Dança versus Dança

Use a imaginação. Você vive há cinco décadas, numa cidade brasileira onde existe alguma regularidade na circulação de obras da cultura erudita. No meio de uma frase, alguém por perto diz a palavra “dança”, sem qualquer adjetivo. Qual seria a primeira imagem que lhe vem à cabeça? Provavelmente, a de uma bailarina com saiote diáfano e sapatilhas de ponta, em postura alongada que insinua leveza. Se a cena imaginada tiver movimento, nossa bailarina provavelmente executa passos de ballet. Se a imaginação for mais fértil e capaz de construir o espaço que cerca a artista, ele é marcado pela tendência aos equilíbrios simétricos no conjunto da movimentação, na disposição dos bailarinos que acompanham nossa estrela e na organização do espaço. Agora, pense nos dias de hoje. Ao estímulo da mesma palavra, há grande probabilidade de que a imagem seja diferente. Aumentaram as chances de que seja visto um homem, e não uma mulher. Os trajes com certeza são diferentes – chances altas para malhas inteiriças, grafismos estampados, construções conceituais, figurinos que imitam roupas comuns. Os movimentos são mais variados, assim como a relação com o espaço. Ninguém mais nega que a dança contemporânea foi uma conquista estética, no sentido de expandir as possibilidades de expressão humana e, conseqüentemente, o universo de objetos que podem ser representados. É bem mais raro, contudo, que a pensemos como uma conquista política.

Voltemos a nossas duas imagens. O que ocorreu entre elas foi uma transformação drástica na maneira como a comunidade representa a dança. A bailarina de saiote foi substituída em nosso imaginário pelo bailarino-atleta, o bailarino-cientista, o bailarino-brincante, entre outros – a palavra “bailarino”, aqui, usada em sua forma masculina por causa do machismo da língua, que representa coletivos de pessoas de gêneros distintos através do gênero socialmente dominante. Antes, uma possível diversidade real não correspondia a uma efetiva diversidade no universo das representações. As representações produzidas por certos grupos que tinham a supremacia econômica, política e social eram consideradas hierarquicamente superiores, constituíam, em si mesmas, a cultura erudita, a “boa” cultura, única fonte possível de “grande arte”. Os grupos imediatamente abaixo desses tendiam à imitação de seus valores. Às classes situadas na base dessa pirâmide restaria a aceitação da idéia de que seus próprios valores culturais seriam hierarquicamente inferiores.

Hoje, o conjunto de representações das classes dominantes se fragmentou. No processo, transformou-se em uma coleção de subconjuntos, que podem ser aceitos como supremos por grupos determinados, mas não são necessariamente aceitos por todos os grupos que ocupam qualquer porção superior da pirâmide. Nesse processo de fragmentação, foi eliminada a possibilidade da existência de um modelo obrigatório para as classes médias e baixas, abrindo-se, portanto, um vazio no qual surgiu a chance de que estas, por sua vez, passassem a considerar legítimos (e, desta forma, boa cultura e grande arte) alguns modelos não endossados pelas elites.

Essa transformação não foi exclusiva da dimensão cultural. Foi contemporânea de uma série de mudanças sociais e políticas análogas na própria sociedade brasileira. Em todo o mundo ocidental, o século 20 foi marcado pela transição de estados que protegiam liberdade e igualdade, formais (porque em tese, porque apenas diante da lei) para estados que ofereciam liberdade e igualdade materiais (porque efetivos, garantidos por cartas de direitos sociais transformados em obrigação do poder público). Em diversos países, esse processo será interrompido com o advento dos fascismos – mas mesmo esses negociam o aumento da igualdade material em troca da perda de liberdades, como no que se refere aos direitos trabalhistas. Em diversos países, nova interrupção ocorrerá quando, no auge da Guerra Fria, ditaduras militares se tornarão alternativas politicamente viáveis aos interesses de cada uma das potências que lideram os dois blocos em que o mundo se divide após a Segunda Guerra Mundial.

