Cornélia Boom ou como podemos poetizar uma crítica à realidade

Cornélia Boom porta, a um só tempo, temas da estética e da política, e nos (re) lembra como a política invade, contamina e destroça o território da estética, muitas vezes no âmbito das ações culturais. A um só tempo pode também resultar em intrica reflexão e produzir um rico material ao condensar uma discussão de antigas divergências entre procedimentos corporais diferenciados, entre como capturar os dilemas do mundo dos humanos. Desde já, a urdidura artística desenhada por Cristian Duarte com Sheila Arêas pode ser tratada como uma inauguração na cena da dança contemporânea paulista. Como já havia sido proposto, por exemplo, por Sandro Borelli, em Jardin de L’Enfant, e Marta Soares, em Les Poupées (As Bonecas), sob outras perspectivas. O memeplexo (um conjunto cooperador de memes) disposto no espetáculo premiado da 5.a edição do segmento de dança do 120 Cultura Inglesa Festival, recentemente apresentado em São Paulo, é uma inteligente alternativa, entre nós, proposta no quem tem sido chamado de dança conceitual.

O trabalho sintetiza contundência e boa poesia. É uma resposta sensível a fatos, agora disponível em nossa infosfera, do cruzamento do balé Coppélia com o pensamento artístico da inglesa Cornelia Parker. A cena corresponde à ambivalência anunciada, que se desenvolve nas passagens e nos ‘entres’ de um econômico material de posições dos pés e do épaulement.

No corpo de Sheila Arêas, a tensão entre a herança clássica e sua dissipação; a tensão entre a impossibilidade de corporificar traços dessa herança e à crítica ao uso ‘oportunístico’ que ela pode insuflar, bem como as consequências conceituais da iniciativa. Níveis diferenciados de problemas se sobrepõem em fustigantes camadas. As tramas informacionais são organizadas como dança em um singular memeplexo.
A guerra dos memes

A ação predatória entre cérebros humanos se dá, primordialmente, pela infosfera. É verdade que podemos encontrar comensais (convivas) e mutualistas (um aumenta a performance do outro), mas no território lingüístico e informacional a mesa para acordos é de difícil montagem porque nossos cérebros são formados por cupinzeiros de memes, parasitas. Nem todos são invasores bonzinhos ou benéficos. Por isso, trata-se de devastar a dúvida, a pergunta, o questionamento: não conto tudo que fica em minha mente como uma estratégia de sobrevivência do memeplexo que a habita.

Somos animais contadores de histórias (Dennett) por excelência, mas somos também animais filosóficos (Lakoff & Johnson). A tarefa é dispendiosa. No entanto, o dispêndio foi quem a criou no largo tempo evolutivo. Por isso, parece sermos especialmente condenados a perguntar e explicar as coisas que nos assediam constantemente, como o amor, o sexo, a morte e a ética. E mais ainda outras tarefas, como explica Richard Dawkins. “… nós humanos, de forma única no reino animal, temos o dom poético da metáfora: de notar quando certas coisas são como outras e usar a relação como um fulcro para nossos pensamentos e sentimento” (2000: 394). Dawkins defende como sendo essa a inovação-chave do programa desencadeador de nossa espiral co-evolucionária.

Ele mesmo foi quem cunhou em 1976 o termo meme, como unidades de transmissão, replicação e aprendizagem cultural que tece, a grosso modo, a infosfera. Um meme é uma idéia passível de ser imitada e replicada. Especificamente, memes são instruções para realizar um determinado comportamento, armazenadas em cérebros (ou outros objetos) e passadas adiante também por imitação (Blackmore, 1999).

O meme é um outro tipo de Replicador: um meme é transportado de um indivíduo a outro replicando como cópia; esta habilita esse outro como o portador de uma informação cultural da variante do replicante (original). Complexo de memes ou Memeplexos propagam memes em grupos e tornam mais eficientes os Replicadores que se copiam egoisticamente a si mesmos em batalhas pouco dóceis, muitas vezes.A discussão filosófica é se os memes se deslocaram ou não da plataforma biológica de lançamento1. Em nosso caso, interessa realçar a habilidade desenhada em nós pela espiral co-evolucionária: o dom poético da metáfora – esse sim o traço que nos diferencia de outros primatas. Essa é a competência de perceber quando certas coisas são como outras e usar a relação como sustentáculo para nossas emoções, sentimentos e pensamentos (Dawkins).

A questão é salientada por Daniel C. Dennett (1991) de que não pode ser os memes versus nós porque mentes são mentes graças a infestações anteriores do pool memético e já jogaram seu papel fundamental em determinar quem ou o que somos nós. Com essa perspectiva não poderemos descobrir a origem do cupinzeiro. Poderemos sim detectar os mutantes malignos, isto é, a má poesia. A má poesia é acreditar na herança como sustentáculo para o controle de nossos anseios.

A perspectiva do olho-do-meme (Dennett) abre uma outra perspectiva de entendimento de tais mutantes malignos e os benignos. Permite, de um outro modo, o entendimento dos deslizamentos e dos interstícios engendrados no processo co-evolutivo entre Natureza e Cultura, e especialmente os processos lingüísticos acionados no mundo das idéias.As idéias, na perspectiva do olho-do-meme, comportam-se de modo semelhante aos vírus num processo contínuo de interação e fragmentação pela auto-replicação, formando uma sociedade de idéias em processos de guerras e armistícios.

Cornélia Boom sabe das encruzilhadas das idéias e que na arte a dicotomia é uma má poesia. Entende que na perspectiva do olho-do-meme transitam sínteses complexas de informações culturais e de informações corpóreo-artísticas.

