Dança autônoma temporária?

Durante os meses de outubro e novembro, o Coletivo T1 (de Temporário 1) apresenta, em São Paulo, o BAZAR UTOPIAS, proposta que reune treze solos e intervenções urbanas, como pichações e colagens de etiquetas. Sob direção de Adriana Grechi, os trabalhos corporais foram criados de forma autônoma, mas dentro de um processo colaborativo que contou também com a participação de Dudu Tsuda na criação das trilhas sonoras e Rodrigo Gontijo nos vídeos. Como levantes, irônicos e críticos, o BAZAR UTOPIAS aparece como uma maneira de experimentar táticas e formas de organização que possam atender às demandas presentes na prática de um artista do corpo.

Afastando-se das estruturas tradicionais de consumo da dança e apostando em temporadas mais longas, o BAZAR UTOPIAS transforma o Estúdio Move, escola para prática e pesquisa de técnicas corpóreas, num local completamente diferente. O lugar foi esvaziado, cedendo lugar para as performances que ocupam simultaneamente todos os seus ambientes, do sotão ao banheiro, do corredor à dispensa. As criações, em sua maioria localizadas, amarradas a uma rotina de trajeto ou em loop, pareciam desenvolver formas de isolamento. Embora alguns contatos nas zonas fronteiriças sejam permitidos, diálogos não são estabelecidos. Desse modo, o espaço permanece como a grande questão.

O processo para o desenvolvimento dos solos começou com livros, estudos e discussões sobre ativismo político e artístico. Entre as leituras realizadas estava o “TAZ – Zona Autônoma Temporária”, de Hakim Bey, que contribuiu para organizar as propostas coletivas. O autor indica a TAZ como uma ação conduzida por esforço próprio, que começa com um ato de percepção para produzir insurreições, onde seu grande trunfo está na invisibilidade. Segundo Bey, “a TAZ é uma espécie de rebelião que não confronta o Estado diretamente, uma operação de guerrilha que libera uma área (de terra, de tempo, de imaginação) e se dissolve para se re-fazer um outro lugar e outro momento, antes que o Estado possa esmagá-la”.

A história da dança possui vários exemplos de organizações gerenciadas por artistas, que produziram estratégias de criação e visibilidade para a dança. Mais recentemente, vale lembrar do Movimento Teatro Dança, conhecido como MTD90, mobilização estética-política-pedagógica criada em 1993 por nove artistas independentes da cidade de São Paulo, que desembocou no surgimento da Cooperativa Paulista de Bailarinos-Coreógrafos (CPBC). A aparição do termo ‘criador-intérprete’ ou da discussão sobre esse modo de nomear um fazer artístico é um dos legados importantes dessa época.

Entre interesses particulares de pesquisa, a exibição do confinamento surge como um dos resultados predominantes no trabalho do BAZAR. Isso aparece de diversos jeitos, como pela clausura nos solos “Leve Subversão”, de Karina Ka, que sugere estar fechada num pensamento, e “Amor Perfeito”, da atriz Maria Carolina Macari, que tranca um espectador por vez dentro de um quarto.

Em outros solos-utopias, o condicionamento do corpo ao ambiente é radical. É o que acontece quando ouvimos o som do jeans de Lua Tatit se arrastar pelo cimento que recobre o chão. “Aqui” se desenrola num corredor onde as habilidades da performer são requisitadas a todo momento e suas conquistas físicas resultam da interação direta com a dureza e as distâncias entre as paredes. Para a criação “Coluna do Meio”, Graziela Mantoanelli escolheu a quina de um degrau. Já o corpo ora dono-de-si, ora sem governo de Clara Rubim, em “Controle-se”, lembra uma boneca frágil que procura apoio, entre objetos de diferentes tamanhos, numa espécie de ‘abandono-no-impulso’.

Preocupação com a busca do corpo deslumbrante, a veneração da aparência e do olhar alheio, é o que mostram as performances “Fetiche do Clichê do Chic” de Tatiana Melitello, “Desejo na Testa” de Eros Valério, “Drag-Woman” de Mara Guerrero e “Pronta para o Consumo” de Camila Canto. Enquanto a primeira lida com a fachada, a obsessão pela imagem e ambientes artificiais, o segundo carrega todos os artifícios possíveis para explorar sua egolatria. O truque, o músculo falso, o eu e o meu. Enquanto isso, a utopia da veterana Mara Guerrero persegue o corpo de formas perfeitas e reage a presença do outro com um sorriso de photoshop. Na proposta de Camila Canto, três pernas brincam com as imagens e os fetiches que o corpo das bonecas infláveis desperta.

Outros trabalhos não se atam a um determinado lugar, mas em seus trajetos, como é o caso dos solos de Eros Valério, Rogério Salatini em “Embalagem de Estar”, e Luciana Chieregati com “Segura Minha Vida”, que realizam trajetórias maiores no espaço – “interferindo”, respingando e ultrapassando fronteiras invisíveis (inclusive entre o público e os artistas) e cruzando territórios alheios. Com um enfoque maior na tarefa, a utopia “O que Você Deseja?”, de Nirvana Marinho, tenta adivinhar a intimidade do espectador, projetando desejos-padrão de uma sociedade voltada para o consumo. Já Danilo Rabelo, em “Se Deus Quiser”, pesquisa no movimento a emergência do súbito, da imobilidade ao abrupto, do aparentemente estável ao impulsivo.

Como um todo, o resultado é um ambiente atraente, que desperta curiosidade, justamente pela aparente diversidade de pensamentos no corpo. BAZAR UTOPIAS surge no cenário cultural como um acampamento nômade de guerrilheiros autônomos, enjaulados em suas utopias, interpretadas como sinônimo de inalcançabilidade (espelhariam a humanidade imersa na sociedade de controle?). São diferentes entendimentos do corpo, propostos por criadores em distintos estágios de investigação co-existindo num mesmo território.

Ao espectador do BAZAR UTOPIAS é oferecida a oportunidade de transitar, consultando (ou não) o mapa que vem no programa e conferir de que maneira ocorre esse convívio. Fluxos de interesses podem explicar um pouco o movimento do público, que vai e volta, pára e observa, entra e sai.

Uma das impressões que ficam, citando as palavras de Hakim Bey, é que o Coletivo T1 fez algo como “combinar informações e desejos para realizar sua aventura … para intensificar-se com sua própria emergência”.

Nota:

BAZAR UTOPIAS: 7 de outubro a 26 de novembro, sábados e domingos, às 20 horas. Local: Estúdio Move. Rua Medeiros de Albuquerque, 381. Vila Madalena. São Paulo. Os ingressos custam R$5,00, R$ 10,00, R$ 20,00 e R$ 40,00 (opcional). Contatos: (11) 3032-9552, contato@estudiomove.com.br e www.estudiomove.com.br.