Desejo de sentimento…e prazer no ato de pensar

Texto originalmente publicado na revista Ballet Tanz. Tradução de Sandra Lyra, do Instituto Goethe do Rio de Janeiro

Uma mulher se agarra à quina de uma mesa, mobiliza todas as suas forças. Cada segundo parece uma eternidade. Ela ergue a mesa bruscamente, bamboleia como se estivesse sobre um penhasco, cai. A cesura entre filme e palco se abre, e se abre largamente. E, ainda assim: mesmo nesse trecho fulguram na cabeça incontáveis imagens de todo o tipo de histórias e gêneros. No instante seguinte, uma explosão monstruosa de som, que leva tudo aos ares. Estilhaços, lascas, salvas de tiros. Os atores buscam proteção – e justo embaixo dessa mesa -, fogem em pânico.

O que resta são rolos de fumaça que se dispersam bem devagar. Silêncio mortal. No lado direito do palco, aparece uma mulher. Ela ajoelha, chorando, em meio a escombros; a última sobrevivente de uma catástrofe, procura algo que já não existe mais. No meio do palco, uma figura se torna visível. Com dificuldade, ela se arrasta pelo chão, e luta, moribunda, em busca de palavras, de sons. Duas cenas que nada têm a ver uma com a outra, dois finales um ao lado do outro. O olhar se fixa nelas, fragmentos de histórias se formam em volta delas, histórias como os filmes as contam. E, ainda assim, elas acontecem aqui, sobre o palco. Não são nem isso, nem aquilo.

Why We Love Action, a nova peça da jovem coreógrafa Mette Ingvartsen, é construída como um filme de ação, com uma diferença fundamental: ela não segue a lógica de uma história, mas tão-somente efeitos e afetos. A partir de imagens, sons e caracteres de filmes conhecidos, sobretudo de cenas dubladas, Ingvartsen constrói um arco cinematográfico e distende-o à condição de performance ao vivo. Como que através de um aparelho de visão noturna, o público olha para um ambiente no qual tudo, pano de fundo, chão e mobiliário, é colorido no verde mais berrante, e no qual os atores vestidos de negro se movem como em uma animação. Se os trajes azuis de corpo inteiro referiam a prática fílmica de posicionar as figuras diante de qualquer fundo desejado em To come, a última peça, o verde de Why We Love Action aponta para um lugar que se transforma permanentemente. Entre a claridade refulgente e a noite mais escura, surgem sempre novos cenários: espaços de moradia ou espaços urbanos, estúdio, clube.

A abertura beira a subjugação: cenas de ação montadas dentro e ao lado umas das outras, como se acompanhássemos diferentes filmes ao mesmo tempo. Sete atores, entre eles também a coreógrafa, lutam arrojada e irreverentemente com todos as ferramentas e técnicas de luta possíveis. Eles esganam, sacodem, escoiceiam, golpeiam, disparam, cortam, com músicas de filmes e gritos altos ao fundo. O espectador tenta se manter firme, busca alcançar uma visão geral, fica preso em algum lugar, se afasta, examina.

Cinema é sentimento. Basta mergulhar e se é levado junto. É como um contrato, diz Mette Ingvartsen, que é dinamarquesa e vive em Bruxelas. A gente vai ao cinema e se permite ter sentimentos e também expressá-los. No teatro tudo aconteceu de outro jeito nos últimos anos. Em voga, estavam uma postura antes distanciada e um modo de percepção que enfatizava o ato de pensar. A questão importante para Ingvartsen, uma filha da geração midiática, é, se pensar e sentir têm de ser diferentes, se é necessário separar essas duas formas de percepção e conhecimento. No trabalho em Why We Love Action ela procurou descobrir os estados diferenciados pelos quais o observador passa: fases reflexivas, nas quais se medita e se compara, e fases nas quais a gente se entrega à experiência. Essas fases podem se revezar, se interpenetrar ou também decorrer em tempos diferentes: processos de pensamento também podem iniciar ou continuar apenas mais tarde. Uma expressão extrema se fez necessária, a fim de que esse processo funcionasse sobre o palco, e o espectador pudesse ser deslocado rapidamente para dentro dos acontecimentos – em todo caso não como em um espetáculo, para interditar o ato de pensar.

Projetos vigorosos e uma corporalidade vigorosa marcam os trabalhos de Mette Ingvartsen, cada um com sua especificidade. O desejo de sentimento e sensualidade e o prazer no ato de pensar se unem em trabalhos carregados de referências, e que obrigam o espectador a tomar consciência de sua própria percepção. A coreógrafa, que este mês acaba de completar 27 anos, apenas, faz performances desde sua juventude e seguiu essa inclinação sem se deixar perturbar. A Escola de Bruxelas P.A.R.T.S., para a qual mudou depois de um ano na Hogeschool voor der Kunsten, de Amsterdã, era o lugar certo para ela: e ela sabia o que queria. Tirou proveito do ensino “assaz sistemático e vasto” de técnicas e aproveitou o tempo livre para continuar trabalhando em peças próprias. Nos últimos anos, concentrou-se sobretudo no próprio trabalho. “Ter tanto tempo disponível foi maravilhoso”, diz ela hoje, “descobrir como eu mesma trabalho, quais poderiam ser meus princípios e de que modo posso evoluir.”

