Corpo, dança e fotografia: experimentações híbridas

O que mais me encanta na dança é a dimensão evanescente de produzir e experimentar imagens! A relação entre corpo, dança e fotografia promove um instigante exercício reflexivo de impressões visuais da paisagem cênica, as quais apontam eixos de aproximações e distanciamentos. O corpo na dança alcança um patamar singular, quando (re)constitui o abrigo do movimento. Nesta vertente, a fotografia coabita corpo e dança ao realizar um registro sensível de capturação visual. Em movimento, ele é relatado pela foto.
Na verdade, o encontro corpo, dança e fotografia (re)formula experimentações híbridas que entrecruzam diferentes campos da produção do conhecimento e do saber, para além do plano cênico de angulação e perspectiva. É um enlace emblemático que conjuga valores; no entanto, proponho uma possível leitura crítica, entre outras tantas. Ao transversalizar tal fusão, agencia-se, negocia-se, com os chamados estudos contemporâneos, os quais são eleitos como abordagem teórico-metodológica para argumentar as atualizações.

O contemporâneo, neste contexto, demonstra-se como território de desafios, em que noções, fundamentos, conceitos e pressupostos são atualizados. Na dança, por exemplo, todos/as buscam produzir trabalhos de destaque como quem acompanha avanços, e novidades. É fato que, atualizar implica resgatar parâmetros de recorrências que se desenvolvem ao longo de cada evento/acontecimento. Segundo Homi Bhabha, o contemporâneo pode ser visto/lido como efêmero, inacabado, parcial e/ou provisório. Em síntese, contemporaneizar é fazer valer uma escrita viva, que articula estrategicamente uma dinâmica atualizadora. Atualizar é atentar aos desfechos que emergem na agenda dos debates polêmicos.

Realizadas tais preliminares, pergunto: Como possibilitar o contexto dança e imagem? Que tipo de ambiente torna-se eficiente para ajustar as marcas corporais na dança contemporânea? Quais são parâmetros e combinações a serem investidos em uma frase coreográfica hoje? Quais tendências assinam a dança contemporânea? O que pode ser ressaltado como efeito proposto em uma cena coreográfica? É coerente pensar o corpo como dado competente ao desenvolvimento coreográfico? Como identificar e/ou reconhecer atitudes portadoras de transcorporalidades? E a fotografia neste caldeirão de idéias?

As inquietações são muitas, abrangentes, e servem de linha temática para serem discutidas e aprofundadas em diferentes momentos. Acredito que essas perguntas não agrupam respostas diretas, pois não organizam um sistema fechado, mas procuram provocar o pensar. A lógica, portanto, seria tentar (re)configurar as interpelações conceituais que (re)ajustam esse feito.

Assim, considero a dança contemporânea um mar de possibilidades, uma complexa área de experiências e subjetividades, em que articula a sensibilidade artística, estética, plástica, poética – para além de comprometimentos socioculturais e políticos. A imagem, aqui, resgata a condição inventiva do pictórico recorrente em uma proposição coreográfica. Trata-se de uma imagem (em movimento) que permite o imaginário ser um pouco mais aguçado!

Há uma constante (des)construção visual na dança que elabora recursos conceituais e técnicos com criatividade, cuja (re)dimensão imagética exige múltiplas enunciações discursivas. Essa última constitui-se do modus operandi da linguagem – estratificada em cultura e representação. Estrategicamente, tanto o/a bailarino/a quanto o público utilizam uma percepção marcada de deslocamento e flexibilidade. Então, relacionar corpo, dança e fotografia seria ativar as faculdades cognitivas da percepção.