O Brasil viverá intensamente as duas interrupções, a primeira na ditadura Vargas (1937-1945), a segunda nos governos militares entre 1964 e 1985. O período que se segue a cada um dos dois momentos é marcado pela afirmação intensa dos direitos de grupos antes colocados em segundo plano no jogo social – com a conseqüente difusão de seus valores éticos e estéticos. O período pós-1985, particularmente, é rico ao afirmar os direitos de minorias, e essa afirmação representará um reconhecimento da diversidade social, política e econômica do país – e, conseqüentemente, de sua diversidade cultural. O choque acaba sendo percebido como algo particularmente intenso, pelo contraste com a hierarquia entre modos de produzir determinada anteriormente. Enquanto nos países europeus, por exemplo, o caminho da cultura de elite, pretensamente monolítica, para o reconhecimento da diversidade foi gradual, nos países latino-americanos ele ocorreu subitamente – como se o que as ditaduras militares houvessem represado em termos culturais fosse libertado em espaço curto de tempo e, portanto, fluísse com mais força e velocidade.

Essa disputa entre forças centralizadoras do poder e forças fragmentadoras não ocorre apenas na relação entre aquele poder e a produção cultural. Reflete-se, também, no interior de cada uma das vertentes daquela produção. No caso da dança, convém comparar o ambiente em que germinam o ballet e a dança moderna com os dias de hoje. O ballet é produto típico de um momento de extrema centralização do poder – e, portanto, do conjunto das representações legitimadas por ele. É claro que no mundo do século 19 havia uma infinidade de modos de dançar. Mas a mesma estrutura que garantia o predomínio, na Europa, de classes industriais e financeiras sobre o restante da sociedade, exigia a recusa ao reconhecimento de danças populares e camponesas como grande arte. Num plano internacional, o mesmo processo se multiplicava: formas cênicas não européias, mesmo se de caráter erudito em suas sociedades, não podiam ter o mesmo status que suas análogas nas metrópoles. Eram pensadas, no máximo, como fornecedoras de elementos exóticos para a produção européia (assim como a criação camponesa dos países europeus serviu de matéria-prima para as danças “a caráter” do ballet). A um conjunto coeso de classes sociais dominantes corresponde uma estética monolítica. Assim como o acesso de integrantes das classes baixas às elites só será aceito com a adoção, pelos ascendentes, dos valores das classes altas, a manifestação de dança produzida na periferia daquelas elites, tanto do ponto de vista social quanto do ponto de vista geográfico, só será aceita quando traduzida pelas rígidas regras do ballet.

A arte moderna surge num momento de ruptura daquelas sociedades. Em fins do século 19 fica claro, nas sociedades industriais, que as classes trabalhadoras adquiriram algum nível de consciência sobre a singularidade de seus valores e sobre o confronto entre elas e as elites. No início do século 20, a Revolução Russa parece demonstrar a viabilidade de uma sociedade moderna que não seja fundada sobre estruturas tradicionais de posse dos meios de produção. O conflito entre vanguardas e tradição, portanto, pode ser visto como manifestação estética, científica e filosófica do conflito maior, político e econômico. Naquele momento, não há como aderir simultaneamente às duas possibilidades. Nas sociedades em que o conflito fundamental é resolvido à força, o caminho dos artistas será determinado pelo estado, como ocorre com a supremacia do ballet na antiga União Soviética, o realismo socialista, a produção cultural nazi-fascista, o apoio do estado à investigação nacionalista dos modernistas latino-americanos. Quanto mais centralizado o poder, mais uniforme será a produção cultural oficial sob os regimes autoritários.

