Dançando conforme a música

O Tanz im August, um dos festivais dedicados à dança contemporânea que acontece na cidade de Berlin, teve sua nona edição de 17 de agosto a 1 de setembro deste ano. Com o interesse centrado na relação do movimento com a música, apresentou cerca de 20 espetáculos, junto a uma série de outras atividades como shows, apresentações dos resultados do projeto de formação em dança contemporânea do ex.e.r.ce (Montpellier), reflexões, instalações, projetos destinados a jovens com menos de 16 anos e etc. Eu assisti 13 espetáculos e quero propor um exercício de comentá-los rapidamente, mesmo com o prejuízo de ser superficial, para dar aos leitores uma noção do corpo desse evento. Então não percamos tempo e vamos aos espetáculos.

A primeira noite talvez tenha sido a mais impactante em termos de articulação do programa. O encontro entre as obras da coreógrafa Anne Teresa De Keersmaeker e do compositor Steve Reich foi uma noite artisticamente memorável. Repetições (frequentemente de pequenos trechos, com pequenas variações através de grandes períodos de tempo) ou estáticos (na forma de tons executados durante um longo tempo); ritmos quase hipnóticos se desdobram em música e em dança. O fato dos músicos, bailarinos, instrumentos e corpos afinados dividirem o palco evidenciou o conceito serial ou minimalista a que ambos artistas dedicam seus trabalhos. A junção de obras de diferentes épocas deu a dimensão da longevidade, fidelidade e coerência de tal dedicação. Música Pendulo 1968, Frase Para Piano 1967 e Poema Sinfônico Para Cem Metrônomos de György Ligeti 1962 foram os pontos altos das duas horas interruptas de espetáculo.

Outra obra marcante juntou em cena o compositor Mateo Fargion e o coreógrafo Jonathan Burrows. Dessa vez o interesse dos dois criadores e interpretes de The Quiet Dance estava focado em como uma dança pode se organizar como música, na primeira parte e na segunda como uma música pode se organizar como dança. Burows tem 47 anos e Fargion é um ano mais novo. A marca do tempo sobre o corpo desses dois homens que fazem da cena um espaço de jogo é um dado que acompanha a apreciação da obra do início ao fim. Gestos simples, elaborados com bom humor e precisão matemática, vão se desenhado na cena de modo inesperado e surpreendente. A primeira parte é dedicada a explorar as possibilidades de combinação de um pequeno fragmento de movimento e minha capacidade de escrita não é suficiente para expressar o nível de complexidade que eles alcançam na elaboração dessa proposta. E a segunda eles fazem o mesmo com sons. Nos 40 minutos que dura a obra, eles demandam um ato nível de concentração e um despender intenso de energia que conduz a audiência a um nível de fascinação absoluto.

Yvonne Rainer e Xavier Le Roy fizeram obras diferentes sobre a mesma música de Stravinsky, a Sagração da Primavera. A obra de Le Roy já foi comentada em texto anterior[1] e a obra de Rainer, intitulada Ros Indexical, está de fato criada sobre a trilha sonora de uma reconstituição da estréia do Balé de Nijinsky, de 1913, pela BBC. Desse modo, junto com a música, houve-se todo o rumor da platéia, alguém que desesperadamente conta os compassos da música, que se supõem ser o que aconteceu na época. Em cena, quatro mulheres entre 30 e 60 anos, dentre elas Emily Coates, ex-Primeira Bailarina do New York City Ballet. Inicialmente com fones de ouvido postos, as intérpretes cantarolam os sons da música de Stravinsky e depois intercalam trechos da coreografia “original” com momentos onde descansam sentadas num sofá. Há um momento em que elas tentam dançar calçadas com “sapatos caixas”, numa referência a uma obra antiga de Rainer e outro onde do teto caem vários tecidos com palavras escritas, suscitando a superposição de idéias que obra propõe. O interesse de Rainer era de desconstruir e analisar estes antecedentes clássicos, pondo em questão a idéia de convenções estéticas como extensão de um virtuosismo técnico. Todos os elementos necessários para fazê-lo estavam ali disponíveis, porém o modo como estes foram organizados pela coreógrafa ficou aquém da proposta.