Transcorporalidades

Ao experimentar a (dis)junção de teoria e prática, tenho desenvolvido um exercício reflexivo sobre o corpo no contemporâneo mediante o deslocamento e a flexibilidade. Penso na premissa de um corpo que possa verificar sua extensão gerativa de trânsito. De um lado, como pesquisador, testemunho uma compreensão de corpo com as amarras teoria-método dos estudos contemporâneos, que se atualizam pelos enfrentamentos expostos pelas novas tecnologias digitais. De outro, a prática de artista visual remete ao campo do fazer (re)estabelecido pelos mecanismos digitais.
Assim, vestígios, pistas, índices, rasuras são circunstâncias (im)precisas e envolventes para atinar uma máxima transcorporal. Almejo a disponibilidade de assegurar ao corpo um norteamento que possa confeccionar as variáveis discursivas de seu estado polimorfo. Por isso, interessa-se observar as malhas (inter/trans)textuais que exploram o fluxo contingencial de teoria, técnica e tecnologia. Mais que isso, anotar o corpo que desliza. Não seria observá-lo como algo fixo, cristalizado, pelo contrário, trata-se de investigar a mediação que interpela dados, estrategicamente, em sua condição adaptativa de alterações e passagens. As (dis)tensões (i)materiais do corpo também cooperam à noção de transcorporalidades.

Neste caso, tomo o corpo como energia potente que desbrava caminhos na dança e na fotografia. Faço dele como instrumento da inscrição humana que ressalta aos olhos do espectador. Corpo que carrega consigo o registro de percurso, determinado por uma frase coreográfica. Nota-se que uma coregrafia incorpora códigos intertextuais (imagem, som, texto etc), coordena informações e, conseqüentemente, aglutina sua (in)comensurável representação. O corpo torna-se, categoricamente, a morada do movimento.

A acoplagem entre corpo e movimento, na colaboração com o som, a dança expande a experiência humana paulatinamente. Os traços que anunciam o ritmo corporal fazem com que cada ato performático, dançante, possa ser traduzido em fotograma. Mais que isso, tento absorve-lo no conjunto entre dança e fotografia, afinal enfoco um corpo que se espetaculariza na visualidade da cena pública. É algo contundente, preparado para ser exibido. Da fotografia à dança, da dança ao corpo ou da fotografia ao corpo elegem-se suturas!

A imagem corporal constitui resultantes entre esse instrumento (corpo), sua disposição enunciativa em ação (movimento) e a explosão atenuante diante da câmara fotográfica. Deleito a aproximação do movimento desse corpo mediado pelo olhar partir da fotografia. Aqui, remeto à diferença pontual entre corpo e imagem corporal. Essa última se vê/lê pronta para ser enunciada – em constante (trans/de)formação, ainda mais na dança ou na fotografia.

Em tempo: também, observo a delicada escritura performática do corpo contemporâneo, sobretudo no Brasil. Falo de uma vertiginosa natureza sociocultural e política que absorve a dança contemporânea brasileira ao olhar para nosso corpo antropofágico, mestiço. É um depoimento da multiplicidade de elementos sincréticos: a força da cultura afro-brasileira, com leve e distante toque eurocêntrico (português), acomoda a esquecida constituição indígena e assola o ar caboclo de lábios, peitos e bundas. Equaciona-se a herança do corpo cafuzo.

Realoca-se uma realidade corporal (física, anatômica, orgânica) que alinha a escritura fina da dança contemporânea brasileira. É impossível negar ou esconder nossa história. Contudo, as transcorporalidades aparecem como estados de performance, em que o corpo ressalta suas nuanças (i)materiais, as quais evidenciam uma discursividade estratégica de versatilidades.

Neste sentido, o corpo emerge sempre em trânsito – um deslocar improvisado (ou ensaiado) que (re)apropria-se do entorno. Oscila um paradoxo de suavidade e tensão nesse instante corporal. Ou seja, a noção de transcorporalidades visa orientar o fluxo da imagem corporal. Elenca-se uma combinatória colaborativa que atinge corpo, dança e fotografia. E, ao mesmo tempo, insere a (re)configuração de um panorama que tenta ampliar o lugar da dança hoje. Como tentativa, isso só poderia ocorrer mesmo nesta contemporaneidade.