Nos países em que a democracia sobrevive, o conflito entre vanguardas e tradição acompanha a permanência do conflito sobre a propriedade dos meios de produção. Em decorrência disso, assistiremos a uma situação singular: assim como trabalhadores e patrões continuam convivendo em processos de produção mesmo estando em guerra quase aberta, vanguardas e tradição coexistem nos mesmos espaços sociais, ainda que recusem uma à outra o status de grande arte. Cada uma pretende ser a resposta definitiva. Cada uma tem planos de se tornar monolítica e busca estratégias específicas para isso. Na dança, bom exemplo desse momento é a fase em que Martha Graham praticamente proíbe a suas bailarinas qualquer contato com o ballet. Cada lado da guerra cultural produz discursos com os quais pretende legitimar seu direito a todo o espaço de produção. No ballet, o mais célebre deles é a afirmação taxativa de que sua técnica seria suprema – constituindo, portanto, fundamento necessário aos intérpretes de qualquer outra estética. Do lado moderno, a entronização do “novo” como valor central da arte relegava a plano meramente histórico qualquer manifestação fundada exclusivamente na tradição. Da mesma maneira que as ideologias em guerra se distanciavam conceitualmente mas adotavam práticas semelhantes no trato uma com a outra, as vertentes estéticas em guerra eram radicalmente distintas em suas propostas, mas se aproximavam no modo de legitimá-las. As tradições demonstram sua viabilidade apresentando projetos de renovação dentro de formas estabelecidas, como fez o ballet ocidental na Belle Epoque (que aceitou reduzir sua narratividade e aumentar a abstração desde que respeitados seus códigos corporais e espaciais), como fez o ballet soviético ao modernizar o conteúdo ideológico de suas histórias sem abandonar os fundamentos técnicos, narrativos e espaciais da tradição, como fizeram todos os neoclassicismos. As vanguardas contra-atacam com o reconhecimento do conteúdo revolucionário (e, portanto, vanguardista) das tradições periféricas – a forma de manifestações tão distintas quanto uma ciranda ou o teatro nô japonesa pode ser legitimamente incorporada às vanguardas sem se travestir de valores que a traduzam, porque essa incorporação, em si mesma, confronta as idéias da tradição.

A condição contemporânea das artes é distinta daqueles momentos. A Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria demonstraram a inviabilidade tanto do sistema centralizador quanto do estado de antagonismo permanente entre sistemas incompatíveis. Qualquer um dos dois caminhos, num estado de alta tecnologia, conduziria inevitavelmente à autodestruição da humanidade – esse seria um dos fundamentos práticos do discurso sobre diversidade política, econômica e social corrente nos dias de hoje. A resposta artística a esse discurso é uma espécie de estado de quase absoluta tolerância cultural: como não há valores a priori, qualquer conjunto de valores que aparente consistência pode ser aceito. Qualquer hierarquia entre propostas distintas é, necessariamente, relativa. Nesse ambiente de pluralidade, até mesmo as tradições têm seu espaço.

Uma leitura superficial desse panorama poderia indicar que o conflito entre vertentes estéticas acabou, ou estaria prestes a se encerrar. Engano. Ele apenas se transferiu para outros campos de batalha. A suposta paz contemporânea cobrou um preço. Custou uma redefinição severa do papel de diversos agentes sociais, como o próprio estado. Levou ao centro do debate político a idéia de mercado, redimensionando, portanto, o sentido dos negócios privados na sociedade. Desobrigou o cidadão comum de se filiar automaticamente a tendências políticas, econômicas ou estéticas, transformando-o, assim, num agente infiel em todos esses sentidos. Não se obriga mais a participar de determinadas formas de ação política; não se obriga mais a trabalhar, produzir ou consumir de maneiras pré-estabelecidas; não se obriga mais a fruir estímulos estéticos segundo normas estabelecidas por grupos aos quais sua adesão não é voluntária.

O novo campo de batalha das artes, dessa forma, é a luta permanente por espaço junto ao estado, a empresa, o consumidor de bens culturais – ou seja, os agentes que têm como garantir a existência econômica das artes. Na sociedade centralizadora, a forma predominante de arte ocuparia completamente aquele espaço. Na sociedade de ideologias antagônicas, cada forma teria seu nicho pré-determinado nele. No mundo de tolerância cultural, essas duas possibilidades deixam de existir, o que transforma a disputa por espaço em algo cotidiano. Não é surpreendente que o esforço de cada vertente para conquistar legitimidade tenda a crescer.

