Dançando com os mortos

Thiago Granato, artista brasileiro que vive hoje entre Brasil e Alemanha, estreia dia 27 de fevereiro seu solo Treasured in the dark (saiba mais aqui), primeiro de uma trilogia prevista em seu projeto Coreoversações. O projeto surgiu enquanto era bolsista na Akademie Schloss Solitude, em Stuttgart. A ideia é produzir três peças e, em cada uma, Thiago aparece como uma espécie de mediador de um diálogo coreográfico entre dois artistas diferentes.

Neste primeiro solo, tratam-se de dois artistas já falecidos:  o japonês Tatsumi Hijikata (1928-1986), criador do butô, e o norte-americano Lennie Dale (1934-1994), radicado no Brasil desde 1960, conhecido aqui pela sua atuação no Teatro de Revista e pela criação do grupo Dzi Croquettes.

Conversei com o Thiago sobre o projeto e sobre a criação deste solo, sobre as relações que ele encontrou entre os trabalhos desses artistas.

Como surgiu esse projeto?

Thiago Granato: Eu estava muito interessado em como os artistas escreviam sobre os seus próprios trabalhos e como falavam do que eles faziam. Comecei a ler muitas entrevistas, de artistas de diferentes áreas, e percebi que havia maneiras muito diferentes de falar sobre o que se faz, mas notei também que não tinha muita literatura nesse sentido em dança. Achei que podia ser interessante tentar fazer uma tradução, criar uma coreografia usando essas diferentes lógicas.

Eu comecei a fazer uma lista de coreógrafos que me interessavam, mas a logística era complicada, porque na verdade eu não tinha dinheiro pra convidar as pessoas com quem eu queria trabalhar. Eu pensei: “Será que eu realmente preciso estar com essas pessoas pra trabalhar com elas? Tem tanta informação, que talvez eu possa inventar, imaginar como seria esse trabalho”. Comecei a fazer alguns experimentos e, em um certo ponto, pensei que se eu não precisava estar com essas pessoas, talvez eu pudesse trabalhar com gente que nem está mais viva.

Surgiu essa questão sobre a temporalidade e sobre a presença. Pensei então em trabalhar com diferentes tipos de presença: no primeiro solo trabalhar com pessoas que já morreram, no segundo com pessoas que estão vivas e no terceiro com pessoas que ainda não nasceram, fazer uma espécie de projeção do futuro.

Quando eu li sobre o projeto, me chamou a atenção o fato de que é uma ideia de longa duração. Como foi pra você planejar algo que vai se estender por tanto tempo?

TG: Na verdade eu nunca fiz um projeto assim. Mas foi intencional, porque eu estava incomodado em ficar fazendo peças diferentes, todo ano, mudando de lógica. Então eu quis criar condições para poder me dedicar a uma ideia por bastante tempo. Queria poder revisitar as mesmas questões e ver como elas se desenvolvem no tempo.

E para este solo, como foi a escolha desses dois artistas e por que esses dois?

TG: Primeiro eu fiz uma lista de vários coreógrafos que me interessavam. Aí eu comecei a colocar um ao lado do outro e pensar que tipo de tensão poderia surgir desse diálogo. Quando eu pensei em Hijikata e Lennie Dale, pareceu que tinha uma tensão interessante, porque um era butô e o outro era jazz.

A princípio a escolha foi por causa do atrito, mas depois, quando eu comecei a pesquisar mais, eu comecei a achar muitas similaridades entre os dois. A primeira é que os dois viveram e trabalharam num mesmo período, entre os anos 1950 e 80, e viviam em contextos sócio-históricos semelhantes. No Brasil, o Lennie Dale vivia sob a ditadura militar, enquanto no Japão tinha essa presença dos Estados Unidos no Pós-Guerra, e era uma situação muito turbulenta, com muitos protestos na rua… A situação de opressão era parecida. E, além disso, apesar das diferenças estéticas, nos dois tem uma relação com a precariedade. Os dois mostravam o corpo, pintavam o corpo, falavam muito de sexualidade, de homossexualidade, os dois se travestiam, eram figuras da noite. Os dois tinham uma relação obsessiva com o movimento, performavam os próprios trabalhos…

Eu comecei a traçar vários paralelos e me pareceu que os dois estavam respondendo ao mesmo tipo de força, buscando uma liberdade do corpo… Os dois falavam em metamorfose do corpo. Eu fiquei pensando que eles tinham que ter se conhecido.