Os espetáculos Kindertotenlinder e Ladies First, criados respectivamente pela coreógrafa francesa Gisèle Viene e pela parceria do coreógrafo israelense Matan Zamir com o italiano Nicola Mascia, poderiam ocupar uma parte especial da programação. Os dois articulam códigos, com os quais a maior parte da audiência não tem familiaridade. O primeiro está voltado para uma estética gótica e é inspirada na mitologia austríaca, e o segundo para uma estética queer e é inspirado nos cabarés berlinenses dos anos 20 e 30 do século passado. No caso de Viene, o estranhamento pode até ser uma base para renovação das matérias do sensível, mas em minha opinião não chega a isso. No caso de Zamir e Mascia está claro que é um disparate total, um gasto absurdo de dinheiro em cenário, figurinos e efeitos visuais a serviço da auto-exibição como espaço de afirmação do ego e não como a afirmação de uma possibilidade de existir fora dos padrões socialmente convencionados. Uma pena, pois a questão abordada é importante e merece ser tratada como lhe corresponde.

Diego Gil, Alice Chauchat e Frédéric Gies, três jovens coreógrafos, também tiveram seus trabalhos acolhidos na programação. Os diferentes trabalhos: Creating Sense de Gil e The Breast Piece (Praticable), título da noite que uniu os trabalhos de Chauchat e Gies, são elaborações que a meu ver ainda não encontraram potência formal. No caso de Gil, beira a ingenuidade despercebida e não proposital. Chauchat não foi capaz de desenvolver a boa idéia esboçada no início e Gies também intriga no início e põe tudo a perder ao desenvolver sua dança. Com Gil dança Therese Markhus e Irina Mueller, o trabalho de Chauchat é um solo e com Gies dança Odile Seitz e Frédéric de Carlo.

Creating Sense tenta ser uma perspectiva otimista sobre o caráter impermanente da vida, propõe a continuidade como construtora de sentido, o que parece inteligente enquanto idéia, porém a realização de tal idéia na cena não é equivalente. Consiste em uma lenta e constante aceleração dos tempos de realização dos movimentos de cada intérprete (de modo não muito preciso), que vai reverberando, em termos de forma, qualidade e ocupação do espaço, uns nos outros, e termina em um frenesi apoteótico ao som de um rock – o que para mim não chega a configurar uma perceptiva. Se a dinâmica de impermanência da vida contemporânea configura esse tipo de sentido eu não creio que tenhamos motivos para ser otimistas.

No solo, Chauchat trabalha sobre a representação da “mulher” a partir de técnicas de treinamentos físicos para questionar a relação de corpo natural e representação cultural. No projeto coletivo, trabalha a inter-relação entre pesquisa, criação artística, troca de idéias e produção de estruturas. A criadora e intérprete entra em cena, tira a camisa e, sobre o som de uma música do compositor romântico Ernest Chausson, pratica exercícios para o enrijecimento da musculatura peitoral sentada numa cadeira. Essa parte é extremamente sutil e inteligente em termos do contraste que os dois elementos provocam. A partir daí tudo parece perder o sentido. Ela levanta-se e dança pelo espaço sem música, mais tarde entra uma música cantada por Janis Joplin, mas nada parecer ter conexão. E à medida que o tempo passa e a cena continua, o que havia de interessante vai se perdendo. No projeto coletivo ocorre algo parecido. Os três intérpretes desenvolvem uma estrutura onde pasmam de um vocabulário de dança para outro de modo interessante, mas a evolução disso perde a direção do início e acaba ao som de uma música pop. Se a idéia era questionar o fim comercial de certas poéticas de movimento que historicamente ganham estabilidade, essa se esvaziou no modo óbvio da abordagem.

SaŠa Asentic é também um jovem artista, mas ele merece um espaço diferenciado nesse texto. Ele vem da Bósnia e apresenta um trabalho chamado My Private Biopolitics , que eu traduziria livremente por “minha experiência política”. De fato é uma obra autobiográfica onde ele problematiza seus próprios conflitos ao se deparar com as diferenças de entendimentos sobre dança contemporânea entre uma parcela da produção ocidental européia e o contexto de onde ele vem. Ele organiza sua obra para ser mostrada inicialmente em seu país nos moldes de uma lecture-performance – tipo de encenação estrangeiro a tal realidade. Dessa maneira ele cria todo um debate, em seu contexto, sobre quem dita as regras de como deve ser uma encenação de dança. Quando ele é convidado para apresentar seu trabalho no Tanz im August, ele acrescenta toda uma discussão sobre o porquê do convite e que tipo de conseqüências traria a apresentar essa peça fora do contesto para o qual ela foi criada. Em seu trabalho, ele elabora boas idéias de modo crítico e em alguns momentos bem humorado. Está tudo em seu devido lugar. O detalhe que me parece pontual é que, em cena, ele parece um aluno aplicado que fez bem sua lição, que pode, com o tempo e o amadurecimento, ser superado.