A obra de arte é bem econômico. Sua produção custa riqueza. O neoliberalismo do final do século 20 eliminou a possibilidade de transferência obrigatória de poupança da sociedade para um ou outro determinado grupo da produção – ou seja, cada grupo está em permanente competição com todos os outros por recursos, já que estes são, por definição, finitos. É preciso provar, a cada momento, por que o estado deve destinar dinheiro dos contribuintes para essa forma de criar e não para aquela. Por que a empresa deve associar sua imagem a uma certa possibilidade artística e não a outra. Por que o público deve assistir a essa categoria de espetáculos e não àquela, ou entrar para certa escola e não para outra, ou oferecer trabalho voluntário aqui, e não acolá. A verdadeira batalha, então, ocorre pela conquista dos “corações e mentes” daqueles agentes sociais e econômicos, uma guerra constante de convencimento e, portanto, uma busca constante por legitimação.

Nesse ponto, podemos voltar ao início. A comparação entre representações acima parece mostrar que, no momento, a dança contemporânea é vitoriosa. Conseguiu se impor como representação predominante. Isso não significa, necessariamente, supremacia real. Não significa que seja “melhor” do que outras formas de dançar. Não significa que se tornou um padrão estético, econômico ou político. Significa apenas que se tornou um parâmetro para o julgamento estético, econômico ou político para a dança neste momento. Um aspecto disso é o maior acesso a recursos econômicos. Quem os distribui, no estado ou na empresa, tem em mente, como metro de seus critérios para a distribuição, uma representação contemporânea – até para apoiar a tradição, pensará em seu sentido atual. Quem consome bens culturais, mesmo se inserido nos vícios de uma economia de núcleo industrial e de uma sociedade de massas, vai buscar cultura de massa que parece sintonizada com a contemporaneidade.

Outro aspecto é o reposicionamento de forças políticas. A predominância da representação contemporânea trouxe para o centro do debate sobre a dança os agentes sintonizados com ela, e afastou para a periferia dele muitos dos que buscam outros caminhos. Os adeptos do ballet, por exemplo, têm sido levados a modificar seu discurso. No lugar do argumento antigo, de que o ballet seria fundamento para todas as formas de dançar, estão afirmando sua singularidade. A redução de seu espaço representaria uma ameaça de extinção – algo insuportável para uma sociedade com alto grau de tolerância. Resultaria no desaparecimento de algo que é patrimônio de toda a humanidade – e, portanto, em prejuízo para as identidades culturais. O ballet tem modificado, também, sua ação, investindo em militância e ativismo que lhe eram estranhos no tempo da supremacia.

Ao mesmo tempo, a dança contemporânea também enfrenta desafios políticos. O mais evidente é a distância cada vez maior entre um discurso que fala de revolução estética e a condição de representação predominante – como manter a militância revolucionária se a dança contemporânea representa, hoje, o poder constituído, o centro do investimento, o status social no universo cênico? Sob esta questão, esconde-se outra que talvez produza mais incógnitas no futuro.

Enquanto um grupo social está em condição periférica, o objetivo comum de seus integrantes – a conquista do núcleo político e econômico – supera e amortece os confrontos internos. Na Idade Média, por exemplo, podemos pensar como “burguesia” ou “povo” tanto o rico empresário que tem uma frota de navios para comerciar com o oriente quanto o paupérrimo artesão que tece os tecidos com que o primeiro se veste. Os maiores inimigos de ambos são externos: o sistema feudal, a nobreza, a Igreja. À medida em que, séculos depois, avança a Revolução Francesa, fica claro que os interesses de “burgueses” e “povo” se distanciaram ao longo dos séculos, e que as demandas de um só poderão ser atendidas às custas dos interesses do outro. Quando a dança contemporânea estava na periferia da produção cultural, as diferenças entre seus agentes eram bem menos significativas que a necessidade de enfrentamento comum com o núcleo tradicional. Na atual condição de hierarquia, tenderão a crescer cada vez mais os confrontos entre formas, entre ideologias, entre possibilidades mais adequadas a uma economia de mercado e outras insatisfeitas com ela, e assim por diante. Novas contradições vão sendo criadas, preservam a dinâmica de todo o processo e conduzem à possibilidade de que precisaremos, em breve, de novas categorias conceituais, que reflitam a inserção específica de cada vertente na dinâmica geral da sociedade.