de tal desafio seria aceitá-lo criticando-o conjuntamente. Por quê?

Para explicar as sérias implicações e a política presentes na idéia de uma economia da dança, voltemos a Agamben com a valiosa contribuição de seu curto texto “O que é um dispositivo”.  Inspirado em Foucault, o filósofo constrói uma arqueologia da palavra, entendendo-a tanto a partir de sua etimologia quanto de seu nascimento e desdobramento históricos, para desenhar seus graves comprometimentos. Em outras palavras, para entender a quem e a que se destina a paga quando nos valemos de tal conceito.

Etimologicamente, economia provém de oikonomia, sendo oikos, a casa e nomia, proveniente de nómos -, o procedimento ou o mecanismo que nasce a partir do costume; o hábito de um grupo que integrando sua identidade tende a criar mecanismos que lhe assegurem a permanência e, por conseguinte, que assegurem a uma coletividade, a permanência de sua identidade. Esse mecanismo consiste no retorno do hábito sob a forma de norma e com ela uma ideia de partilha regulada pela lei que de imanente torna-se um transcendente, uma razão que rebate na eternidade.

Do ponto de vista histórico, Agamben segue explicando as implicações da oikonomia na nascente teologia cristã. Isto dá pano para muita manga. Por ora, me deterei em outro aspecto histórico trazido pelo filósofo que informa de modo mais pertinente nossa perspectiva aqui. Agamben elucida que, na tradução do grego ao latim, oikonomia se tornou dispositio, ou seja, participa intimamente do conceito talvez o mais importante na composição da biopolítica de Foucault: o dispositivo. “Generalizando a já amplíssima classe dos dispositivos chamarei de dispositivo”, diz Agamben, “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões, os discursos dos seres viventes. (…) Sendo o sujeito, aquele que resulta da relação entre viventes e dispositivos”.

Na constituição do comum, Negri difere singularidade de individualidade e talvez possamos, neste ponto, colocar um italiano conversando com o outro para entendermos a extensão da cautela ao falarmos de uma economia da dança. Negri, cuja palestra transcrevo em parte, pergunta: “quais são as categorias que nos permitem fazer uma leitura de nossa condição contemporânea? Ao que ele mesmo responde: a multidão e o comum. Trata-se, antes de qualquer coisa, de um conjunto de relações, um conjunto de singularidades cooperantes; singularidades que se apresentam na multidão como uma rede, como um conjunto que se define por suas relações umas com as outras.”

Não estamos aqui diante de individualidades, pois a individualidade trata de algo que se move em um espaço consistencial, uma realidade substancial: algo que tem uma alma, uma consistência por separação a, em relação a, uma totalidade (conjunto). Algo que tem uma potência centrípeta. O conceito de indivíduo é colocado a partir da transcendência. A relação não é entre eu, você e ele, mas entre o indivíduo e a transcendência absoluta que dá a esta pessoa uma entidade, uma consistência. Sujeito?

A multidão não é assim. A multidão – constituída e constituinte do comum – não é um lugar, não define qualquer topologia; antes, uma dinâmica de relações em que o um está pressuposto tão somente na suposição de um outro. (Deixo a pontuação a seguir sugerir o que o leitor assim o quiser a partir da transcrição.) Para o homem que vive na relação com o outro, sem o outro, não existe o si mesmo. Toda uma nova dimensão ontológica uma vez que o ser só existe na relação, na dignidade da cooperação. Trata-se ali de uma relação de singularidade e cooperação, sendo a cooperação, uma nova forma de razão – não mais a razão abstrata ou transcendente – uma razão que imediatamente conecta o saber à prática. Nestas relações, a interdependência é fundamental; não há verdade que não nasça junto, que não nasça desta interdependência. É o sentido comum desta massa de ações que cria a consistência do trabalho hoje, diz o filósofo. Trata-se do que Negri chama de trabalhador intelectual; o trabalho hoje – uma atividade de singularização. Trata-se de toda uma nova realidade: singularidade e cooperação se tornam fundamentais na produção de qualquer coisa. E na singularização, um modo de resistência hoje; um novo ethos.

Neste processo que faz passar as individualidades às singularidades, me parece que o trabalhador da cultura, aquele que inventa o produto e conjuntamente os modos de partilha e de sustentabilidade deste no processo econômico, seria todo e qualquer trabalhador hoje. Por isso também o empreendedorismo se torna quase uma palavra de ordem na economia atual. É por isso que pensar uma Economia da Cultura, e nela uma economia da dança, é um passo importante e talvez mesmo necessário, mas um passo que exige cautela. Estamos dispostos a pensar sim uma economia da cultura, mas gostaríamos talvez que de modo correlato pensássemos a cultura na economia ou uma economia gerida a partir dos parâmetros da cultura. É por isso que importa que identifiquemos os modos de sustentabilidade e de geração de conteúdo próprios da dança para que possamos dialogar com os termos da economia em uma via de mão dupla. A dança ensinando também à economia a pensar o setor a partir de seu próprio vocabulário e de suas próprias metodologias sem impor-se, portanto, como dispositivo.

Se a dança é um campo de saber específico, coisa que ela é, isto significa que ela pode e deve inventar seus próprios termos a partir dos quais ela será entendida. Isto não inviabiliza que tratemos de nos enfiar em meio ao economês reinante. Já demos um passo, um largo e belo passo, da era fernando henrique à era lula quando passamos a incluir na pauta o que poderíamos chamar de socialês. Como será bacana quando chegar o dia em que veremos nossos discursos, todos eles, atravessados pelo culturês. A cultura como uma centralidade nas pautas de todas as outras áreas de atuação, cuja dinâmica corrosiva intrínseca se constituiria como um centro sem centralidade, sem hegemonia, eu diria uma centralidade de periferia, com sua força centrífuga criando sempre novos e renovados modos de escape dos dispositivos que impediriam suas ricas palavras de se tornarem conceitos-clichê.

Pensar uma política de cultura não é o mesmo que pensar medidas ou ações que atendam à diversidade de manifestações próprias da cultura brasileira. Ao insistirmos neste princípio, falaremos ainda a partir da ideia de um conjunto de disparidades, uma topologia que reúne o que talvez permaneça separado; que talvez inclua excluindo. Seguindo pistas de Suely Rolnik, “as diferenças às quais me refiro não têm um sentido identitário, estabelecido a partir da perspectiva da representação – as supostas características específicas de cada indivíduo ou grupo, que os distinguiriam de todos os outros. Ao contrário, refiro-me às diferenças no sentido daquilo que justamente vêm abalar as identidades, estas calcificações de figuras, opondo-se à eternidade. O inatual, o intempestivo. Diferenças que fazem diferença”.

Para sairmos desta sinuca, penso ser urgente que atualizemos nosso discurso e entendamos definitivamente que política de cultura não é política assistencial; que criemos novos mecanismos no lugar de novos dispositivos – procedimentos de ação coletiva atentos aos velozes processos de singularização cooperante vigentes. Tal como fez historicamente o discurso feminista que supôs como bandeira de luta, entre os gêneros, primeiramente uma igualdade, suplantada a seguir pela afirmação da diferença, a caminho talvez da constituição, entre homens e mulheres, agora, de um comum.

Pensar uma política de dança a partir da economia da dança poderia já ser estar capturado pela sistemática do dispositivo. Mas não. A oportunidade que se abre é que aqui e ali, reunidos sob esta provocação, sabendo já que a oikonomia é não só um dispositivo, mas o quanto ela é central neste vasto e feio mundo da globalização, tentemos juntos, a constituição de uma singularidade do comum na dança. Podemos? Deixo ecoando como resposta, a firme assertiva de Obama.