Eu fiquei pensando também na diferença de personalidades. A imagem que eu tenho do Hijikata é de uma pessoa introspectiva, profunda, depressiva, e o Lennie Dale, por outro lado, fazia um trabalho debochado, com uma característica forte de celebração, festivo…

TG: Isso me surpreendeu muito também, porque essa era a imagem que eu tinha. Mas aí, quando eu fui pesquisar mais a fundo, as coisas se inverteram. Comecei a ver o Hijikata como uma pessoa voltada pra fora e o Lennie mais introspectivo. O Hijikata tem uma produção que não é muito conhecida, mas ele já fez filmes trash, de terror, ele coreografava orgias, tinha um clube de sexo, era traficante e, pra ele, tudo que ele fazia na vida noturna não era menos importante do que esses trabalhos que a gente conhece aqui.

E sobre o Lennie Dale, por outro lado, eu conversei com pessoas que conheceram ele, e falava dessa minha visão, que eu imaginava ele muito extrovertido, e elas falavam “de jeito nenhum”. Contavam que ele era uma pessoa obscura, introvertida, misteriosa… Mas com certeza, isso é uma visão particular minha, e tem a ver com o fato de que eu estava enxergando um através do outro. Você começa a comparar.

E como é que essas diferenças e semelhanças afetam você e como elas aparecem na peça?

TG: Na verdade isso não é uma peça sobre os dois ou uma homenagem aos dois. É uma colaboração entre nós três. Eu fiquei imaginando o que que eles me proporiam se estivessem presentes. Eu fiz essa pesquisa pra poder ter material suficiente para criar essa ficção. Não é sobre butô, nem sobre jazz, sem sobre se travestir. O ponto sobre o qual me pareceu que eles poderiam querer dialogar era essa ideia de metamorfose do corpo.

Então, quem for assistir não vai encontrar referências estéticas mais diretas à obra dos dois?

TG: As referências estão lá, mas de uma maneira muito particular, é como eu vejo. Talvez alguém que conheça a obra dos dois possa reconhecer as referências, mas isso não é importante, porque o trabalho não é sobre isso. Quem não conhece, vai poder encontrar outras coisas.

Uma coisa que eu observei no material que você nos enviou é que tem um cuidado grande com a linguagem, para se referir aos dois como se de fato eles tivessem coreografado a peça, como se fossem os criadores.  Mas até que ponto não foi você quem criou os dois?

TG: É que quando eu comecei a pensar sobre os dois, eles começaram a aparecer pra mim. Sabe quando você faz uma pesquisa no Google, e começam a aparecer um monte de anúncios sobre aquilo que você pesquisou? Foi mais ou menos assim. Por exemplo, quando eu estava em Paris, no Recollets, fazendo uma residência com esse projeto, eu conheci um coreógrafo americano, que foi da Brodway também, e que trabalhou com o Lennie Dale. Eu achei que ele tinha o espírito do Lennie Dale, de algum jeito, por ter vivido a mesma época, ter experiências parecidas.

Eu comecei a trocar e-mails com um amigo meu, que trabalhava comigo na época, e eu mandava mensagens pra ele assinando como Lennie Dale, e ele respondia assinando como Hijikata. A gente tinha esse trabalho de fazer uma pesquisa histórica para usar as palavras que os dois usariam pra dizer o que a gente queria dizer. Eu tinha também um jogo de cartas, com frases dos dois, que eu consultava quando tinha alguma dúvida. O Sandro Amaral, que fez a assistência de direção, também me ajudava dizendo “O Lennie Dale não faria isso”, ou “o Hijikata não diria isso”. A gente foi criando estratégias para materializar essas presenças.

É legal dizer que esse projeto não se refere somente a fazer uma peça. Tivemos outras ações, como workshops, residência, eu sempre usei muito da contribuição das pessoas para construir o trabalho.

Você já sabe quem vão ser os ‘convidados’ das próximas partes da trilogia?

TG:  Da terceira ainda não, ainda tem muito o que pensar sobre quem seriam esses artistas que ainda não nasceram. Mas na segunda parte, são o Cristian Duarte e o João Saldanha, que são coreógrafos com quem eu já trabalhei.