Coppélia, Parker e memeplexo rebelde

Coppélia ou La Fille aux Yeux D’Émail (A Moça de Olhos de Esmalte, 1870), de Arthur Saint-Léon, é o primeiro na história da dança a versar temática da ‘boneca animada’ como um ser sem ‘frestas’ a serem aparadas. Nele, o apogeu da visão emasculada – termo correlato à castração – carrega em sua narrativa a divisão e o embate entre carne e espírito. A boneca é o protótipo da ‘perfeição’ entre todos os bonecos forjados por seu criador, o Dr. Coppelius. Não há ressalvas, imperfeições, assimetrias. Podemos chamar a perfeição/excelência como o meme-condutor do memeplexo que forma a noção de tudo aquilo que não merece ser re-significado.

O lance instigante de Cristian e Sheila se dá ao atualizar o memeplexo Coppélia com a postura conceitual da artista inglesa Cornelia Parker, parte de um outro memeplexo no qual mutação, imperfeição e destruição se instauram como processos sementeiros. Camadas signícas diferenciadas transitam entre o que é dito na movimentação de Sheila e as referências externas conceituadas por Cristian.

Rogério Ortiz

Deslizamentos e reorganizações confrontam e re-integram tais memeplexos. No primeiro caso, quando ouçamos a introdução do Hino do Estado de São Paulo e fragmentos da música composta por Léo Debiles para Coppélia, e vemos Sheila vestida com a camisa do São Paulo Futebol Clube, movendo-se de modo conciso, cambaleante, hesitante, com algumas das ferramentas corporais da dança clássica deslizadas para a imperfeição. Aqui o discurso de Cristian é explicitamente artístico-político, em seqüência ao que propôs recentemente em Médelei, 2006.

Agora, em Cornélia Boom ele propôs um boom nos recentes fatos em torno da recente criação da companhia de balé do estado de São Paulo. Nesta camada, o tom é de corrosiva acidez. Podemos almejar a simetria, a excelência; mas não esqueçamos o que inúmeras evidências científicas apontam: a assimetria é o traço majoritário na natureza das coisas. Podemos acalentar o reino platônico das Formas Perfeitas, mas não podemos negligenciar os fatos da espiral co-evolucionária e da perspectiva do olho-do-meme.

Simultaneamente, Cristian ergue outras camadas reflexivas como o discurso artístico/político/artístico cujo viés principal é o da impossibilidade de um corpo concretizar sua perfeição, e a de conseguir executar com destreza todas as etapas de um processo de aprendizagem que desaguará nas Formas Ideais. A chance aqui dada por Sheila a si mesma ao retorno do que ainda está presente como dança clássica em seu corpo, e que tipo de dança clássica. Neste contexto, encaixa-se a participação de Mariana Kurowwski – aluna da Escola Municipal de Bailados de São Paulo – no final do espetáculo – como uma aposta no futuro.

Sheila é uma não-boneca. Ela não pode deixar de sê-la não-boneca; sua movimentação externaliza a dúvida da tentativa de um dia poder ter sido com os traços originados no memeplexo forjado pela existência do treinamento da dança clássica, pela linguagem corpórea que o constitui no design tecido especialmente no contexto sintático (pliés, développés, relevés, jetés, battements etc.. e as combinações que promovem o contexto semântico).

A sagacidade da dupla está justamente em não se curvar ao mero panfleto, ao ataque per se à herança, e sim ao uso que fazemos dela quando teimamos em não atualizá-la. No memeplexo de Cornélia Boom, as informações jogam por metáforas e elipses corporificadas nos atalhos produzidos por Sheila e ensejadas pela dupla Cristian-Sheila. Portanto, a habilidade da ironia é a habilidade de realizar montagens e desmontagens de processos aparentemente inofensivos, mas que são de fato processos – parasitas.

A agudeza de Cristian Duarte, iniciada com Thelma Bonavita, de maneira perspicaz em SHOW: Sobre O Que a Gente Vê (Vol.1, 2007) – um debruçar irônico-poético sobre as malhas das informações acerca do erotismo contemporâneo – agora, com Sheila Arêas, realiza uma crítica poética da realidade (da dança).

1As discussões de natureza filosófica é se de fato os memes já escaparam da espiral co-evolutiva. Se sim, a guerra reina soberba no espaço da infosfera porque está forrada por memeplexos e pela luta de sobrevivência que travam entre si para o domínio da infosfera. Uma guerra que escapou do controle da própria mente que os aloja e que por eles foi criada. Se não, se os memes operam com as restrições e lado a lado com os genes teremos como transformá-los e lutarmos contra a tirania de memeplexos tirânicos, autoritários, cerceadores, castradores.

Bibliografia

BLACKMORE, Susan (1999). The Meme Machine. Oxford: Oxford University Press.

CAVALLI-SFORZA, Francesco & CAVALLI-SFORZA, Luca (1998). Quem Somos? História da Diversidade Humana. Tradução de Laura Cardellini Barbosa de Oliveira. São Paulo: UNESP.

DAWKINS, Richard (2000). Desvendando o Arco-Íris: Ciência, Ilusão e Encantamento. São Paulo: Companhia das Letras.

DENNETT, Daniel C. (1991). Consciousness Explained. Boston: Little, Brown.

LAKOFF, George & JOHNSON, Mark (1999). Philosophy in the Flesh: the Embodied Mind and its Challenge to Western Thought. New York: Basic Books.

Marcos Bragato é presidente da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) 2007/ 2009. Como jornalista, atuou como crítico de dança no Jornal da Tarde e Folha da Tarde, e como divulgador científico no Jornal da Tarde. Colaborou para a extinta Revista Dançar. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP.