O crítico como xamã

Volta e meia, vem à tona a questão da função da crítica. A dificuldade em explicar para que serve a crítica passa, talvez, pelo fato de que a pergunta omite um de seus elementos fundamentais. A questão deveria ser para que a crítica serve em relação a um determinado público que a demanda. Se pensamos que os públicos da crítica são variados, verificamos, a seguir, que temos respostas possíveis em relação a alguns deles. É fácil responder à pergunta, por exemplo, em relação ao “público” propriamente dito, os consumidores de produtos culturais construídos em determinada linguagem, que buscam na crítica uma mediação entre eles e os discursos naquela linguagem. Ou seja, a crítica lhes interessa, essencialmente, por sua proposta de decodificar discursos, comunicar esta decodificação de maneira a ser compreendida por leigos, apresentar um diálogo sobre o assunto. No que se refere aos produtores culturais (inclusive os artistas no momento em que se dedicam à produção, e não à criação), temos fortes evidências de que, apesar de todo seu discurso demandando crítica, seu primeiro interesse é, realmente, pela quantidade e qualidade do espaço na mídia, independente do conteúdo. A questão mencionada acima, então, talvez se reduza a outra, bem mais simples: afinal, para que serve a crítica em relação aos artistas?Tenho cá pra mim que o crítico, em relação aos artistas, exerce função análoga àquela ocupada pelos xamãs em diversas culturas indígenas. Tal analogia funciona a partir de algumas semelhanças fundamentais que integram a própria estrutura da relação entre críticos e artistas:

1) O xamã é parte da tribo, mas não é parte do cotidiano da tribo. Em nosso caso, ele integra a comunidade de determinada arte, mas não os processos cotidianos dessa arte: a sala de ensaios e o espaço de apresentações, por exemplo.

2) A convivência do xamã com os outros integrantes da tribo adquire, portanto, caráter solene. Implica na celebração de algo que não pode deixar de ser celebrado, ou na perspectiva de algum momento crucial na vida daquela comunidade, um grande perigo ou a iminência de uma mudança drástica, por exemplo. Traduzindo para o universo artístico, temos o contato direto entre críticos e artistas em eventos singulares, a presença em espetáculos como convidado, ou, quando não anunciado, a freqüente mudança de postura dos próprios artistas, como se a presença do crítico transformasse aquela apresentação específica em algo singular. Quando o crítico temporariamente se integra ao cotidiano de um grupo de artistas (em trabalhos de dramaturgia, por exemplo), o fato, mais do que tornar cotidiana a relação com o crítico, é interpretado como um sinal de que o projeto específico do qual ele participa se reveste de um caráter especial.

3) O xamã é sagrado, ou seja, constitui a ponte entre dois mundos, um natural, outro sobrenatural. Na aplicação a nossas realidades artísticas, não precisamos da idéia de um mundo sobrenatural, mas da percepção de que os profissionais da arte consideram seu trabalho realizado adequadamente apenas quando consegue se comunicar com espaços e comunidades exteriores a ele – a mídia, a universidade ou os espectadores, por exemplo. O crítico, deste ponto de vista, constituiria uma ponte entre a criação artística e estas comunidades.

Bom exemplo das conseqüências e possibilidades dessa relação ocorreu há poucos anos no Fórum Internacional de Dança. O FID realizava uma atividade denominada “Imersão”. Reunia todos os bolsistas de seu programa Território Minas e lhes propunha que interferissem nos trabalhos uns dos outros. Para administrar a conversa, foi convidada a fã número um do FID, Helena Katz, crítica e pesquisadora de dança. Só que Helena estava adoentada. Veio a Belo Horizonte e compareceu aos encontros, mas em diversos momentos precisava se afastar e repousar. Não fazia diferença. O debate continuava do mesmo jeito, a criação continuava a fluir. O que os participantes precisavam naquele momento de Helena não era sua voz, sua palavra, suas idéias – embora estas também tenham sido agregadas ao trabalho. Precisavam da presença. É como se Helena fosse uma enzima, que não participa diretamente de uma reação química, mas sem a qual aquela reação não ocorre.

História como essa pode dar força a uma idéia que incomoda muita gente na crítica e em outros lugares, mas que merece reflexão. Trata-se da possibilidade de que o crítico seja um profissional inútil. Ou, mais do que isso, um profissional parasita. Não está sozinho. Sempre que discuto essa idéia, coloco na lista, ao lado dos críticos, os professores, os psicanalistas, os presidentes da república, deputados, senadores, governadores e outros ocupantes de cargos nas democracias representativas, e diversas funções mais. São todos profissionais pagos para fazer algo que as pessoas “comuns” são capazes de fazer, mas não sabem que são: governar, educar, psicanalizar (Freud apresentava as três como tarefas impossíveis), criticar, etc. É sempre bom repetir: numa sociedade sadia, saudável, sem hierarquias pré-estabelecidas, sem classes sociais, é muito possível que todas estas funções não existissem, ou, se existissem, fossem completamente distintas daquilo que conhecemos.

É essa nova crítica que precisamos construir. Junto com a nova educação e as novas estruturas de gestão das sociedades, baseadas na autonomia de cada grupo de indivíduos, ou até mesmo de cada indivíduo, e não nas tais hierarquias pré-estabelecidas. Se devemos começar por nosso próprio quintal, então a questão da crítica pode ser imediata para a comunidade artística. O que me lembra uma fala, anos atrás, do diretor de teatro Fernando Peixoto: “Cada movimento artístico engendra sua própria crítica”. Olhando para trás, confrontando essa frase à história, verificamos que é provável que ela contenha verdade. A crítica é uma invenção das artes, dos artistas, das comunidades artísticas. Como antes, no início das organizações humanas, os xamãs foram invenções das tribos. Temos, então, novas questões: se queremos críticos, como devemos inventá-los, para que sejam os xamãs de nossos rituais específicos. Se não estamos conseguindo inventá-los, por que não? Será que os queremos? Será que os queremos da maneira como os vemos hoje? Ou será melhor desenvolver a experiência dos assistentes de dramaturgia, estes críticos “particulares” de grupos, companhias ou produções, que criticam “de dentro”, participam de todo o processo e, portanto, contrinuem para que seja dado um passo além da distância, da solenidade e da sacralidade dos xamãs?

Este texto nasceu de anotações feitas ao longo dos últimos anos, e suas idéias foram debatidas com um monte de gente que, sabendo ou não disso, contribuiu para o desenvolvimento delas. Sem forçar muito a memória, vale lembrar e agradecer Adriana Banana, Luiz de Abreu, Lenora Lobo, Helena Katz, Eliana Pedroso, Rui Moreira, Fernanda Bevilaqua, Vanilton Lakka, Carlota Portela (que não consigo deixar de chamar de Charlotte), Cristina Machado, Mário Nascimento, Thembi Rosa, Baby Mesquita, Carmem Paternostro, Dulce Aquino, Alejandro Ahmed e Thiago Alixandre, entre outros que serviram de cobaias durante o processo, responderam à provocação representada por fragmentos daquelas idéias. Suas reações, verbais ou não, a essas idéias fazem parte da forma atual com que começam a ser configuradas.

Marcello Castilho Avellar é crítico de arte no jornal Estado de Minas e professor na Escola de Teatro PUC Minas