Corpos que se escutam

* Dissertação de mestrado defendida em 8 de maio de 2007, no Centro de Letras e Artes da UNIRIO. A íntegra pode ser consultada na biblioteca da universidade e, em breve, estará disponível no site do Programa de Pós-Graduação em Teatro.

A disponibilidade para a escuta, não só dos corpos, mas do mundo em que se vive, parece ser característica fundamental num trabalho como Falam as partes do todo?, em que a idéia do espetáculo surgiu a partir do encontro da companhia com o trabalho de uma artista plástica, mais todas as leituras feitas pela coreógrafa e compartilhadas com os intérpretes, e ainda as propostas de movimento destes a partir de sugestões da coreógrafa. Forma-se neste processo uma rede de pensamentos e autores – que inclui também o fotógrafo que veicula a imagem do trabalho na mídia e o espectador que insere mudanças no momento da apresentação – dando a ver a dança como uma releitura de outros textos e imagens, uma troca de perguntas.

Em Falam as partes do todo? estão as perguntas de Tatiana Grinberg sobre presença e ausência, os contornos dos buracos de suas esculturas sugerindo um corpo que não está mais lá; o relato de um bailarino sobre uma dança invisível, compartilhada com alguém ausente que o público precisa imaginar; as inquietações de Dani Lima sobre o sentido de presença, de visibilidade/invisibilidade das partes que forjam o todo. Estão no trabalho ainda a insistência do bailarino Vinicius Salles em explorar movimentos com placas bidimensionais; a fragilidade/força de Vivian Miller ao se arriscar caminhando sobre um chão móvel, incerto, feito pelos corpos de seus parceiros; a disponibilidade destes, que emprestam seus corpos para que ela caminhe; a idéia de descentramento do sujeito de Stuart Hall presente no descentramento autoral; as intervenções feitas a cada apresentação pela participação do público. Esta participação sempre diferente a cada noite, modificando a obra, que muda seus contornos no espaço de acordo com o posicionamento do espectador, faz pensar também em uma fala de Stuart Hall: “Tudo que dizemos tem um ‘antes’ e um ‘depois’ – uma ‘margem’ na qual outras pessoas podem escrever” (HALL, 2003, 41).

O que vem antes e o que vem depois do movimento? O espectador é um “depois”, que ao mesmo tempo torna-se um “antes” ao deixar na obra suas marcas para as apresentações que virão, assim como as leituras e influências estéticas são um “antes” que se tornam “depois”, após cada apresentação, quando pode-se pensar no que o espetáculo traz. Esta mobilidade temporal é um dos sentidos da obra, em sua própria constituição, como também a mobilidade espacial, mais claramente expressa pela construção/desconstrução das cenas. A impressão de que nada se fixa, de que uma imagem é sempre temporária, traz uma idéia de autoria móvel, de imagem que subsiste como vestígio de um corpo ao outro. O movimento passa a não ser mais próprio de quem o criou, porque em seu percurso vai sendo apropriado pelos outros, que o re-articulam e transformam.

Esta idéia de margem antes e depois do que se diz está presente também no pensamento de Jacques Derrida sobre a palavra sempre “roubada”, sempre tirada de uma leitura, que por isso tira de quem fala – ou escreve – o poder “inaugurante”, porque “nunca é própria do seu autor”, já vem carregada de sentidos sempre recriados. Seus autores provisórios, temporários, devem se inscrever como “passivos”, como quem ouve (DERRIDA, 1995, 120-121).

Arrisco dizer que a transitoriedade dessa posse da palavra, quase um empréstimo, pode comparar-se também à do corpo, que estaria para a criação como um lugar provisório, que já contivesse porém materiais usados, que precisam ser conhecidos, para só então interrogá-los, provocá-los. Assim como o escritor lê as palavras, dialoga com suas possibilidades de sentido, o criador em dança precisa reconhecer o corpo que tem uma memória, traços que nele se inscrevem e o movem; dialogar com sua dinâmica de impulsos e quietudes. O escritor escreve enquanto lê, o coreógrafo gera atitudes quando lê; sua coreografia é o que consegue ler no mundo, nos outros corpos, no que se dá a ler no seu.

