Alguém esteve no palco antes de você

Tenho ouvido em diferentes lugares da comunidade de dança do nosso país um discurso que relaciona a poética da dança contemporânea à produção de alguns jovens artistas europeus. As criações desses artistas têm sido conhecidas por nós através da programação de alguns festivais. Em geral, esse discurso aparece como ato de defesa para com uma dança que fazemos aqui, contra uma dança colonialista européia que tem na estrutura dos festivais os alicerces para exercer seu domínio.

A existência desse discurso dentro da comunidade de dança me parece problemática, porque revela o modo pouco acurado como nos relacionamos com as coisas, por diferentes motivos: Primeiro, a produção de grande parte dos artistas europeus que vemos nos festivais data de mais ou menos dez anos, enquanto a poética da arte contemporânea a qual eles se inscrevem vem se desenvolvendo há quase cem anos [1]; segundo, a dança que tal discurso geralmente tenta preservar, em suas bases, tem referência no modo de representação que mais colonizou o corpo cênico na história do espetáculo, o dispositivo coreográfico [2]; terceiro, apesar do aparente desconhecimento que parece fundamentar os argumentos do discurso em questão, arte contemporânea existe no Brasil há mais de cinqüenta anos!

Claro que esse modo pouco cuidadoso de se relacionar com os acontecimentos em nosso meio é fruto de uma grande desatenção em relação aos processos históricos das atividades artísticas, tanto da parte dos que desavisados reproduzem esse discurso quanto dos festivais que, cientes do fato, não criam nem uma estratégia para dar as devidas referências sobre as poéticas envolvidas em suas programações.

É comum encontrar em nosso país trabalhadores da arte cujos conhecimentos sobre a área são restritos primeiro ao tempo em que eles estão ligados à atividade e segundo a geografia na qual eles pertencem e atuam. Por outro lado, as mostras de dança contemporânea são organizadas em contextos políticos específicos. Elas são pontes reais entre a produção local e o mercado de dança nacional e internacional, pois recebem a visita de muitos curadores e por esse motivo é o lugar onde os criadores querem estar. A opção desses eventos é por obras “experimentais” e daí o que acontece é que, para não serem excluídos, alguns artistas acabam adaptando seu trabalho. Outra questão importante refere-se às ações pedagógicas dos eventos. Elas se relacionam pouco com “a história das práticas artísticas contemporâneas”, trabalhando com mais freqüência com o processo criativo dos artistas envolvidos na programação. Dessa maneira, os eventos dão margem a uma reprodução dos processos compartilhados durante o encontro sem uma noção maior do contexto em que essas práticas se inserem.

Num imaginário de idéias onde a história pouco importa, a realidade passa a ser inventada a partir de lembranças recentes. Crê-se que a dança mais conservadora, por ser a referência hegemônica entre nós, é aquela que nos identifica. Enquanto a dança elaborada a partir de uma experimentação em relação à linguagem seria colonialista, pois a experiência recente diz que quem pratica esses tipos de danças são os europeus que mostram seus resultados cênicos e ensinam seus processos no contexto dos festivais. Tanto os defensores do tradicionalismo quanto os promotores dos festivais, fazendo opções diferentes, contribuem para a proliferação desse discurso equivocado de maneira direta ou indireta.

Nada contra quem por razões históricas, políticas, éticas ou estéticas escolhem modos mais conservadores para organizar sua obra de dança ou a eventos que possibilitam o desvelar dos procedimentos de criação de alguns importantes artistas do cenário contemporâneo. O que está em jogo é uma polêmica maior. Como aceitar que a ignorância dos percursos históricos da arte produza discursos tão imprecisos? Como se relacionar com os entraves ocasionados pela proliferação de tais discursos? Aqueles que não trabalham com dispositivos tradicionais, mas que também não conhecem os processos históricos nos quais a arte contemporânea foi desenvolvida fazem o quê? É possível desenvolver um trabalho consistente sobre o qual só se tem uma vaga noção?

Você, integrante da comunidade de dança, pare e pense um pouquinho… O que você sabe sobre os processos históricos da encenação? Você conhece algo sobre as questões que levaram os diferentes grupos de trabalhadores da arte a re-elaborar suas práticas em seus respectivos contextos? Que tipo de relação seu trabalho estabelece com os diferentes tipos de representações cênicas historicamente elaboradas? Como você compartilha seus conhecimentos com os outros?

Eu me pergunto que tipo de arte nós estamos produzindo ou ajudando a produzir com referências tão restritas. O conhecimento sobre a evolução dos processos de representação nos ajuda a ler o modo particular como cada obra se organiza e às quais referências poéticas ela se associa. Desse modo também é possível entender como o artista se coloca politicamente em público. A escolha por um tipo específico de representação consequentemente acarreta num tipo específico de posicionamento político do artista. Construir uma cena na ignorância da relação que ela traça com a história da encenação significa, portanto, uma atuação artística alienada.

É necessário mudar de atitude com urgência! Não é tão fácil como parece atacar um problema tão grave quanto à falta de informação, mas em nossa área é imperativo que nos conscientizemos da situação para que cada um faça sua parte ajudando a transformar o contexto. Por um lado existem alguns títulos sobre a história da encenação teatral, dos diferentes tipos de representação artística, e muitos sobre arte contemporânea no mercado editorial. Talvez eles não sejam precisos, abrangentes, aprofundados, mas o livro é sempre um bom começo! Depois se pode ir à internet, visitar sites de museus, de artistas, assistir trechos de espetáculos que lá estão disponíveis, etc. Por outro lado, os festivais no nosso país, ao meu ver, deveriam dedicar parte considerável de sua programação para fornecer informações sobre a história dos diferentes procedimentos artísticos apresentados pelas obras encenadas em cada edição. Alguns especialistas podem ajudar a encontrar boas soluções pra instigar a curiosidade sobre essa relação.

Há que se ter cuidado com algumas armadilhas do conhecimento sistematizado: a classificação dos modos de representação artística em categorias, estilos ou modalidades tem um caráter didático, mas é muito difícil enquadrar a produção artística de um grupo, de um criador específico, ou mesmo uma única obra num estilo sem reduzir sua complexidade interna. Tentar encontrar uma data e um lugar preciso para o surgimento de um dado tipo de expressão artística é outra armadilha perigosa, pois cada expressão sempre tem referência em modos anteriores encontrados em lugares diferentes. As idéias de cronologia linear (sucessiva, progressiva e substitutiva) e origem autoral e geográfica aplicada aos diferentes modos de reapresentação não se sustentam, pois tais modos co-existem simultaneamente no espaço e no tempo. Sua ocorrência se dá de forma errática e em geral sua manifestação é híbrida e não pura. Isso revela o quão difícil é encontrar um limite claro sobre o que é singular e o que é comum entre diferentes procedimentos artísticos.

Mas dá para distinguir claramente uma representação realista, onde o intérprete se identifica com as questões dramatúrgicas de modo representativo, ou seja, assumindo o lugar de algo que não está lá, de uma representação “abstrata”, que tenta neutralizar a dramaturgia de todo e qualquer conteúdo simbólico que podem ser associados à encenação [3], ou ainda da representação que se preocupa em discutir a condição de existência do que se apresenta na cena e os múltiplos sentidos que esse acontecimento pode gerar naquele momento. Esses três tipos de representação podem de modo muito simples, porém eficiente, estabelecer uma diferenciação dos modos de abordagens cênicas. Sei que me arrisco muito ao reduzir tanto as possibilidades de leitura dos modos de encenação, contudo acho que num primeiro momento tal redução pode ajudar. O passo seguinte é pesquisar as práticas passadas, entender as razões dos diferentes procedimentos e associar tais procedimentos aos seus referidos contextos sociais, políticos e históricos.

Sou testemunha de um momento em que a dança no Brasil tem iniciado um processo de expansão com conquistas significativas nas áreas pedagógicas, artísticas e teóricas. Atacar um problema complexo como esse é crucial para potencializar todas essas conquistas, transformando-as em terreno seguro para uma maior profissionalização da área. Se não tratamos de questões como essas com urgência é capaz de não termos condições de seguir expandindo. Pois cada conquista exige dos membros de nossa comunidade mais e mais competência, não somente em suas práticas, como também no modo de articular seus pensamentos e seus discursos.

Notas:

[1] Levando em conta sua pré-história, encontramos elaborações feitas por Duchamp em 1913 que já correspondem ao modo de fazer-pensar arte contemporânea.

[2] Tal dispositivo foi desenvolvido na França nos séculos XVII e XVIII na corte do Rei Luiz XIV. Sobre o assunto, ver o artigo Coreografia e Gramaticalidade, deste autor, publicado no www.idanca.net.

[3] Sendo o ser humano o animal que se diferencia dos demais por sua habilidade de simbolizar, tal encenação parece ser impossível.