A Cozinha na Dança: Entrevista com Marcos Moraes

Coreógrafo, intérprete-criador, bailarino e ator, Marcos Moraes em seu trabalho sempre buscou dialogar com diversas linguagens cênicas. Colaborando com alguns dos principais festivais de dança contemporânea do país, trabalha em diversas parcerias artísticas, tanto na dança como na música, no teatro e no vídeo.

Militante, seu histórico traz uma presença notória no cenário nacional de debate sobre a dança e políticas públicas de fomento na área, presença que se fez notar durante o período em que foi Coordenador de Dança da Funarte, atuando diretamente no desenvolvimento de um dos principais projetos da Fundação, o Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna.

Atualmente desenvolve o projeto A Cozinha Performática, plataforma de pesquisa e criação em dança e artes performativas, dividida em três eixos transversais – os Jantares Performáticos, os Experimentos Performáticos e a Criação Cênica –, onde artistas e profissionais que participam atuam criativamente em colaboração.

Em seu currículo, Marcos Moraes traz a experiência de quem quer ainda muito experimentar. O Idança traz uma conversa com o multiartista, que explicou um pouco mais sobre seu projeto atual e desdobramentos.

 

Idança: O que o projeto atual, A Cozinha Performática, tem em comum com seu projeto anterior, o DatingSoccerFood e a partir de que ponto ele se destaca em algo diferente?

Marcos Moraes: Ambos trataram do desejo como força vital e do movimento e ambos estavam baseados na ideia de colaboração como um desafio frente à alteridade. Mas em DSF eu me perguntava mais sobre que dramaturgias surgiriam dos encontros e talvez falasse mais sobre os problemas do desejo. A Cozinha Performática é a celebração do desejo, dos encontros, da potência criadora, ou seja, dos ‘bons’ desejos, rs. Por outro lado a Cozinha radicaliza muito mais a ideia de colaboração. São mais de 40 pessoas envolvidas de múltiplas maneiras; algumas participando dos Jantares Performáticos, apenas, outros envolvidos em algum dos processos e resultados cênicos; umas prestando serviços ‘técnicos’ ao projeto, outras propondo novas parcerias e experimentos. De modo que a ebulição foi muito maior e também a clarificação do conceito do projeto: o caldeirão que vai transformando singularidades em outra coisa. Uma coisa de autoria difusa, que articula o incabível da potência criadora com a densidade da matéria e seus meios de produção; é o mistério dos devires, em constante suceder.

 

Idança: Como surge essa relação entre a dança e a cozinha e de que forma o desejo pelo movimento as une?

Marcos Moraes: Bem, eu sempre gostei de cozinhar, trabalhei como cozinheiro e cozinho para os amigos, às vezes. A cozinha é uma entrega, algo que você prepara com todo o carinho para ser compartilhado. ‘Companheiros’ são aqueles que amassam o pão juntos. Eu estava me perguntando, por um lado, o que me move para seguir em frente, vivendo num mundo cada vez mais desumano, em que tudo vai sendo coisificado e processado pela lógica do consumo. Por outro lado sentia um cansaço no formato ‘espetáculo’. Falamos constantemente em processo, no campo artístico, mas no compartilhamento a realidade mercadológica continua se impondo. Trabalhamos meses para desenvolver processos transformadores, mas muitas vezes nos deparamos com a realidade de que na hora de compartilhar as pessoas vão ver um ‘produto’, um espetáculo, desligam seus celulares por uma hora, gostam ou não gostam e seguem em seu ritmo ensurdecedor. Também convivemos com a realidade da disputa por espaços, curadorias, editais, convites a festivais, um tipo de jogo que ainda pertence à ética da competição, e que eu detesto. Eu queria aumentar essa tensão, problematizar esse lugar do compartilhar e para isso imaginei um ambiente em que mais pessoas participassem do processo, do ‘estar fazendo juntos’. Que isso se amplificasse e fosse o próprio projeto, sem abrir mão dos desafios artísticos da forma. Em relação ao movimento, sinto apenas que os saberes do corpo e aquilo que ainda podemos chamar de dança são processos em atualização constante que produzem um tipo de consciência aumentada. Algo de que não podemos abrir mão nessa transição que ainda estamos vivendo entre o analógico e o digital. Algo necessário nestes tempos sem memória e sem ética. Tudo esta em movimento e se nos movemos com tudo a vida recobra sua dimensão poética e ética.

 

Idança: No contexto colaborativo do projeto A Cozinha Performática, o artista é o ingrediente. Fale um pouco mais sobre esse conceito e o que ele representa dentro do trabalho.

Marcos Moraes: Quem entendeu isso rapidamente foi Sheila Ribeiro. Ela sugeriu que os participantes dos Jantares Performáticos fossem chamados de Ingredientes, num jogo de coisa-objeto orgânico e inorgânico. A ideia de um caldeirão em ebulição me veio desde o início, quando pensei o projeto como uma metáfora quase óbvia da criação em rede. No caldeirão os ingredientes mantêm algo de sua singularidade, mas estão misturados, se transformam em outra coisa. Você come e sabe que ali tem cenoura, batata e frango, mas a mistura e o fogo se encarregam de criar algo que embora tenha cenoura, batata e frango, tem propriedades que já não se resumem a nenhum destes ingredientes. Uma enorme gama de analogias pode ser traçadas a partir daí. É uma metáfora feliz.

 

I: Fruto do Projeto, você recentemente trabalhou com Sheila Ribeiro em Outros Usuários. Como foi a experiência?

MM: Tem sido adorável trabalhar com ela e compartilhar nossas visões estéticas e políticas. Os dois somos artistas que pensamos politicamente de forma parecida, sobre o valor do trabalho que fazemos para nossa sociedade e também sobre aquilo que estamos construindo coletivamente com muitos outros artistas em São Paulo e no mundo. Por outro lado Sheila trabalha muito no campo da cultura digital e tem me ajudado a compreender questões complexas que hoje estão dadas, na forma como todos vivemos. Outros Usuários, A Festa dos Aplicativos, é um trabalho que opera sobre estas relações no mundo de hoje, entre funções e desejos, liberdade e sistema, escolha e controle, enfim, uma brincadeira-festa-instalação formatada por uma dramaturgia que é da cena, mas que é da vida comum urbana. Algo que queremos seguir fazendo e que, entre outras coisas, conseguiu estabelecer um formato que não tem classificação: é festa? É instalação? É dramaturgia cênica?

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Sheila Ribeiro e Marcos Moraes em “Outros Usuários”.

I: Parte do eixo transversal em criação cênica que a pesquisa abrange, você agora estreia o solo Anatomia do Cavalo. Como surgiu a ideia do trabalho? O solo tem concepção sua e do Luis Ferron, que também assina a direção. É a primeira vez que trabalham juntos? Como foi essa a colaboração?

MM: Eu já vinha colaborando com Ferron nos seus últimos trabalhos e partilhado de sua pesquisa no campo da dança tangenciando a performance; a química que ele tem desenvolvido de forma a trabalhar o ‘dentro’ e o ‘fora’ da cena. Ele havia visto meus últimos trabalhos, D de Dating e Solo Lisboa e me desafiado a dançar mais. Eu também havia convidado Ana Teixeira para partilhar a curadoria dos Jantares e coordenar a publicação do livro que faz parte desse mesmo eixo. Os dois tiveram a generosidade de aceitar esse trabalho comigo e sua contribuição ao meu processo é incalculável. Trabalhamos a partir de exercícios corporais, em que a memória do corpo ia sendo acessada e reatualizada, num misto de deixar falar o repertório corporal que eu carregava e ao mesmo tempo perguntar o que era isso hoje, agora. Os dois me lançaram provocações e propostas que desestabilizaram constantemente meus apoios corporais e cênicos. Ferron lançou-se a trabalhar na composição, que é uma marca autoral forte de seu trabalho. Ana no polimento do movimento, na consciência do corpo e no rigor da presença. Foi um enorme privilégio e um prazer imenso. Anatomia do Cavalo é um solo que mistura memórias, o presente, e se baseia na ideia da proximidade com os convivas, ou os comensais, a quem recebemos numa noite para oferecer o prato, ou ‘aquilo que temos para hoje’.

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Solo “Anatomia do Cavalo”. Foto: Marcella Haddad

I: Do trabalho, agora resulta o livro homônimo. Como foi essa transição dos Jantares Performáticos para o livro e de que maneira ela se sucedeu?

MM: O livro era a única indicação que tínhamos para dar um norte aos encontros. Tudo poderia acontecer neles, ou mesmo nada, mas teríamos que produzir uma publicação a partir disso. Ana ficou com a coordenação desse processo e se preocupou bastante que ele tivesse consistência e conteúdo, para não ficar como mais um livro que ninguém lê na prateleira, mas servisse de referência para os estudos e deleite de outras pessoas. Teria que ser algo apetitoso e diverso, como os jantares. Edith Derdyk trouxe sua experiência com os Livros de Artista e pensamos em algo que mais uma vez estivesse entre um formato e outro. Que não fosse registro ou ilustração de nada, mas que também trouxesse parte das discussões que estávamos travando aqui em São Paulo no âmbito do programa de Fomento a Dança. Ana convidou Rosa Hercoles e Christine Greiner para escrever sobre algumas destas questões; fizemos uma conversa com Claudio Bueno sobre Gordon Matta-Clark (o ‘inspirador’ do projeto, com seu restaurante ‘Food’ nos anos 70 no Soho em Nova York) e uma entrevista com Lucio Agra sobre performance. Dalva Garcia e Natalia Barros nos deram textos poéticos extremamente belos. Sheila fez um texto construído dentro de uma lógica digital, que faz parte de sua pesquisa e mestrado. Yuri Pinheiro e Marcella Haddad, os fotógrafos participantes do projeto, trouxeram suas pérolas junto a Edith e a Jaqueline Vasconcellos, que além de produzir A Cozinha Performática, também trabalhou na comunicação e manutenção do site, trazendo alguns desses registros para o livro. Ana, Edith e eu também escrevemos textos sobre questões da publicação e do projeto como um todo. À Edith coube a hercúlea tarefa de dar um sentido visual e poético a tudo isso, numa concepção autoral dela, junto a Ruth Alvarez, que fez o belíssimo projeto gráfico. Lançamos o livro no dia 22 de maio em meio à temporada de Anatomia do Cavalo e queremos que mais pessoas tenham acesso a ele.

