Tênis conflitantes / Foto: Ivan Cavalcanti

Diálogo com ‘Reflexões em cinco minutos?’

Alguns dias após a publicação do 2º texto da coluna de Paulo Azevedo no idança – intitulada ‘Reflexões em cinco minutos?’ – recebemos um texto-resposta do coreógrafo e intérprete Rafael Guarato, de Minas Gerais. Incentivando o debate e a troca de ideias sobre um tema polêmico (festivais e mostras competitivas), publicamos abaixo, juntos, o texto escrito por Guarato e a resposta de Paulo, enviada a pedido do idança. O espaço está aberto a comentários, deixe sua opinião também.

Confusões em, e sobre cinco minutos: diálogo com o texto “Reflexões em cinco minutos?”

Rafael Guarato

Ao iniciar a leitura do texto de autoria de Paulo Azevedo, pensei em deixar algumas observações. No entanto, com o decorrer da prática (leitura), fiquei surpreso com a quantidade de informações ali depositadas. Não vejo problemas com textos informativos, desde que se assumam enquanto tal, mas não é esse o caso. “Reflexões em cinco minutos”, como o próprio título supõe, pleiteia o status de conteúdo argumentativo, se possível, pretende-se crítico.

Diante de um conjunto de informações desacompanhadas de “reflexões”, optei em redigir esse texto para estabelecer um diálogo. Trata-se de uma contribuição para a construção do conhecimento, que não se pretende enquanto verdade ou algo similar. O texto supracitado envolve duas questões sobre festivais competitivos (mercado e temporalidade das apresentações) e uma proposta de alternativa a esse formato para os membros do que hoje chamamos “Danças Urbanas”.

Não me deterei à confusão no uso indiscriminado dos termos “Hip Hop”, “Danças Urbanas” e “festivais” em suas interrelações. O texto demonstra incompreensão das formas estilísticas historicamente presentes nos festivais competitivos e sua distinção de competições características do break (Dança do Hip Hop), as chamas “batalhas”. Pois o escopo deste texto não suportaria, bem como existem questões mais alarmantes a serem destacadas.

No que tange à noção de festivais competitivos como nicho mercadológico, o autor adota uma visão conservadora que emergiu na primeira metade do século passado e encabeçada por alguns teóricos da chamada Escola de Frankfurt que, paradoxalmente, não condiziam com as ideias do filósofo Walter Benjamin. Deste modo, aparece uma dupla incompreensão: primeiro acerca da associação entre a noção de mercado e festivais em formato competitivo, pois a existência de festivais em dança no Brasil sempre foi mantida via uma associação entre verbas públicas e empresas privadas (cabe ressaltar que essa relação se modificou ao longo da década de 1990 devido ao redirecionamento estatal no governo FHC), deixando vago o conceito de “mercado” em sua escrita. De todo modo, a existência de grandes empresas no evento não obriga os participantes a consumirem seus produtos, a grande comercialização que existe é referente a artigos para dança, e com expressividade em Joinville. Então temos um mercado para dança, e por não compartilharmos de seu formato vamos abominá-lo… Não seria mais interessante compreender porque e como funciona. Pois sua curadoria é feita por intelectuais, professores universitários e artistas renomados que anualmente se fazem presentes nesses espaços, como explicar esse fenômeno…. É preciso pesquisa, investigação, alteridade…

Segundo, de caráter epistemológico, autor e obra citados por Paulo no inicio do texto são responsáveis por entender que o capitalismo fez com que a obra de arte perdesse seu valor de culto e, em contrapartida, ganhasse maior valor de exibição, fator decisivo para a conquista da autonomia do artista. Fruto desse processo, se, por um lado, a arte ganha autonomia, dando liberdade à criação do artista, por outro, lida com o mercado, que passa a regular a autonomia estética, pois, para vender suas obras e sobreviver, o artista depende da aceitação pública. A opinião sem embasamento se torna achismo.

Acerca da possível problemática sobre a temporalidade dos trabalhos em festivais competitivos, o tempo é:

“…pré-determinado (em geral de 5 minutos) limita o processo criativo, superficializa os temas a explorar (muitas das vezes interessantes), banaliza e naturaliza clichês (que já avançaram em outros contextos de clichês para linguagens) e por fim, não permite uma reflexão sobre o corpo que dança ou por que ele dança, como se dá a escuta interna deste corpo, o que ele propõe, do que se compõe, pra quem se interpõe, como se justapõe na presença do outro corpo, no espaço que o converge em território.”