A pesquisadora e crítica de dança Laurence Louppe diz que o movimento guarda, “na fibra de sua dinâmica própria”, “fantasmas” que o assombram, que se acumulam e geram impulsos. Por isso, segundo ela, a dança contemporânea não produz formas fixas, ela suscita atos; e a análise da transmissão do ato não passa por um signo mensurável, identificável, mas pela contaminação entre estados, que têm gradações e qualidades de energia, tonalidades desenvolvidas pelo movimento. A captação dessas impressões, desses dados, é uma operação que não pode ser adiada, e sua urgência não permitiria um processo de decodificação, de tradução. Por isso seria a dança contemporânea uma “arte sem escriba”, uma contra-escrita (LOUPPE, 1994, 9-10). Sem escriba porque a coreografia nunca é exatamente o que está escrito nos roteiros, e por mais que os coreógrafos tenham seus cadernos, ou diários onde anotam particularidades de cada ensaio, as trajetórias das sequências; e ainda que tenham a seu lado alguém trabalhando a dramaturgia, como muitos atualmente, o movimento sempre ultrapassa o registro e a cada apresentação pode haver surpresas. A dança contemporânea seria então uma dança que des-representa, porque “percorre zonas de percepção em que o sentido só se inventa nos restos de sua significação”(LOUPPE, 1994, 11).

Esse olhar sobre a dança como uma contra-escrita, algo que não se inscreve por signos por não representar o que já foi pensado previamente, mas que se escreve por sua negação, ou pela escuta de “fantasmas” próprios ou alheios, tem ecos na criação contemporânea em dança, no contexto brasileiro, como em Falam as partes do todo?. No espetáculo a autoria se confunde, ora está na coreógrafa, ora nos bailarinos, ora no público, ora na escultora, como matéria que vai-se amalgamando, crescendo ou diminuindo, mas sempre se transformando. É como se o autor só se tornasse visível pela própria invisibilidade, alguém que deixou nesta obra aberta suas pegadas, seus rastros sobre o movimento de outros; e neste processo não poderia assumir inteiramente a autoria, porque isso impediria sua constituição de obra em que falam também as partes.

Michel Foucault [1] faz uma análise sobre autoria e descola o autor de um nome próprio:

“Que importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala. Creio que se deve reconhecer nesta indiferença um dos princípios éticos fundamentais da escrita contemporânea.” (FOUCAULT,1992,34).

Que importa quem fala, se o que está sendo dito é o mais importante? E o que está sendo dito vem de muitas vozes, é impossível delimitar cientificamente até onde vai a autoria de alguém, até que ponto o discurso já não é uma contaminação de outros discursos.

A autoria em colaboração é um processo rico porque envolve muitas trocas e a circulação dos saberes, o aprendizado da escuta do desejo do outro; mas também difícil, polêmico porque envolve diversos interesses, mistura os papéis, embaralha a hierarquia que separava quem pensa e quem executa, quem cria e quem interpreta, quem ouve, quem fala. E produz situações em que o que aprendemos a vida toda sobre autoria e tradução de idéias pode retornar, com o desejo de se voltar a uma forma mais hierarquizada na produção do trabalho; como se nesta postura já estivesse implícita a noção de que a autoria também é um lugar de autoridade e envolve uma política de escolhas, de decisões que precisam ser tomadas.

Pode-se enumerar alguns fatores que vêm associados à responsabilidade pelo projeto: sua viabilização, sua circulação, os meios de produção; então a autoria também tem desdobramentos que se ligam à produção do espetáculo, à sua inserção e circulação na sociedade em que vivemos. Quem se responsabiliza por esse conjunto de fatores que constitui o espetáculo e sua recepção?

Tentarei rever essas questões, nuances que compõem o universo autoral, através do ensaio de Foucault, que enumera uma série de perguntas acerca do autor e da obra, desnudando o processo de autoria:

Como é que o autor se individualizou numa cultura como a nossa, que estatuto lhe foi atribuído, a partir de que momento, por exemplo, se iniciaram as pesquisas sobre a autenticidade e a atribuição, em que sistema de valorização foi o autor julgado, em que momento se começou a contar a vida dos autores de preferência à dos heróis, como é que se instaurou essa categoria fundamental da crítica que é “o-homem-e-a-obra” – tudo isto mereceria seguramente ser analisado. (FOUCAULT, 1992, 34)

O que determina a autenticidade da obra, quais são as instâncias de poder que fazem um juízo de valor sobre ela? E o que me parece fundamental: “em que sistema de valorização foi o autor julgado?” Que valores norteiam quem tem a função de julgar uma obra? O que, ou quem transforma alguém num autor? Essas questões remetem à idéia de um lugar próprio, um nome próprio.

A obra passou a ser, segundo Foucault a partir do século XVIII, atribuída a autores, que deveriam responsabilizar-se perante a lei por seus escritos, sob pena de serem punidos pela ousadia de intervirem com seu discurso numa aparente ordem social. Ser um autor tornou-se portanto um risco, porque o autor instaura uma outra ordem, que é a ordem do discurso. No entanto, essa transgressão passou a ter uma compensação: a obra como propriedade. E o lugar de autor passou a ser um lugar de poder, a autoria passou também a conferir uma autoridade.

