Corpo, performance e vídeo: reflexões

Já faz alguns anos que tenho me dedicado, pontualmente, ao desenvolvimento de investigações multidisciplinares acerca do tema corpo, sobretudo ao observar as manifestações artísticas contemporâneas. Me fascina conhecer algumas nuanças do corpo ao encontro crescente com a tecnologia. Entre o humano e o orgânico, o corpo toma a cena midiática-mercadológica como produto que se marca, enfim, de resíduo da cultura digital. Interessa-me atinar as malhas (inter/trans)textuais que recorrem às possibilidades de evidenciar o corpo em cena. Parto da idéia que, nas artes, na dança, na performance, o corpo recobre-se de atenção, atualmente, como elemento mágico de único abrigo de certeza. Por isso, talvez, a sociedade contemporânea tenta se agarrar tanto a ele.

De um lado, como pesquisador, testemunho uma compreensão enunciativa de corpo com as amarras epistemológicas dos estudos contemporâneos, que se atualizam com os enfrentamentos expostos pelos estudos culturais junto com as novas tecnologias. De outro, a prática artística remete ao campo do fazer poético – de uma (des)construção visual – (re)estabelecido pelos aspectos socioculturais, mercadológicos e midiáticos.

Este ensaio, portanto, apresenta uma discussão que tenta aproximar corpo, performance e vídeo no contemporâneo, tomando como investimento o enfoque de uma ação crítico-criativa da imagem. Experiência e subjetividade são categorias críticas que se inscrevem de modo diluído no desenvolvimento deste texto, sobretudo no âmbito das novas tecnologias digitais. Exemplifico essa discussão com o vídeo Conficcional (Brasil, 6′, 2006) de Paula Otero e coreografia de Mônica Pimenta. Neste debate, aponto os estudos contemporâneos como eixo teórico-metodológico para fundamentação do desenvolvimento argumentativo.

Performance vídeográfica

Inevitavelmente, me debruço sobre a atmosfera (inter)subjetiva dessa temática, como artista visual e pesquisador, ao considerar a emergência das transformações socioculturais e tecnológicas que assolam o mundo. Invisto na realização de fotografias, vídeos e instalações artísticas computacionais a fim de provocar e implementar a esfera de um fazer reflexivo, crítico. As resultantes são investigadas e ponderadas por uma produção de conhecimento (teórico-metodológica) atenta ao desenvolvimento do saber contemporâneo.

Tento ponderar diversas variáveis discursivas que somam as passagens entre o fazer e o saber. Considero as transformações adjacentes do entrecruzamento conceitual e prático quando penso estudos contemporâneos.

Para mim, a performance recorre aos desafios da apresentação instantânea do corpo. Sua relação direta com o público imbrica “novas/outras” possibilidades, estrategicamente, discursivas. A natureza recorrente da representação performance agencia/negocia posicionamentos que eclodem uma expressão artística. Para Paul Zumthor, “cada performance nova coloca tudo em causa. A forma se percebe em performance, mas a cada performance ela se transmuta” (2006, p. 33).

Trata-se de uma conduta aberta, em constante transformação, que evidencia o corpo e sua provisoriedade. Ao observar as modificações que ocorrem – de modo enfático – procuro investigar as tessituras enunciativas. Assim, acalenta-se, por ora, um projeto em expansão: a performance.

Retomando: elejo o corpo como eixo de registro de discursividades sistêmicas que acoplam as transformações socioculturais e tecnológicas e cujas (de)marcações estratégicas anotam passagens (inter)subjetivas (Garcia, 2005, 2007). São passagens sensoriais, na verdade, que resignificam as articulações sensível-inteligíveis ao mundo.

Evidente que tais transformações destacam respostas criativas às demandas que a mídia e o mercado imperam sobre a sociedade capitalista – ironicamente pronta para devorar qualquer aventura. Contudo, gostaria de me ater, estrategicamente neste momento, sobre a extensão da performance videográfica.

Uma descrição conficcional

O vídeo Conficcional (Brasil, 6′, 2006), de Paula Otero e coreografia de Mônica Pimenta, traz um destaque pontual de sua performance videográfica. De fato, o objetivo aqui não seria discutir os limites entre dança, performance, artes cênicas e/ou vídeo. Embora outros estudiosos possam desconsiderar a idéia de performance videografada, pra mim, o que importa é o resultado fecundo do trabalho artístico contemporâneo que mexe com a gente e até nos faz pensar.

Neste caso, recorro à leitura e descrição:

Como uma miragem ao infinito, o vídeo inicia com imagem de estrelas brilhando em uma noite escura. Efeito de luz? Um movimento de câmara anuncia o título conficcional que se recai aos poucos, escorregando pela tela vagarosamente. O deslizar lento do título acomoda uma (re)dimensão poética. É o prólogo, prelúdio videográfico que se enuncia.

Neste início, a pulsação rítmica é (de)marcada pelo toque da percussão efetivada na madeira do violoncelo que sobressalta como instrumento musical. A base rítmica é um compasso quaternário (1, 2, 3 e pausa), com o esforço do baixo para acrescentar uma mediação crescente e possível entre as (de)marcações sonoras que se acoplam à visualidade.

Encostada na parede, a protagonista (Mônica Pimenta) observa calmamente o feixe de luz que adentra o quadro visual. É uma luz que pousa sobre a face de olhos quase fechados, numa intervenção visual marcante; como se fosse a projeção de raios do sol que aquece e entra pela fresta alta da janela. Isso provoca um sentido de direcionamento, de comando.

Depois, imagens desconfiguradas remetem ao refinamento conceitual das dobras de Deleuze (1991). Na constante relação que repete e, conseqüentemente, reitera. É a imanência de um fio condutor (re)feito novamente para ser recombinado, recompensado. São variações determinantes um mesmo corpo dançante que se prolonga com a performance videografada.

Fade in fade out. É a imagem escusa que diante dos efeitos tecnológicos some e reaparece. Vai e volta. Um pulsar estelar. Algo que se apaga e depois reacende. Efetua-se uma cálida luz em penumbra.

Pernas que se esticam, entrecruzam, alongam. Movimentos circulares, redondos, em torno do próprio corpo. Exploram-se movimentos curtos, gestos pequenos. A mão se estende para buscar o centro do círculo. Registro de uma imagem poética, porque transluzem feixes de imagens. Ato angelical, doce, suave, penetrante, enfático. Uma lentidão que toma de assalto. O movimento da câmera também dança com o corpo em cena.

Cabelo solto, braços estendidos, movimento circulares novamente. Fotografia, bricolagem, videoclipagem, sobreposições. Um tecido de imagens retrata vestígios do corpo encenado. O recurso técnico do vídeo introduz o efeito de câmera lenta. Desfocado com luz sobre o corpo, fragmentos mistos da reverberação anatômica são pontuais: pé, mão, barriga. Tronco, dorso, cabeça. Tudo dividido, tudo junto!

Como vertigem, um filtro envermelha a cena durante a narrativa videográfica. A natureza da cor envermelha, suaves flashs de entrecortes evocam outro ritmo, outro lugar. Neste instante, há uma clipagem enfática de imagens entrecortadas pela edição do vídeo. É um misto de alucinação imaginária, distúrbio visual ou pesadelo. Algo frouxo, solto, surreal. Câmera e luz percorrem a (re)ação emblemática do corpo. Um ritmo que se quebra. Há trechos desgovernados…

Pausa. Retomada.

A câmera promove um registro em primeiro plano. Ou seja, mapeia-se detalhes, nuanças. É uma busca que proporciona olhar de perto a bailarina, como quem quer adentrar seu corpo. Em um penetrar na subjetividade da carne, a imagem parece (re)tocar o outro. Curiosidade? Talvez.

(Re)configura-se uma poética. Um delicado acréscimo se acentua…

O movimento flui a dinâmica que se estende e expande sem pausa. Uma constância de efeitos recobre as marcas de luz e sombra em machas que desdobram o corpo quase nu. De fato, não é possível observar, com clareza, ao certo. Será que ela está rolando em uma cama?

A trilha ressoa um ar vagaroso e repetitiva, em looping, ao rebater a intensidade rítmica do movimento corporal. O que toca? Sensação de vôo em noite escura, onde só a luminosidade atordoa?

Evidencia-se, talvez, a oportunidade de (re)ver/ler a mesma cena por diferentes ângulos: por cima, por baixo e pelos lados. Estuda-se, investiga-se. Mas não há nada seguro que o espectador possa reconhecer de imediato. É uma tradução do instável. É preciso não querer testemunhar algo; o que não se apreende… Porque é feito para escapar. Corpo, coreografia e câmera são instrumentos para diversificar os posicionamentos – nada pára, nada se fixa.

A narrativa videográfica termina na fecundidade de seu ciclo com as estrelas em uma noite escura. Há uma expressão de luz e sombra em circularidades solares e/ou lunares. Um eclipse, uma mudança, uma transformação, uma passagem. Retorno circular ao feminino? Então, vaga o desfecho da montagem videográfica anunciada pelos créditos da equipe técnica que produziu o trabalho.

***

As anotações que realizo, neste texto, têm um formato de ensaio. É uma decisão emergente, de agora. Portanto, são implicações conceituais de uma primeira leitura que realizo acerca do vídeo Conficcional. Aquilo que deve ser visto/lido como esboço – um estudo preliminar. Faço tal ressalta para assegurar que essas impressões, por ora expostas organizam uma possibilidade de leitura, entre outras tantas possíveis e inimagináveis. Contudo, permito me entregar ao sabor da escritura cênica de Mônica Pimenta e ao deleite de (re)compor um diálogo criativo entre corpo, performance e vídeo.

Referências Bibliográficas

DELEUZE, GILLES. Dobra. São Paulo: Papirus, 1991.

GARCIA, Wilton. (org.). Corpo & mediação: ensaios e reflexões. São Paulo: Factash, 2007.

________ Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos. São Paulo: Thomson Learning, 2005.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Trad. Jerusa P. Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007.

 

Wilton Garcia é artista visual, trabalha com fotografia e vídeo, pesquisando o corpo contemporâneo. Doutor em Comunicação e Estética do Audiovisual pela ECA/USP e Pós-Doutorado em Multimeios pelo IA/UNICAMP. Atualmente, é professor do Mestrado em Semiótica, Tecnologia da Informação e Educação da Universidade Braz Cubas – UBC. Autor de Corpo, mídia e representação: estudos contemporâneos (Thompson, 2005), entre outros.