 

I: Seguindo esse desdobramento do projeto em conversa com outras linguagens, além do livro, você lança o vídeo Sabroso, dirigido por Osmar Zampieri. Como foi a sua idealização? A produção do vídeo utilizou a super câmera Phantom, que permite a captura em câmera lenta em altíssima qualidade. Como você vê a utilização e auxílio da tecnologia em seus trabalhos?

MM: Osmar já participava do registro em vídeo do projeto e havia feito um ensaio durante o processo inicial, chamado 4XDesejo. Falamos em fazer algo juntos e ele trouxe a questão do como falar do ‘entre’. Ele propôs o uso dessa tecnologia e tivemos uma consultoria importante com Hugo Kovenski, que ajudou na estruturação das questões técnicas. Finalmente, com Fernando Huszar e Gustavo Garcetti, diretores de fotografia, começamos a conversar sobre os desafios de fazer tudo num único dia. Houve uma adesão total deles ao projeto e o mesmo de todos os participantes em frente às câmeras, os ‘ingredientes/amigos’ que tornaram possível fazer uma produção profissional dentro de um orçamento bastante limitado. Arícia Mess fez também a trilha e o resultado vai ser lançado no dia 22. O trabalho com tecnologia me parece hoje em dia algo tão comum quanto o trabalho sem tecnologia. São escolhas que permitem a construção de poéticas e também impõe desafios de enquadramento. Não sou nem fanático nem fóbico por tecnologia. Mas neste caso o vídeo está construído pelo olhar produzido pela Phantom, ou seja, este tempo e este efeito que ela produz, de uma suspensão que permite ver a ação e outras coisas que estão na ação. Tematicamente, Osmar propôs aos participantes que pensassem em um banquete e em que ingrediente eles seriam nesse banquete. E com a trilha de Arícia a narrativa ganhou uma cor especial.

 

I: O projeto traz essa proposta de produção artística em diferentes suportes e linguagens. Já existem planos para outros trabalhos futuros oriundos do A Cozinha Performática?

MM: Sim, como diziam os Doces Bárbaros, ‘nossos planos são muito bons’, rs rs.  Precisarei passar por um ajuste que é o final do apoio do Programa Municipal de Fomento à Dança, que torna possível tudo isso. Mas muito investimento meu e de outros participantes do projeto também foi feito. Então agora desejo realmente compartilhar os resultados e o conceito em diferentes lugares e com diferentes pessoas. Levar Outros Usuários para outras cidades, fazer Anatomia do Cavalo para outros públicos, compartilhar o livro, o vídeo, os ensaios fotográficos e os jantares por aí. Algumas ideias e contatos estão em negociação, sobre levar o conceito e a forma de trabalhar para outras experiências e programas. Também percebi que há muita gente interessada e interessante querendo encontrar uma forma e uma plataforma de trabalho colaborativo que combine o encontro e a autonomia, portanto pretendo expandir para outros projetos de outros artistas também, além da continuidade de meus próprios projetos. Mas tudo isso vai se constituindo no fazer e agora nosso fazer imediato é a estreia de Anatomia do Cavalo e os lançamentos de Sabroso e do livro A Cozinha Performática na Funarte em São Paulo.

 

Marcos estreia o solo “Anatomia do Cavalo” dia 15 de maio e dia 22, após o espetáculo, realiza o lançamento do livro “A Cozinha Performática” e do Vídeo “Sabroso”. O trabalho fica em cartaz até dia 25, no Complexo Cultural da Funarte em São Paulo.

Serviço:

Anatomia do Cavalo
Data: 15 a 25 de maio
Horário: Quinta a sábado, às 20h e domingo, às 19h.
Local: Sala Arquimedes Ribeiro – Complexo Cultural da Funarte em São Paulo.
Alameda Nothmann, 1058 – Santa Cecília, São Paulo – SP.
Duração: 45 minutos
Classificação: Livre
Entrada: Grátis, paga pelo povo paulistano através do Programa de Fomento à Dança.
Retirar ingressos na bilheteria.

Lançamento do Livro A Cozinha Performática e do Vídeo Sabroso
Data: 22 de maio, quinta-feira
Horário: Após a apresentação do espetáculo Anatomia do Cavalo.
Evento: Gratuito.

Anatomia do Cavalo

Dedicado a Soraya Sabino e Graciela Figueroa

Concepção: Luis Ferron e Marcos Moraes Performer: Marcos Moraes Direção e Composição: Luis Ferron Orientação Corporal: Ana Teixeira Técnica Alexander: Reinaldo Renzo Produção: Jaqueline Vasconcellos – Conexão ZAT Assessoria de imprensa: Leonardo Almeida Luz: Mauro Martorelli e Luis Ferron Som: Tom Monteiro Apoio: Funarte São Paulo