Caminhemos com calma. Não se deve confundir tempo com qualidade estética, o que impede e nega a possibilidade de experiências efêmeras como importantes e formadoras do ser humano. Contudo, o autor não disponibiliza formas de compreender como e por que, coreografias apresentadas em cinco minutos “não permitem uma reflexão”. Pois, paradoxalmente o texto trata de forma crítica , portanto reflexiva, essas produções.

Adentrando em uma questão não menos complexa, afirmar que festivais competitivos atuam como “inibidores” de possíveis “avanços estéticos” é, no mínimo, preconceituoso, novamente em duas vertentes. Em princípio, apesar de reconhecer alguns valores compartilhados pelos participantes desses eventos, o texto não reconhece validade a tais práticas, o tão falado exercício da alteridade e tolerância é posto de lado para dar lugar ao julgamento. Assim, não se trata apenas de perceber que a organização de um trabalho com vistas ao prêmio de primeiro lugar não possui a mesma validade e reconhecimento estético que o trabalho de Bruno Beltrão, mas sim, de negação de sua própria validade social, de sua importância no cotidiano de quem a pratica. A prática viva e vivida é substituída por um ideário estético, do corpo pensante em dança.

Grosso modo, temos que exercitar a capacidade de reconhecer que não existe “conduta homogeneizante presente nestes lugares”, mas formas de reconhecer o outro como homogêneo. É aqui que reside o perigo, na reprodução de conceitos sem analisar a realidade que se diz investigada. Um exemplar dessa perspectiva apocalíptica está na conclusão, que vitimiza os dançarinos populares de rua, reforçando a noção de que são carentes de acesso, excluídos, e retira a capacidade ativa de sujeito, portanto, possuidor de subjetividade.

Ao olhar para o outro com nossos olhos, tentamos enquadrá-los no que achamos ser certo. Mas não creio ser viável desmerecer experiências para vangloriar as nossas, a necessidade de “transcender o tempo das máquinas” não pertence a certos grupos humanos, pois eles possuem valores diversos. É isso a chamada diversidade, perceber que possibilidades de organizações e reconhecimentos são plurais. Os argumentos apresentados circulam em “debates” sobre dança desde os primeiros anos da década de 1990, tornando possível notar que antigos preceitos, confundidos, aparecem travestidos de novo figurino.

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Resposta à leitura equivocada sobre a “confusão” do texto “Reflexões em cinco minutos?”

Paulo Azevedo

Fico sempre bem impressionado quando encontro jovens com boa capacidade de argumentação, mas confesso que fico ainda mais impressionado quando estes mesmos jovens e seus argumentos disparam ideias que poderiam ser proveitosas, se fossem encaminhadas para direções equivalentes. Sendo assim, a leitura equivocada do texto referido faz com que o comentário textual acima, revele um esquizo-argumento, tornando aquilo que poderia ser considerado como boas possibilidades de diálogo, um espaço sustentado para teste de conhecimento, o que consequentemente é uma pena! Mas, vamos lá.

O nível de desafetos presentes nos comentários traduz o ambiente de uma dada recusa ao avanço da troca e o excesso de certezas condiciona o potencial de debate ao inócuo. Portanto, apesar de reconhecer a aproximação daquele que tece o comentário com os campos de saber em História e Sociologia, acredito que ao se tratar do universo da Dança ele tenha deixado passar o princípio norteador da reflexão, esta sim, pautada em um período de tempo razoável que não pode concordar com as divergências presentes.

Caso não tenha ficado claro, devo dizer que não me refiro a uma dada exclusão do formato “batalhas” nas competições ou de tornar desimportante a prática dos adeptos e praticantes das “Danças Urbanas”. A leitura está equivocada! Não proponho a mudança de festival que estes membros geram como autores de uma busca comunitária e legítima de existir, mas que, por exemplo, pode ser considerado a falta de autonomia em que eles e outros adeptos podem vir a participar, se já não participam, de mega-estruturas denominadas festivais competitivos. Esse princípio de entendimento poderia facilitar o restante da leitura de todo o texto e até evitar certas tensões desnecessárias.

