Dança contemporânea e comicidade

No vasto campo das artes, grande parte dos estudos sobre o riso e o risível está mais diretamente ligada ao trabalho teatral. Já que pouquíssimos investimentos teóricos foram mobilizados na aproximação entre a criação em dança e a bibliografia disponível sobre o cômico, cabe atiçar aqui algumas inquietações que dinamizem essa articulação[1]. Entender o corpo cômico na dança contemporânea não só contribui com o levantamento de um conjunto de princípios e aspectos composicionais para apropriações poéticas, mas também com o exercício de projeções teórico-críticas que estejam diretamente ligadas às cenas dos objetos analisados.

Ao invés de me deter na estóica missão de indagar “o que é o riso” ou “quais são os métodos infalíveis de fabricação do cômico na dança”, procuro pensar de que maneira essa reflexão pode corroborar na afirmação do corpo em suas dimensões performativa e pedagógica e do cômico como um meio de subversão de poder e estereótipos. O foco, então, deixa de ser a produção de uma gargalhada explosiva, ou a restrita associação entre riso, bem-estar e prazer. Nesse caminho, o cômico deixa ainda de ser entendido como um mero elemento ou um estilo de criar. Em sua agenda performativa, a comicidade na dança contemporânea ganha o direito de ser, inclusive, desagradável, alcançando uma inflexão mais ampla e produtiva do discurso do corpo.

Ao longo da história, é possível encontrar variadas divisões e classificações do objeto do cômico e do riso que ajudam a localizar as heranças do pensamento sobre o assunto. Para traçar nessas breves linhas um mito de origem na filosofia ocidental, é possível focar no projeto platônico, enquanto uma das mais antigas formulações teóricas sobre o riso. No trecho do diálogo Filebo, o riso está inscrito na discussão sobre o prazer. Para Platão, existem os prazeres verdadeiros – puros e precisos – e os prazeres falsos – aqueles misturados à dor.

Em Platão, o risível é um vício que ilude aquelas pessoas que se desconhecem negando a recomendação socrática do oráculo de Delfos “conhece-te a ti mesmo”, pensando serem mais ricas, belas e virtuosas do que são na realidade. Na teoria do filósofo é moralmente condenável tanto o objeto do riso – alguém que se desconhece – como aquele que ri – por trazer misturado em si prazer e dor. O prazer cômico é um prazer falso e inferior em relação aos prazeres puros do belo e da verdade.

Aristóteles diverge de Platão, pois considera a poesia – e consequentemente a tragédia e a comédia – uma atividade filosófica. A sua abordagem sobre o cômico mereceria um maior desenvolvimento, mas cabe salientar introdutoriamente algumas das premissas propostas pelo filósofo em textos como Poética, Retórica e As partes dos animais que nortearam muitas das teorizações sobre o cômico através dos séculos. A primeira delas é de que o riso é uma especificidade humana, já que o homem é o único animal que ri.

O cômico é o não-trágico, pois não engendra a violência trágica que causa dor e piedade. As coisas risíveis são necessariamente agradáveis, sendo o defeito cômico inofensivo ao apresentar uma deformidade ou torpeza humana, como na comédia, que é uma arte que imita as ações humanas. Para Aristóteles, as coisas risíveis são encontradas nos homens, nos discursos e nos atos. A relação entre discurso e ato ou palavras e ações formam uma tipologia também recorrente em outros autores como Quintiliano e Cícero. Outro crucial ponto legado pelo filósofo é o atrelamento do cômico à qualidade do inusitado, do fator surpresa.

Historicamente, a reflexão sobre o riso se estabelece na medida em que articula linguagem e pensamento num terreno movediço entre a razão – já que o riso é considerado próprio do humano e não dos animais – e a não-razão – muito localizado na esfera da loucura, da paixão, no contexto de oposição em relação à ordem, sendo não-oficial, não-sério, capaz de alcançar ainda uma dimensão mais fundamental que a limitada pelo sério. Na seara dos grandes nomes que pensaram o riso, encontramos ainda Georges Bataille, Michel Foucault, Lévi-Strauss e Freud que concordam que de algum modo o riso abala as certezas do nosso pensamento, traçando conexões inesperadas entre diferentes idéias e campos semânticos.

Se em muitos dos projetos filosóficos correntes desde a antiguidade e no pensamento do século XX, o cômico é situado além da linguagem e do conhecimento ao assumir um caráter de “não-lugar” e mesmo de “indizível”, será possível teorizar sobre o cômico na dança numa articulação performativa? De partida, é necessário desestabilizar uma perigosa associação dessas prerrogativas com uma tradição caduca que relega a dança ao campo do indizível.

Alberti (2002) também flagra que as noções de “impensado” ou “indizível” – que se contrapõem à esfera consciente da razão e da crítica – propostas por alguns dos autores acima citados estão localizadas num espaço teoricamente estabelecido, portanto, são passíveis de serem nomeadas e pensadas pela razão. Contudo, se o cômico, nessas propostas filosóficas, desfaz-se de idéias como ordem, causalidade e rigidez de conexões, ele pode se aproximar muito da dança e, mais especificamente, da dança contemporânea, quando o corpo assume a impossibilidade de firmar respostas definitivas. O risível e o riso são aqui entendidos não só como estímulo e reação explosiva do corpo, mas como discurso e projeto político desse corpo que dança. Como corporalizar pulsões, discussões e éticas na criação? Como resolver isso pela comicidade?

