Dança X Memes: o trânsito entre natureza e cultura | Dance X Memes: transits between nature and culture

O texto é um recorte da dissertação de mestrado Morse de Sangue e discute o entrelaçamento entre natureza e cultura – o corpo e sua dança – mediado pela teoria dos memes, a memética, teoria da evolução para a cultura proposta sob o viés neo-darwinista de Richard Dawkins. Para tanto, apresenta os signos inventados por Martha Graham como memes que se replicam pela dança contemporânea.

É comum ver o criador de dança empenhar-se em criar movimentos ou combinações de movimentos de forma inédita, de tal modo que a luta acirrada pela assinatura de uma peça parece distante do entendimento de que o novo está intimamente ligado ao passado, do jeito que é lembrado e de como se faz organizar no contexto atual. Sem que possamos estancar os processos de conhecimento que acontecem pela interação entre corpo e ambiente, o criador contemporâneo carrega em sua bagagem pessoal a sua história, memórias que a flecha do tempo ajuda a internalizar. O criador de dança serve-se da sua experiência para esboçar novos movimentos.

Esta foi a senha que deu a Martha Graham (1) tanto material, por tanto tempo, para a construção da sua técnica e obra. Esta ainda é a senha que move a dança contemporânea. Aquilo que sobrevive ao tempo permanece mudando. O mesmo acontece com padrões de movimento estudados, treinados, internalizados pelo corpo. É neste encontro, do modo como se dá, que está a chance de uma nova dança e/ou de uma dança nova.

Os memes da cultura parecem participar deste processo. Para testar esta hipótese, foi fundamental utilizar o discurso teórico como ferramenta de aferição de muitos anos de experiência com a técnica de Martha Graham, agora motivo de observação dentro do laboratório de criação. O resultado foi Morse de Sangue, um “kit” que reúne teoria e prática.

Morse de Sangue é um trabalho teórico-prático que propõe o diálogo da dança cênica com as ciências cognitivas e tem como principal abordagem a teoria dos memes, apresentada por Richard Dawkins (2) como uma teoria da evolução para a cultura. Os memes (3), unidades de informação com potencialidade replicadora análoga à dos genes, podem auxiliar no entendimento de como uma instrução cultural atravessa o tempo e se replica de infinitos modos em inúmeros corpos.

O espetáculo Morse de Sangue (4), de mesmo título da dissertação de mestrado, é um texto que reúne os códigos básicos inventados por Martha Graham do modo como evoluíram no meu corpo, neste lugar, neste contexto, e de modo a gerar uma rede complexa de informação, aqui entendida como um texto cultural.

Martha Graham, ao criar um roteiro para a sua codificação, organiza signos em torno do funcionamento do corpo humano com uma gramática regida por leis coladas ao sistema corpo. Esta gramática é composta por um sistema de regras e um vocabulário, ou seja, uma série de signos que, articulados entre si, criam mensagens. Como é que estes signos podem recombinar-se de modo a criar outras mensagens? Como é que estes movimentos de dança sobrevivem ao tempo?

Parece estar aqui o elemento de conexão entre o vocabulário que o corpo aprende e como ele se reorganiza cenicamente. A recombinação ocorre de um jeito peculiar a cada corpo e este processo depende das trocas de informação com o ambiente. No fazer da cultura, como é que uma idéia se propaga pelo mundo, como é que ela se replica (5), se ela se replica, e como é que ela pode compor um tecido, uma trama, que atravessa os tempos na forma de cultura?

Questões entrelaçadas pelos memes da cultura, unidades de transmissão cultural que, segundo Dawkins, propagam-se pulando de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado, no sentido amplo, de imitação. (1979: 214). Quando Dawkins define os memes como unidades que carregam uma informação que vai ser replicada, ele refere-se à potencialidade de criar e transmitir cópias. A possibilidade de imitar está mergulhada neste processo, que ocorre muito mais complexo no caldo da cultura humana. É no terreno da imitação que se pode observar o trânsito entre as informações que abarrotam o ambiente e as que realmente serão internalizadas.

As idéias, como vírus que infectam muitos corpos, propagam-se por muitas memórias garantindo sua permanência. Assim ocorre com muitos padrões de movimento que perduram e que contribuem para a criação coreográfica contemporânea. O segredo da crescente complexidade dos textos da cultura parece estar, justamente, ligado à idéia de que um meme se replica sem fidelidade de cópia. A realidade como a vejo, só eu vejo.