Não optando pela brevidade do diálogo, primeiramente não precisaremos mesmo adentrar no campo da terminologia “Hip Hop”, “Danças Urbanas” etc, mas vale a ressalva de que não há confusão nenhuma de minha parte quanto à diferenciação (até porque não é este o ponto principal do texto), mas sim uma leitura que se quer determinar, mas que não condiz com o real. No texto cito a expressão “grupos que utilizam o vocabulário das danças urbanas” nos festivais competitivos. O verbo utilizar traduz uma natureza democrática de poder usar indiscriminadamente parte desses vocabulários (Popping, Locking, entre outras formas) sem uma característica finita e acabada de uma determinada linguagem, mais especificamente, poderíamos falar de “trânsito”, ou seja, dos grupos terem a possibilidade de escolha em transitar por tais vocabulários em seus processos criativos. Assim, parece-me muito capricho e certa imaturidade em afirmar que não domino a compreensibilidade de distinguir “formas estilísticas historicamente presentes nos festivais competitivos” de “batalhas”. Um parêntese: quando se aplica e se publica um comentário deste tipo há dois modos de compreensão: falta de conhecimento sobre o trabalho daquele que é comentado; eu neste caso, ou necessidade de visibilidade desesperadora daquele que comenta; ele. Para concluir este ponto e que fique redundante: o texto não aborda os festivais competitivos das chamadas “batalhas”, mas sim dos grupos que estão utilizando o palco como modo de escravizar suas criações ao tempo estabelecido por outrem, POR UMA ESTRUTURA IMPESSOAL, com o tempo de duração de cinco minutos.

Não brinco com as afirmações, confirmo-as! Um das mais belas cenas do espetáculo solo Ikiru (que tem no Butoh sua principal via de exploração) tem aproximadamente cinco minutos com música de Puccini. Devo aqui declarar que antes de chegar aos dois minutos eu e colegas presentes já tínhamos liberado distintas emoções, memórias, e mais à frente, algumas reflexões. Ora, este tempo de dois, três, cinco ou 50 minutos será conduzido pela necessidade da obra, do artista, do sujeito. Faz-se urgente a compreensão em poder saber que o tempo ao qual me refiro, quando determinado pela presença de uma estrutura externa não permitirá sim avanços da experiência. É a experiência que mais nos interessa! E neste caso, tratando-se de Dança, é a Estética que mais sofre com a parca possibilidade de tradução, de experimentação! Isso não é julgamento impreciso, nem é não reconhecer tais práticas, ao contrário, é justamente contribuir para que estas práticas absolutamente legítimas tenham mais autonomia no processo criativo, e para isso libertar-se e desenvolver outros, outros e outros espaços é urgente. Poderíamos aprofundar este tema em vez de banalizar a “experiência” sugerida, assim como é tendencioso produzir insensatas deduções de valores comparativos citando, inclusive, de modo gratuito nomes de outros colegas que desde já convido à reflexão.

O comentário como citei no princípio, se não fosse em sua natureza tão persecutório, enxergaria além de uma realidade inventada, esquizo. Porém, ainda, mais infeliz se faz em suas proposições quando tenta reproduzir uma estrutura segmentada de “prática viva e vivida” contrapondo-se ao “corpo pensante em dança”. O que seria isso? Bem e mal? Opressores e oprimidos? Ao leitor, vale o esclarecimento de que não há pretensão em vitimar de pobres, coitados etc, aqueles que fazem parte do universo hip hop no mundo “dança”. É fato, basta percorrer não as academias que adotam tal universo para ter mais um grupo na competição, mas aqueles bravos coletivos que se constituem nas imensas redes periféricas do país de modo persistente e interrogá-los das dificuldades de acesso, de geração de renda, de logística, de local de ensaio. Aliás, uma premissa elucidativa é que a ideia deste texto surgiu depois de uma pequena palestra ministrada no interior do Estado do Rio de Janeiro, onde pude presenciar o desespero de pais e adolescentes para conseguir os recursos para participar de uma competição, quando lhes faltava o discernimento do ‘por quê?’ Depois daí me recordei de quantas vezes havia ouvido e visto essa mesma situação. Como poderia contribuir? O assunto é polêmico e transborda aos próprios festivais competitivos. Um b.boy ou uma b.girl quando realizam suas manobras, acrobacias fazem a cidade parar, o shopping parar. Em meados da década de 90 quando a onda “Hip Hop” embalou no Rio de Janeiro, as inúmeras festas excluíam os principais adeptos da cultura e revelaram um ambiente da inversão das práticas legítimas, assim o b.boy ou a b.girl negociavam tantas vezes sua presença na festa sem pagar o ingresso em troca de performances nas mesmas.