Para citar, é possível jogar no ventilador algumas bem sucedidas mobilizações artísticas no imbricamento entre dança e comicidade na cena contemporânea. O absurdo fetichista no Organizador de Carne de Sheila Ribeiro (dona orpheline); a fúria pop de Solução para Todos os Problemas do Mundo de Neto Machado e Stéphany Mattanó; o riso amargurado de Ricardo Marinelli em Pelo a menos no País das Maravilhas; a nordestinidade revista e ampliada de Marcelo Evelin em Bull Dancing. Em relação aos trabalhos de grupos e companhias brasileiras[2], incluo a Quasar, o Tran Chan e o Cena 11, entre outras iniciativas que implementam estratégias cômicas de composição de maneira mais ou menos explícita.

Pelo a menos no país das maravilhas – Ricardo Marinelli

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Não necessariamente, os trabalhos acima causam acessos incontroláveis de gargalhada. Provavelmente não. Entretanto, acredito que tais exemplos podem ser irmanados por projetarem um olhar humorístico na criação em dança apresentando alguns componentes e mecanismos de comicidade como: a ironia, o inesperado, a descontinuidade, o contraste, o exagero, o grotesco, a citacionalidade, a metareflexão, a aproximação de realidades discrepantes e o descolamento/distanciamento entre ação e comentário crítico. A configuração do corpo e do pensamento em dança referenciada em princípios cômicos feitos de associações e conexões flexíveis e até mesmo contraditórias, estabelece nexos não-habituais, combinações atípicas e, ao problematizar a fixidez de verdades unívocas entre configuração e sentido, pode desmontar estereótipos ligados à maneira de se fazer/dizer a dança.

O estereótipo atende a um conceito de fixidez na construção ideológica do corpo como um modo de representação que conota rigidez, ordem imutável e repetição, sendo a principal estratégia discursiva enquanto “uma forma de conhecimento que vacila entre o que está sempre ‘no lugar’, já conhecido, e algo que deve ser ansiosamente repetido” (BHABHA, 2005, p.105). O corpo cômico sobre o qual medito não se apresenta como indizível, ou aprisionado pela linguagem, mas propõe arranjos não-usuais para os componentes constitutivos dessa linguagem que gera mudanças, e é nessa direção que é traçada uma proposição performativa.

No entendimento de Judith Butler (1993, 2006), a noção de performatividade pode ser compreendida como a prática reiterativa e citacional pela qual o discurso produz os efeitos que ele nomeia. Uma identidade de corpo, enquanto uma realização performativa, requer uma performance repetida que reencena um conjunto de significados já estabelecidos, numa forma ritualizada de legitimação. As possibilidades de realizar uma subversão performativa parecem emergir nas relações arbitrárias entre estes atos, na impossibilidade da reprodução, numa deformidade ou numa repetição parodística que possa sublinhar o caráter fantasioso de uma identidade permanente, em virtude da quebra do contexto que ele performa.

A revisão parodística proposta por Butler é uma forma de subversão política que ganha materialidade cênica por meio de alguns procedimentos de comicidade como os supracitados que constituem formas emergentes/investigativas de criação em dança e possibilitam o surgimento de um discurso politicamente motivado, justamente ao desarranjar velhos hábitos e pensamentos rígidos. Nessa perspectiva, ao relacionar performatividade e comicidade na dança é possível estimular constantes reformulações de assuntos políticos.

Quando rompe com lógicas unívocas entre configuração e sentido, o riso na dança se apresenta como um produtor de fissuras nos gestos significantes que estabelecem o que venha a ser uma “verdade”. Idéias como “base” e “verdade” na dança podem contribuir no enrijecimento de estereótipos e, por isso, devem ser contextualizadas em termos de paródia para que a problemática construção performativa de uma dança autêntica e verdadeira seja detectada. O riso crítico gerado pelo cômico pode desestabilizar categorias fundacionais da identidade de modo a sublinhar como o efeito do original e do inevitável na dança é uma construção fantasiosa.

[1] As reflexões desenvolvidas nesse texto partem da minha dissertação de mestrado “Do cisne-barbie ao cisne asmático: comicidade e subversão performativa de identidade em Chuá – releitura cênica do balé O Lago dos Cisnes feita pelo grupo Dimenti”, PPGAC – UFBA, com orientação da professora Dra. Eliana Rodrigues Silva e apoio da FAPESB-CAPES. Dez./2007.

[2] Junto ao grupo Dimenti, tenho trabalhado desde 1998 numa pesquisa artística continuada que toma como um dos seus focos a proposta de corporeidade feita por clássicos desenhos animados. As animações investigadas apresentam características como: variação abrupta de estados corporais; o uso de legendas e do corpo como legenda; a simultaneidade de ações desconexas no corpo, entre outras. Para conhecer, ver trechos dos trabalhos no youtube: o vídeo Sensações Contrárias (Rumos Itaú Cultural dança 2006/2007) e o infantil Chuá (2004). http://www.youtube.com/results?search_query=Dimenti&search_type=&aq=f

ALBERTI, Verena. O riso e o risível na história do pensamento. Rio de Janeiro: FGV, 1999.

ANDRADE, Elza de. Mecanismos de comicidade na construção do personagem: propostas metodológicas para o trabalho de ator. 2005. 272f. Tese (Doutorado em Teatro) – Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), Rio de Janeiro.

ARISTÓTELES. Arte poética. São Paulo: Martin Claret, 2006.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2005.

BUTLER, Judith. Bodies that Matter: on the discursive limits of sex. New York: Routledge, 1993.

______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução Antônio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. Tradução de: Gender trouble: feminism and the subversion of identity.

SETENTA, Jussara. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador: EDUFBA, 2008).

Jorge Alencar é criador em dança e em teatro. Diretor artístico do grupo Dimenti (Salvador – Bahia). Comunicólogo pela Universidade Católica do Salvador, Licenciado em Dança e Mestre em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia.