Coreógrafos em falta, intérpretes abundantes

O projeto Solos de Dança do Sesc, do Espaço Sesc, no Rio de Janeiro, significa sempre mais oito chances, em duas semanas, de ver o que acontece a partir do encontro entre um criador e um intérprete. Nos dois casos, como na vida, alguns encontros frutificam, outros se mostram capazes apenas de um caso passageiro. A série de solos deste ano trouxe novos nomes e outros muito conhecidos se arriscando, ou assim se esperava, em criações de âmbito mais intimista, focados no movimento e em suas questões. O primeiro programa, apresentado no Espaço Sesc de 9 a 12 de março, confirma que pequenos solos não podem se contentar com idéias pequenas, que uma década de informações impressas num corpo não se apagam e, melhor notícia da noite, que um criador inventivo e uma intérprete-criadora podem, juntos e em poucos minutos, oferecer uma pequena jóia ao público. A segunda semana, menos inspirada, confirmou o que outros projetos da cidade já vêm apontando: o nível dos bailarinos nunca esteve tão bom, mesmo nos jovens e ainda em formação, mas onde estão os coreógrafos que podem de fato criar peças originais com estes intérpretes?
(N.R: Quatro solos que se destacaram dentro do projeto – O Peixe, Vela a Pilha, Tempo Líquido, Eles assistem e eu danço – vão ser reapresentados de 13 a 16 de abril no Teatro Ginástico).

O carisma e a força que a juventude e a técnica do jovem bailarino Rafael Gomes dão como ponto de partida não mereciam, da parte da coreógrafa carioca Deborah Colker, um trabalho tão literal em O Peixe. Deborah, em seus próprios espetáculos, já mostrou que pode inventar situações de movimento mais inesperadas, mas se acomodou na espetacularidade do intérprete e, apesar da boa solução cênica de Gringo Cardia para um espaço compartilhado e por definição simples como é o proposto pelo projeto Solos no Sesc, deixou seu peixe na superfície da mímica e da coleção de movimentos de repertório assolados pela música de Vivaldi.

A segunda peça da primeira noite,???, é embalada também por carisma e técnica, mas do tipo que vem da maturidade de um intérprete. Steven Harper tinha nas mãos, com a diretora Stella Miranda, a possibilidade de realmente, ainda que num pequeno solo, questionar, como dizem no texto que apresenta a peça, os estereótipos do sapateado. Mas o resultado, mesmo com a forte presença e técnica de Harper, apenas desenha um tipo de espetáculo metaligüístico comum hoje na dança contemporânea. Fica a sensação de um resultado que gera o processo, não o oposto e essa direção que parece perguntar para obter as respostas desejadas acaba por enfraquecer a brincadeira e a ironia de Harper.

A peça seguinte, Por dentro, Rodrigo Néri para a bailarina Ana Amélia Vianna, é um exemplo concreto de como as informações recolhidas em anos de colaboração com um criador não são fáceis de se modificar. A peça escapa pouco ou quase nada dos desenhos coreográficos reconhecíveis de Márcia Milhazes, de quem Ana Amélia foi colaboradora. De novo, em cena o que se vê é uma grande intérprete, mas pouco se destaca a coreografia ou as idéias por trás dela.

No extremo oposto e claramente a melhor peça das duas semanas de projeto, Maria Alice Poppe encontrou em Mauricio de Oliveira um parceiro capaz de dialogar com suas habilidades talhadas em uma década de parceria com o coreógrafo Paulo Caldas, de forma a estabelecer em Tempo Líquido um novo jogo criativo e refrescar sua atuação como bailarina.

A segunda semana foi marcada pela repetição de fórmulas de solo muito conhecidas e uma falta de espaço para a invenção, com peças que parecem querer se adequar a públicos pré-existentes, se enquadrar em modelos consagrados, quando o espaço do projeto é justamente o do risco e a idade da maioria dos artistas, a da ruptura.

Houve um pouco de ousadia, ainda que muito calculada por seus efeitos cênicos esperados, marcação de luz e figurino, na utilização do imaginário sacro-profano popular na peça Abaixo do Equador, de Airton Tenório para Jean Gama. Houve um pouco de humor, ainda que cercado de idéias não realizadas e desgastadas sobre o feminino, no trabalho de Paula Águas para Fernanda Cavalcanti. Rui Moreira e João Paulo Gross se perdem em O.P.N.I, um emaranhado de experimentação de movimento sem resultado em cena à altura dos envolvidos. E no último trabalho da noite, Curta-metragem, da jovem Ana Andréa para Fernanda Reis, uma seqüência de clichês baseados no cinema mudo se mistura com uma encenação fraca e movimentos que mesmo Ana Andréa já tinha mostrado melhores em seu trabalho anterior.

No balanço final, a certeza de que estamos todos falhando. Os formadores e professores, os apresentadores, os co-produtores, os curadores. De alguma forma, vivemos hoje na cidade uma cena carioca onde todo mundo é coreógrafo e as noções do que seja esta arte se esgarçaram a um ponto muito preocupante. Colocar uma dança em cena é tão mais que encadear passos, mais que uma boa idéia de performance que poderia funcionar num happening, mais que desenhar um resultado de dança pós-moderna sem passar pelo processo que nela resulta.

Na estréia da segunda semana, eram muitas as vozes se perguntando como chegamos a esta safra espetacular de bailarinos em paralelo a uma safra ainda tão imatura de coreógrafos. Será a praga do intérprete-criador – uma opção artística transformada em imposição de mercado e inclusive tema de acalorado debate no último Panorama?
Ou será a sobrevida daquela noção muito ultrapassada de que ser coreógrafo é a aposentadoria natural de um bailarino? Ou ainda que se você for um excelente intérprete de muitos criadores durante décadas, automaticamente está habilitado a criar espetáculos?
Embora sejam vários os casos em que estas aproximações deram certo, é claro que normalmente são becos sem saída. Os Solos do Sesc cumprem seu papel de instigar o debate e mostram, em seus oito resultados, que seus excelentes intérpretes mereciam melhores solos.

Para ler os comentários sobre os Solos de Dança do Sesc dos críticos Roberto Pereira e Silvia Soter, acesse o serviço gratuito de clipping produzido pelo curso de dança da Univercidade clicando aqui.