Ao propor a Memética como uma ciência empírica e teórica que estuda a replicação, propagação e evolução dos memes, Richard Dawkins estabelece parâmetros comuns aos genes (fecundidade, longevidade e fidelidade de cópia) a fim de aprofundar a análise que propicia o estabelecimento de relações entre ambos e conclui que, assim como os genes, os memes são fecundos e duráveis se imersos num ambiente favorável, porém não mantêm fidelidade de cópia. Eles não “se deixam” repetir exatamente, parece ser esta a resposta para a diversidade cultural.

Quando Dawkins propõe uma analogia entre genes e memes, mais do que encontrar referências para a construção coerente de uma teoria para a cultura está o propósito de entender o mundo biológico inseparável do mundo cultural. Se há evolução biológica, não há como não falar de evolução cultural. Embora de diferentes qualidades, organismo e artefato são interdependentes e estão mergulhados num processo co-evolutivo. Os memes, replicadores das idéias, saltam de cérebro para cérebro por meio de um processo de contaminação. Como este meme vai se organizar no corpo, que parcerias ele fará, esta é a novidade responsável pela criação de novas linguagens, pela evolução da dança.

Com o objetivo de observar como é que os códigos de Martha Graham evoluíram em meu corpo, comecei por aplicar princípios básicos da técnica que traduzem o seu pensamento. E este pensamento está baseado numa determinada idéia de memória, a sua memória do sangue (6).

Ao criar um novo vocabulário de movimento, Martha Graham passa a contribuir de uma forma bastante polêmica com a nova performance da dança, o evento da dança moderna. O seu método de treinamento nasce e se desenvolve da convivência e do trabalho com dançarinos e atores tanto quanto da sua experiência cênica. A cada nova dança, surgiam novas questões e a necessidade de explorar o movimento que refletisse aquela inquietação.

Abordar o corpo humano como o grande detentor de uma memória do sangue, a inexorável herança atávica, alivia-lhe o peso de ser considerada a criadora de uma nova técnica de movimento. Graham rejeitava a idéia de uma escola de movimentos.

O seu método de condicionamento foi sendo elaborado no transcorrer de suas coreografias, em parceria com seus dançarinos, na tentativa de redescobrir o que é que o corpo podia realizar. Método próprio de treinamento e criação caminharam de mãos dadas durante 65 anos de trabalho ininterrupto.

O seu famoso princípio de contração e release (7) aparece logo na década de 20. Nele começava a sua proposta de dar forma, como movimento de dança, às mudanças anatômicas do corpo dentro do processo de respiração. Mais do que introduzir como tema de movimento a respiração nas salas de aula (o que já vinha sendo feito, mas de outra maneira, por Ruth St. Denis em sua pesquisa com a dança oriental e mesmo pela Yoga no Ocidente), fazer do princípio de contração e release uma codificação do movimento foi a sua grande marca. A este primeiro vocabulário foram agregados exercícios de chão – séries de diferentes padrões onde se exploravam quedas e diferentes níveis de braços, extensões laterais, caminhadas, corridas, pulos e saltos nas diagonais. Novos desenhos, novos movimentos vão sendo inventados de acordo com a necessidade da performance, ora pela improvisação, ora pelo desenvolvimento do treinamento dos padrões já concebidos.

O tempo configura o seu principal padrão de movimento como um meme que se replica sob diversas formas e em diferentes corpos, signos e mais signos que podem escrever muitos textos de dança.

Morse de Sangue vai se organizando dentro do fluxo de memes que, cooperativamente, reconfiguram e recombinam os padrões de movimento inventados por Martha Graham sob um diferente ponto de vista do mundo contemporâneo. Nisto está incluída a história do criador e o arsenal de conhecimento que vaza do meio ambiente. É neste trânsito que o espetáculo apresenta a evolução do pensamento de uma das pioneiras mais complexas da dança moderna que, ao criar padrões de movimento que escancaram o fazer cultural como uma estratégia de sobrevivência do corpo, contribui com o entendimento da dança como forma de conhecimento.

O corpo em cena, inscrito por esta codificação, recombina pensamentos transformados pela interação com o meio. Uma série de movimentos de dança que percorre o espaço e se replica pelo tempo. Desde o início da construção desta codificação (que por si só desvela um pensamento) até à construção de Morse de Sangue, muitos corpos disseminaram esta informação, cada um a seu modo, com seu jeito peculiar de organizar o mundo. A dança não tem começo nem fim; ela pertence ao fluxo evolutivo e mudança é o seu caráter. É preciso compreender a dança como um tipo de raciocínio do corpo, detentor de memória – informação transmitida pelo meio e internalizada no fluir do tempo. O meme é a forma como se organizou esta informação. Memória do sangue. Morse de Sangue.