Os textos, os livros, os discursos começaram efectivamente a ter autores (outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida em que os discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (e, sem dúvida em muitas outras), o discurso não era, na sua origem, um produto, uma coisa, um bem; era essencialmente um acto – um acto colocado no campo bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do blasfemo.
(…)Como se o autor, a partir do momento em que foi integrado no sistema de propriedade que caracteriza a nossa sociedade, compensasse o estatuto de que passou a auferir com o retomar do velho campo bipolar do discurso, praticando sistematicamente a transgressão, restaurando o risco de uma escrita à qual, no entanto, fossem garantidos os benefícios da propriedade. (FOUCAULT, 1992, 47-48)

O discurso na cultura européia, no tempo histórico a que se refere Foucault, não era “um produto, uma coisa, um bem” porque era público; o que lhe conferia um anonimato. Porém, a partir do momento em que “foi integrado no sistema de propriedade que caracteriza a nossa sociedade”, a atitude transgressora tornou-se também passível de ser punida. O autor tornou-se então o responsável legal pela obra, perante a lei.

As escolhas e decisões que constituem a criação de um trabalho são, portanto, de uma ordem que não é só artística, mas também envolve uma atitude política frente à ordem social; a responsabilidade de defendê-lo perante a sociedade; e também a responsabilidade pelos meios de sua produção, pela seleção de suas imagens. Quem seleciona o que será escrito, ou coreografado; quem escolhe o que será visto?

Estas contradições da criação – presentes em Falam as partes… – que ao mesmo tempo em que precisa ouvir os que participam dela, precisa também de limites e cortes, de uma edição por quem se responsabiliza por ela até o fim e tem um compromisso com seu fazer até a última instância de finalização, são vistas aqui como decorrentes de sua própria concepção. Ela está inserida num mundo em que a obra é um produto, um bem que necessita de um responsável legal; e ao mesmo tempo traz questionamentos sobre este pensamento que exige uma visão do todo em detrimento das partes.

As contradições são uma brecha que se abre para que possamos perguntar: como separar autoria e responsabilidade, autoria e produção? Até onde vai a autonomia de um bailarino? E até onde vai a autonomia de um coreógrafo, que precisa viabilizar o trabalho no “mercado” da arte; articular seu discurso a outros e promover sua circulação? Esta articulação também faz parte do processo de conhecimento e amadurecimento do artista, e é vital para a sobrevivência de um trabalho que deseja constituir-se coletivamente. A dança está em toda parte, e é parte do mundo. A compreensão do lugar do autor, ou dos autores, é bem mais ampla do que sua circunscrição ao território de uma sala de ensaios.

Não fariam parte do trabalho, de sua concepção, também as conversas dos artistas com os programadores de festivais ou dos espaços culturais, que definem um pensamento sobre arte em suas escolhas; com os professores de sua formação acadêmica, que possibilitam um suporte teórico e discussões que aprofundam seu olhar; as limitações financeiras de sua produção; as entrevistas que concede; as aulas que ministra e os alunos que trazem questões surpreendentes; os textos que escreve sobre dança?

A política de escolhas num trabalho coletivo passa por um conflito interno entre as partes que o compõem (Jacques Rancière,2005,15): a partilha dos bens, ou a escolha de que opinião -neste caso um bem- sairá vencedora numa discussão, não é um consenso, porque os recortes e partes exclusivas podem ser contraditórios. Se falamos de uma autoria móvel, que apoia-se em vários discursos, como viabilizá-la num sistema em que a criação coreográfica é um bem, uma propriedade, que necessita de um responsável para responder legalmente por ela?

Não há respostas definitivas para essa pergunta, cada experiência coletiva vai apontando para caminhos diferentes. A Cia. de Dança Dani Lima, com este espetáculo, faz um questionamento também sobre autoria, com as contradições que o tema implica entre o todo e as partes, expondo estas contradições. É nesta exposição de sua complexidade que o trabalho ganha forma, feita por mãos, pés, troncos, cabeças, choques de pensamento, peso, leveza, sinuosidade, diferenças de tempo e espaço, densidade, atrito, velocidade, concentração, distração, dor. O que se move é esse corpo múltiplo, autor do que encena, como parte de uma dramaturgia que está em obra, fazendo-se, desfazendo-se. Cada olhar é parte do que move a dança, feita também de sua respiração, sua tensão, sua insistência.

Há, no entanto, uma questão que se coloca a partir da escrita em colaboração: pode-se circunscrever a autoria de um trabalho apenas ao domínio artístico? Ou ainda: a arte não incorpora também seu contato com os meios de produção, com a recepção, e com os meios que permitem sua visibilidade?

Bibliografia:

DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995

FOUCAULT, Michel. O que é um autor? Lisboa: Ed. Veja, 1992

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003

LOUPPE, Laurence. “Les Imperfections du papier” in Danses Tracées. Ed. Dis Voir, Paris, 1994

RANCIÉRE, Jacques. A Partilha do Sensível. São Paulo, ed. 34, 2005