Corpos de mídia

No palco, oito intérpretes da companhia francesa de Rachid Ouramdane, quatro câmeras de vigilância, alguns programas de computador e um telão. O ar noturno do último novembro estava quente e a platéia do Teatro Boca Rica, no Ceará, lotada. A apresentação era de dança, mas o que se veria naquele antigo galpão não era “apenas” dança, no sentido estético da palavra, mas uma dança-pensamento, ou menos rotulado do que isso, uma provocação. Ali, quem estimula os corpos de carbono eram os de silício. Dois ambientes diversos criando um novo diálogo de interação e estranhamento. A imagem de um dançarino se contorcendo no chão é captada por três câmeras em movimento enquanto um outro tenta imitar a projeção do novo corpo na tela. O corpo se transforma; é uma outra coisa. O movimento assistido não parte de uma vontade interna, mas de um estímulo “de fora” promovida pelo aparato técnico, possibilitando novas sensações ao corpo orgânico. A percepção amplia-se no novo ambiente. O corpo se expande, excede os limites da pele. Fim da apresentação.

Mas como seria possível ver este excesso de movimento que vai além do corpo? Com ajuda de um programa de computador pode se ter uma idéia. Traça-se uma linha imaginária entre os dois cotovelos de um dançarino; a linha é projetada numa tela. O corpo começa a se movimentar; o espaço entre os cotovelos vai deixando um rastro largo na tela. Aos poucos, o rastro vai dando forma a uma figura abstrata; tem-se uma escultura do tempo. E dessa nova relação entre dança e novas mídias fala um dos intérpretes da citada noite, durante a IV Bienal de Dança do Ceará, ocorrida entre 2 e 16 de novembro de 2003. Armando Menicacci, doutor em uso da tecnologia digital na educação da dança e produção artística pela universidade Paris 8, é professor de “Coreografia assistida pelo Computador” e “Interatividade em tempo real para a Dança” na mesma universidade e consultor artístico de coreógrafos como, Rachid Ouramdane, Alain Buffard e da Associação Fin Novembre. Acomodados do lado de fora do teatro, sob uma lua cheia de luminosidade, iniciamos uma conversa interessada.

Acho que podemos começar pela questão do tempo. Fale um pouco deste conceito para você.

O tempo se tornou para mim uma outra dimensão do espaço. Por exemplo, se me movimento lentamente o espaço está desacelerado. Então, existem dois tempos, assim como existem dois espaços. Existe um espaço objetivo, mensurável em centímetros ou metros. O mesmo para o tempo: existe um tempo que é mensurável em segundos, mas existem tempos em nossas vidas em que um segundo equivale a um ano. E o dançarino é a pessoa que tem a habilidade de modular o espaço e o tempo dessa forma. Então, o tempo se transforma em uma outra dimensão do espaço, uma quarta dimensão do espaço, assim como o uso do movimento no espaço constrói um outro tempo, uma outra percepção do tempo.

E como isso se relaciona com os híbridos de hoje em dia? Qual a diferença do corpo híbrido de hoje para o de antigamente?

É uma pergunta interessante. Com a mudança do conceito de espaço e tempo – com a internet, por exemplo – temos um novo espaço que é chamado de hiperespaço. Temos o tempo da internet, um outro tempo, que não é apenas o tempo mensurável, mas o tempo da comunicação acelerada, da proximidade. Eu diria que a grande novidade é a telepresença. Antigamente tínhamos presença e ausência, “estou aqui” ou “não estou aqui”, agora temos uma forma híbrida entre presença e ausência. Além disso, se temos um novo tipo de presença temos um novo tipo de corpo. Porque posso sentir sua presença por meio de uma webcam. Isso significa que o novo corpo híbrido pode experienciar uma diferente qualidade de presença hoje em dia.

Isso pode ser exemplificado com o momento do espetáculo em que os dois intérpretes estão com os rostos paralelos, mas se olham de frente por uma técnica de computador?

Sim, é um exemplo perfeito. Hoje temos um outro tipo de imaginação que está “surfando” sobre um outro tipo de mídia. A mídia interativa pode trazer uma outra qualidade de presença. É claro que preciso de corpo, mas existem outras maneiras (de presença) também. Então, se não é possível nos vermos diretamente, podemos nos ver pela mídia. E um relacionamento hoje pode ser construído também com isso. Não apenas com isso, mas existem novas possibilidades, que não substituem as outras, mas se adicionam a elas. Assim como o texto escrito não substituiu a voz, fotografia não substituiu a pintura, o cinema não substituiu o teatro e o telefone não substituiu o encontro ao vivo das pessoas.

Um escritor brasileiro chamado Laymert Garcia dos Santos cita no livro Tempo de Ensaio que temos que ouvir as pessoas nos colocando na pele dela, assim como os bosquímanos, que sentem em certas partes do corpo a “iminência de certos acontecimentos”. O que mudou dos bosquímanos para cá com as novas tecnologias em relação a essa telepresença?

A tecnologia tornou as coisas mais presentes, trouxe um novo tipo de presença. É o contrário do que se costuma dizer! Hoje temos um meio de estar realmente conectados fisicamente. Tenho um amigo australiano chamado Stelarc. Ele tem feito performances inacreditáveis. Por vinte anos ele tem estudado a presença da internet no corpo. Por exemplo: eletrodos estão conectados no corpo e no computador a diferentes websites. E quanto mais pessoas entram no website, mais ele recebe estímulos que o fazem se movimentar, dançar. Mas ele não decide que músculo ele quer movimentar e quanto. Então, ele usa a internet como um sistema nervoso extendido e externo.

A evolução tem sido até agora uma adaptação ao meio ambiente. Agora precisamos começar o pós-humano, levando em consideração nossa evolução através da modificação genética.

E como é falar de novas tecnologias no Brasil? Como é esse intercâmbio de informações?

Bem, isso foi uma questão para mim. No começo, eu disse para mim mesmo que eu não queria trazer o meu conhecimento sem saber quem estaria do outro lado me ouvindo. E queria conhecer as pessoas, ter contato com elas para então ver o que aconteceria. Mas é o que vamos fazer no workshop (ocorrido em Fortaleza entre 10 e 16 de novembro), que será baseado somente nisso. Não temos nenhum conhecimento a ensinar. Queremos conhecer. Queremos que as culturas se conheçam e dividam contato.

Na sua opinião, essa espécie de otimismo em relação às novas tecnologias perdurará daqui para frente?

Não sei, acho que sim. Hoje todos têm eletricidade. Então, penso que um dia a internet será como a eletricidade: por todo o canto. E vamos todos sentir essa nova telepresença, essa nova qualidade de presença, de contato e de relacionamento que pode ser desenvolvido desta maneira entre as pessoas. Tenho certeza que não há substituição, mas uma nova adição, um novo nível de sensibilidade. Entendo que a maioria das coisas que falo são difíceis de se compreender aqui, mas meu objetivo não é impor uma visão, mas fazer sugestões e mostrar que talvez exista um novo tipo de contato, que as coisas podem ser diferentes.

O trabalho de Rachid Ouramdane, como o apresentado em Au bord des Mètaphores, usa a tecnologia para fazer uma crítica a ela mesma?

Não diretamente. Crítica para mim é pensar. Ser crítico é pensar de um modo crítico, tentar estar vivo, ter cuidado. Não é ser negativo ou querer dar uma resposta final. É apenas pensar e colocar a mente em movimento. Então, estes são espetáculos muito críticos para nós porque colocam em evidência uma coisa essencial que é o fato da mídia ter modificado a nossa percepção do corpo, nossa telepresença. E não temos que ter medo porque podemos construir um novo corpo, uma nova identidade. Podemos construir um novo caminho e usá-lo não apenas da maneira passiva que a televisão propõe, mas como uma ferramenta para construir um novo mundo, uma nova percepção. Para mim, o centro de tudo é a percepção, o significado que você dá para o que você vê. Identidade é uma performance, temos milhares delas.

Então poderíamos dizer que o corpo é uma metáfora para a identidade?

Sim. A identidade não é apenas o que você herdou, mas o que você faz, como você se transforma, como você se comporta; o jeito que você arruma o cabelo, que você atua. O corpo não é mais uma forma, mas um ciclo de formações. Tudo o que você faz torna-se o seu corpo. Então, existe um loop entre ação e forma, todo gesto está inventando um novo corpo e a tecnologia é uma maneira de sentir diferente, de construir um novo gesto, um novo corpo e também de construir um novo mundo.

Quais são suas principais influências?

Marx, como um filósofo, Hegel, Marcuse, a Escola de Frankfurt, Deleuze. Filosofia em geral, psicologia, medicina e a dança contemporânea francesa.

Qual a sua principal preocupação neste momento e nos próximos anos?

Tentar tornar este planeta um lugar melhor do que quando eu o recebi.

*Armando Menicacci é musicologista e pesquisador de dança. Há vários anos ele tem estudado dança, piano e composição de música na Itália. É bacharel em História da Música na Universidade de Roma “La Sapienza” e doutor em uso da tecnologia digital na educação da dança e produção artística pela Universidade Paris 8. Membro da Anomos, ele organizou com Emanuele Quinz, a seção do simpósio internacional ISEA (2000), nas novas interfaces entre corpo e máquina na dança. É diretor da Mediadanse, Paris 8 Dance Department Media laboratory (criado com o apoio da Associação Anomos) principalmente voltado para pesquisa, pedagogia e criação da arte na dança e em media digital, onde leciona. Tem publicado diversos livros sobre música e dança. Seu último lançamento, “La Scena Digitale – Nuovi media per la danza” (Venezia, Marsilio, 2001), editado com Emanuele Quinz, é sobre a relação entre dança e novas mídias. Atualmente, trabalha também para diferentes coreógrafos como consultor artístico. Dentre eles, Rachid Ouramdane, Alain Buffard e a Associação Fin Novembre.