(1) Martha Graham (1894-1991), bailarina, coreógrafa e pioneira da dança moderna.

(2) Richard Dawkins (1941) etólogo neodarwinista, ocupa em Oxford, desde 1995, a cátedra de Compreensão Pública da Ciência. Dos livros que publicou, O Relojoeiro Cego (1986, edição portuguesa), O Gene Egoísta (1979), O Rio que Saía do Éden (1996), A Escalada do Monte Improvável (1998) e Desvendando o Arco-íris (2000), encontram-se traduzidos em português.

(3) A origem da palavra meme está em mimeme, cuja raiz grega é a de imitação, e pode ser relacionada a memória ou à palavra francesa même, que significa mesmo. (1979:214).

(4) Morse de Sangue (1998). Espetáculo exibido dentro do evento “Navegar é preciso…”, Sala Jardel Filho, Centro Cultural SP, parte do exame de qualificação para defesa de mestrado em Comunicação e Semiótica (PUC/SP).

(5) É importante enfatizar que o verbo replicar contém a idéia de copiar e transmitir, e não simplesmente a de copiar ou reproduzir.

(6) Graham baseou o seu trabalho em movimentos nascidos de uma memória do sangue, cujo padrão básico de movimento associa o ato de respirar ao ato de contrair e relaxar a musculatura pélvica.

(7) A palavra release, na linguagem grahamniana, corresponde ao ato de inspirar associado à relaxação, à distensão ou expansão da musculatura do corpo.

* Gaby Imparato é bailarina, coreógrafa e professora de dança na Faculdade de Comunicação e Artes do Corpo, PUC/SP. Graduada em Física, Mestra com a dissertação “Morse de Sangue” e doutoranda com a tese “Comunicação em Cena”, investiga a dança como processo irreversível de conhecimento dentro do Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC/SP.

Morse de Sangue. Dissertação apresentada como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Católica de São Paulo, sob a orientação da Profa. Dra. Helena Katz (1999). Disponível na Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri – Campus Monte Alegre, PUC/SP.

Bibliografia:

DAWKINS, Richard (1979). O Gene Egoísta. Trad. Geraldo H. M. Florsheim. Belo Horizonte, São Paulo: Ed. Itatiaia, Ed. da Universidade de São Paulo.

________________ (1996). O Rio que Saía do Éden: uma visão darwiniana da vida. Trad. de Alexandre Tort. Rio de Janeiro: Rocco. .

GRAHAM, Martha (l993). Memória do Sangue. Trad. Claudia Martinelli Gama. São Paulo: Editora Siciliano. .

HOROSKO, Marian (1991). Martha Grahm – The Evolution of Her Dance Theory and Training 1926-1991. Chicago: Review Press Incorporated. .

KATZ, Helena & GREINER, Christine (2001). A Natureza Cultural do Corpo. In: Lições de dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade Editora. .
The text is a clipping of the master dissertation Morse de Sangue and focuses on interlacement between nature and culture – the body and its dance – mediated by the theory of memes, the memetics, theory of the evolution for the culture proposed by neo-Darwinist Richard Dawkins. For such, it presents the signs invented by Martha Graham as memes, which talk back through the contemporary dance.

It is common to see the dance creator to pledge itself in creating movements or combinations of movements, of unknown forms, in such way that the fight incited by the signature of a piece seems to be distant of the agreement that the new is intimately linked to the past, of the way that it is remembered and of how it is organized in the current context. Without being possible to stanch the discovery processes that happen by the interaction between body and environment, the contemporary creator loads in its personal luggage its history, memories that the arrow of the time helps to internalize. The dance creator serves itself of its own experience to sketch new movements.

This was the password that gave Martha Graham (1), such material, for such time, for the construction of its technique and workmanship. This still is the password that moves the contemporary dance. What survives time remains changing. The same happens with the standards of movement studied, trained, internalized by the body. It is in this meeting, in the way it happens, that it is the possibility of a new dance and/or a dance new.

The memes of culture seems to participate in this process. To test this hypothesis, it was fundamental to use the theoretical speech as a tool of gauging of many years of experience with Martha Graham’s technique, now a reason of observation inside the laboratory of creation. The result was Morse de Sangue, a “kit” that congregates theory and practics.