A primeira coisa foi um Solo, depois Manual Focus e Out of order, peças com as quais ela em pouco se tornou conhecida internacionalmente. Entremeio, algumas peças que não funcionaram; mas “tudo bem”, conta a coreógrafa, “pois assim a escola vê que a gente está aí para aprender e trabalhar.” Um espaço de grande liberdade e também um grande espaço livre – tudo estava organizado. Há dois anos ela caminha com seus próprios pés e isso significa, preocupar-se, ela própria, com tudo que o trabalho possibilita: dinheiro, espaço, atores e também a comunidade na qual se move.

Em 2005, com To come, ela apresentou uma peça coletiva de maior vulto acerca do desejo, na qual as atribuições e as relações de poder da ordem sexual são dissolvidas em um processo alternativo: todas as partes do corpo se encontram em igual valor, no jive os casais se dividem infinitamente. Para a nova peça que, como já acontecera com To come, teve sua estréia no PACT Zollverein, ela concedeu a si mesma muito tempo. Participou de diversos workshops em diferentes artes marciais – para isso chegou a viajar a Pequim -, e em Bruxelas, onde vive e trabalha a maior parte do tempo, fez uma pausa detalhada para uma pesquisa que durou alguns meses, cujos resultados foram apresentados em livro no ano passado.

Blackout. Gemidos, soluços, retalhos de palavras que se transformam em choro adquirem forma em um concerto ao vivo, uma mistura artisticamente trabalhada de sofrimento, luto e raiva, desatrelada da ação como o coro do desejo em To come. Voz e som têm, assim como nos filmes, grande peso, como extensão da expressão corporal, mas sobretudo como peso próprio. O monólogo furioso de uma mulher soa cada vez mais como uma tirada de gangsta, um som heavy metal a todo volume tange os atores a êxtases cheios de agito, nos quais os movimentos se multiplicam.

Duplicar, extrair e transferir são mecanismos fundamentadores de Why We Love Action, e eles são continuamente variados. Um homem com uma pistola se aproxima de uma pessoa deitada em uma cama, outra pessoa bebe seu café junto a uma mesa – duas cenas sem qualquer nexo, mas o estampido da pistola vem da boca daquele que bebe café. Duas mulheres em cantos opostos duelam uma com a outra em luta longa e impiedosa, sem se tocarem uma única vez – uma coreografia arrebatadora das emoções.

O que no princípio parecia tirado diretamente de filmes, recebe um caráter cada vez mais forte de cena ao vivo, que no entanto mantém características fílmicas. Os corpos, contudo, parecem irremediavelmente enovelados na mídia. Para Mette Ingvartsen, um tema central: “Seja como for que nos referimos ao mundo, a mídia está sempre no meio. E ela já não está mais fora de nosso corpo, mas nós a internalizamos inclusive no ato de pensar.” A volta já não existe mais para ela. A mídia é, para alguém que vive hoje um dia, a “condição natural”, conforme a coreógrafa se expressa: “A mídia oferece um bocado de possibilidades, que temos de saber aproveitar e conduzir.”

Em Why We Love Action os atores carregam i-pods que mal podem ser vistos, nos quais ouvem trechos de filmes bem peculiares. Ao mesmo tempo, eles têm de se vincular ao que acontece ao vivo e se referir uns aos outros. Os meios de comunicação, conforme a convicção da coreógrafa, não precisam ser mostrados nem percebidos a fim de estarem presentes, pelo contrário: “eles muitas vezes são invisíveis e nós temos pouca consciência de como eles agem sobre nós.”

Mette Ingvartsen trabalha muito e em muita coisa: ela escreve, faz coreografias e se apresenta no palco; em suas próprias peças, mas também em trabalhos teatrais de Jan Ritsema, em pouco já será o terceiro desse artista. Além disso, ela faz parte de um projeto a longo prazo, no qual autoria e trabalho coletivo são repensados. Existem caminhos para desenvolver, em um intercâmbio, as idéias que até agora foram trazidas pelo coreógrafo, de tal modo que “muitos tenham parte nelas e muitos possam aproveitá-las”. O modelo para isso são estratégias open source para softwares de computador, cuja variante mais conhecida é a enciclopédia Wikipedia, da qual qualquer um pode participar escrevendo. O projeto é organizado por um grupo engajado no fórum Performig Arts de Jan Ritsema, em St. Erme, na França, um lugar no qual artistas organizam eles mesmos seus trabalhos. “Nós somos um grupo aberto com posições bem diferenciadas”, esclarece Ingvartsen, “quer dizer, nós não precisamos nos reunir todos juntos em um lugar e trabalhar, mas nos entendemos mais como uma comunidade móvel com várias e diferentes estações, uma rede pensante.” A estratégia é suave, a perspectiva é de longo alcance: se mais pessoas trabalham de modo diferente, isso pode adquirir influência em todo o campo da arte e mudar algumas coisas. Ao mesmo tempo, ela vê o propósito como um grande desafio, pois se trabalha diferente, quando se o faz em uma colaboração estreita na qual, em última instância, somos responsáveis individualmente pelas idéias e resultados e angariamos conhecimento praticando esse modo de trabalho. De uma coisa Mette Ingvartsen tem certeza, e isso diz respeito à necessidade de uma divisão mais vigorosa: idéias cada um tem de ter as suas, mas elas surgem apenas através do intercâmbio.