Paga-se para dançar nos festivais quando sabemos que há uma tendência de desistência acrescida à pressão social das famílias que, a grosso modo, não apoiam os adolescentes à continuidade da carreira em dança, sobretudo, se a dança não ajudar a pagar as contas. É assim que funciona, vejo e convivo com isso todos os dias, e isso é prática viva e vivida! Então, cabe virar o jogo, construir outros mercados que absorvam todas estas danças como incentivo à profissionalização, à formação, ou ao que se quiser fazer de melhor para que estes tantos talentosos (e também para os não tão talentosos assim) adolescentes não permitam a naturalização da desistência, nem passem seus sonhos adiantes frustrados por não ter tido a chance de mais chances. Há outro mercado e economia pulsante e real na Dança, na “Dança de Rua”. Estamos falando de um país onde se dança muito.

Seguimos: mais uma vez um comentário (quase ingênuo) nos revela que “a existência de grandes empresas no evento não obriga os participantes a consumirem seus produtos”. Em breve seguindo este raciocínio concordaremos que o Capitalismo é a forma mais democrática de gestão que existe, ou seja, quem tem, compra, quem não tem, não compra… Não come, não veste, não estuda, não vai, não vem, não cura – Não dança! Como assim?

“É foda! Foda é assistir a propaganda ver, não dá pra ter aquilo pra você”.

(Racionais MCs)

Não sei se é o caso de abominar os festivais competitivos, e, por favor, em que disparate era necessário situar FHC? Em que momento disse no texto que os festivais em dança no Brasil não eram mantidos via uma associação entre verbas públicas e empresas privadas? O que fiz foi para incentivar o uso desses mecanismos para criação de outros formatos de festivais – mas como disse a necessidade daquele que profere tal comentário é tão voraz em querer mostrar conhecimento que ele se atropela em seus anseios.

A reflexão sugerida se passa em observar e perceber uma dimensão pedagógica falseada por estes festivais que vêm, ainda, servindo como alternativa principal à exibição dos grupos do universo “rua”. Como nos lembra a crítica Helena Katz, os festivais de dança não competitivos conseguem um potencial educativo extraordinário, assim “quando a informação é distribuída fora da moldura perversa da premiação, deixa de construir padrões a serem copiados e deixa de tratar a dança como esporte, como uma atividade reduzida ao papel de levantar a torcida”. É sobre esse parâmetro que o texto se debruça.

Portanto, a visão conservadora de mercado não se aplica, tampouco é coerente o uso de tentar uma manobra perigosa citando a Escola de Frankfurt, considero na verdade um pecado tratar uma Escola de tal magnitude em breves “palavras de elevador”, mais uma necessidade gratuita de mostrar conhecimento e esquecer a relevância do debate que contribua à dança, ao Idança, ao leitor. Mas, é verdade que o momento mais interessante do comentário se dá no caráter epistemológico, não fosse mais uma vez as perigosas e tendenciosas conclusões. Walter Benjamim, autor que elegi no início do texto foi para dar fomento à poesia, e não para criar tensão de discurso teórico ou de correntes filosóficas. Assim, apesar dele iniciar um raciocínio que poderia ser fértil, a conclusão não subverte a lógica do mercado ao qual me refiro no sentido da autonomia do artista. A autonomia do artista não seria quando uma estética passa a ser regulada por um dado mercado, mas sugeriria ao contrário; quando o artista consegue finalmente consolidar uma estética que de tão legítima, quando não pode ser então transcrita, consumida naquele mercado preexistente; cria, articula, promove desenvolve justamente outro mercado que a absorva, mas não por isso deixa de vender, exibir, nem sobreviver de sua obra. O Festival Panorama, um dos mais importantes do país nasceu justamente desta lógica (da subversão), que me corrijam aqui se estou equivocado. Aliás, este também é o caminho percorrido por mim e outros colegas seja no texto, na prática, na vida e no pensamento, basta investigar.

Sobre a diversidade, apesar de ser um tema super relevante, vou me ater a um único harmônico detalhe: o princípio dela se faz pelo reconhecimento do outro, mas para isso é necessário oferecer ferramentas e tempo para um olhar mais sensível sobre determinado fenômeno, o que é impossível de ocorrer numa competição as quais aqui me refiro. Não há tempo para o sensível, para o olhar, para o reconhecimento de distintos protagonismos, para a troca nestes festivais. Dá-se notas, quantifica-se, ganha-se do outro; por quê? Perde-se; por quê?

Quero terminar: estamos em busca de vozes cada vez mais presentes, seja pelo corpo ou pela palavra, para os atores sociais do Hip Hop, das Danças Urbanas, do Soul, do Funk, dessa garotada que precisa de incentivo para que essas manifestações ganhem espaços, grandes espaços de contemplação à parte dos festivais competitivos que somente criam uma espécie de catatonia das propostas cênicas.

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