Michael Lub, também interessado em autobiografias, apresentou Portrait Series Berlin, um trabalho que tem seu elenco formado por profissionais e não profissionais de dança. Mais especificamente ele se interessa pela questão de quem o outro gostaria, pensa ou é. Nesse sentido ele trabalha com as fronteiras entre o natural e o artificial. De fato seu dispositivo cênico expõe pessoas fora dos padrões socialmente convencionais numa espécie de exploração de intimidades e bizarrices humanas. Ele dá um tratamento um tanto publicitário a sua cena pondo cada pessoa-personagem em frente a uma lona normalmente utilizada como fundo em estúdios, o que torna a situação mais perversa, e por fim apresenta uma dança meio militar e sangrenta. Um trabalho cheio de contradições.

Claudia de Serpa Soares e Grayson Millwood apresentaram Edgar, uma peça apresentada no programa como a história de um homem gordo e solitário que não quer desaparecer e sonha em ser estrela de um circo, como os que haviam nos anos 20 do século passado. Os dois criadores inventam um pretexto interessante para expor as suas habilidades acrobáticas. Uma encenação inteligente, que utiliza de modo brilhante grande caixas de papelão como cenário e segue uma seqüência de ações dramatúrgicas bem dinâmicas. Eles não ultrapassam a exibição do domínio da performance técnica, estando mais para o terreno do entretenimento do que o da arte.

Eszter Salamon apresentou And Then, uma peça pouco iluminada, cuja matéria principal é depoimentos e conversas em dois planos diferentes, um da cena ao vivo e um segundo da projeção em vídeo. No primeiro plano três interpretes: a criadora, Aude Lachaise e Bojana Cvejic, e no segundo plano, além das três que vemos no primeiro, outras três mulheres que aparentam ser suas respectivas mães. A natureza dos temas tratados é existencial e quase sempre auto referenciada. A descontinuidade que marca tanto a seqüência de aparição dos depoimentos e conversas, quanto a alternância ou simultaneidade de ação dos dois planos, nos coloca numa espécie de labirinto vertiginoso, quebra cabeça que bem lembra o tipo de fragmentação praticada pelo cineasta francês Jean-Luc Godard em seus filmes. Aliás, a penumbra instalada de modo recorrente na cena, efeito que confunde os dois planos, concede ao espetáculo uma textura cinematográfica documental. A noção do tempo entre os extratos das diferentes histórias parece lenta e interrompida. Trata-se de um espetáculo de difícil recepção, mas com indiscutíveis qualidades no tratamento, na estrutura e na encenação.

Meg Stuart dividiu o palco com Philipp Gehmacher e os dois com o músico Niko Hafkenscheid para apresentarem a obra Maybe Forever, proposição cênica que procura elaborar questões como eternidade, solidão, melancolia e vínculos. Trata-se de um pretexto onde os dois coreógrafos encontram um espaço onde coabitam as respectivas poéticas, elaboradas ao longo de suas carreiras, com especial destaque para a supremacia performática de Stuart. A obra é um lugar onde o conhecido se contrasta com um contexto diferente lhe dando singular sentido. Stuart cria há aproximadamente 20 anos. As suas peças Disfigure Study (1991), No Longer Readymade (1993) e No One is Watching (1995) circularam extensivamente. Gehmacher começa sua carreira quase 10 anos depois, embora os modos de organizar as ações tenham sintonias diferentes. Experiências cênicas é um fato objetivo que salta aos olhos do espectador. A meu ver, Maybe Forever é uma reedição da matéria criativa de Stuart, o que dá a impressão ao espectador de estar numa retrospectiva pensada para ampliar os aspectos da trajetória da artista. Vale pela estupenda habilidade performática, extremamente bem estruturada cenicamente.

No geral, opino que essa edição do Tanz im August teve a enorme qualidade de reunir espetáculos que, entre suas diferentes potências e fragilidades, compartilharam um caráter experimental na elaboração da linguagem da dança, o que me parece ser um grande feito para um evento de tal porte. Tal característica não é a regra em programações anuais como essa e, por esse motivo, o Festival é uma referência importante e merece nosso prestigio. Meus especiais agradecimentos à produção do evento que facilitou nosso trabalho.


[i] Um verão de estréias na França