Do corpo em performance

RESUMO: O presente trabalho discute as relações entre o fenômeno contemporâneo da recriação de trabalhos de performance arte e a ideia de “documentos de processo” apresentada no centro da crítica genética, tal qual abordada pela sua principal teórica brasileira, Cecília de Almeida Salles (2008).

PALAVRAS-CHAVE: Performance; Reperformance; Crítica Genética; Processo Criativo.

1 Introdução

A ampla discussão da reperformance é uma questão fortemente presente no campo da performance arte, e teve um novo avivamento através da mostra “The Artist is Absent” organizada por Marina Abramovic no MoMA (Museum of Modern Art) em Nova Iorque no ano de 2010. A proposta realizada envolveu performers, quase inteiramente advindos deste estado americano, na recriação trabalhos de Abramovic (solos e em parceria com Ulay).

Alan Kaprow (18 happenings in 6 parts – 1957), e mesmo artistas do Fluxus, em diferentes períodos, abriram-se a essa abordagem da recriação da performance, da recomposição de um processo criativo que move uma ação em um contexto (ambiental, político, social, cultural, humano, etc.) distinto.

Marina Abramovic coloca no programa de seu próprio projeto de reperformance, “Seven Easy Pieces”, realizado em 2007 no Guggenheim Museum, que “nenhuma documentação pode substituir a experiência: ver (a performance) ao vivo” (ABRAMOVIC, 2007). É justamente nesse ponto que apresentamos nossa abordagem dentro dessa constelação nascente da reperformance: de que maneira a reperformance pode servir como forma de documentação e preservação da performance? Seria possível repensar o multifacetado processo criativo da ação em performance, e sua iminente efemeridade, através de uma crítica genética performada?

 

2 Desenvolvimento

Ao pensarmos a crítica genética (SALLES, 2008) como uma composição das etapas do processo criativo segundo seus documentos de registro encontramos um terreno movediço ao aproximarmos essa perspectiva de linguagens como a performance arte.

Se a performance arte é apresentada por autores como Peggy Phellan (1997) como um processo aberto em contínuo movimento, em contraponto a uma lógica do produto e da reprodutibilidade, o que poderíamos considerar “documentos de processo” quando o impulso de vida do trabalho artístico é sua contínua insistência em permanecer em processo?

Poderíamos pensar nos documentos fotográficos, manuscritos, desenhos, croquis, textos, e toda a carga multiplex code (COHEN, 1989) que interage no processo criativo de uma performance, mas será que não estaríamos, na ausência da própria ação, desconsiderando uma parte do processo, quando o assunto é performance arte?

Se a performance age em uma potência compositiva, e não organizativa (DELEUZE; GUATTARI, 2008), ela nos apresenta um iminente questionamento das artes do corpo para a crítica genética, como compreender e acessar diferentes partes do processo criativo de uma performance ocorrida a 50 anos atrás, se a própria ação é parte constitutiva do processo?

Numa lógica organizativa, o olhar do crítico, ou do pesquisador, seria capaz de sequenciar, por parâmetros próprios, ou discernidos pelo artista em si, até onde temos processo criativo e onde a forma do trabalho se estabelece como produto. Pensando de maneira compositiva nos deparamos com uma poética de criação sem fronteiras definíveis, pois na composição todo elemento colabora para a criação de um processo em movimento, sem um fim, um produto que encerre. Nesse sentido, a composição é uma forma aberta.

Tomemos a própria designação das ideias de imprevisibilidade e risco presentes na performance, e seremos capazes de observar sua estratégia de permanência numa zona de indefinição. Talvez ao nos referirmos à performance estejamos num campo onde pode se ver muito mais claramente a indeterminação como um modo de ser/estar artisticamente acionado pelo corpo do performer, do que uma forma adotada ou planejada para tanto.

Claro que existem processos criativos na performance com extensiva quantidade de documentações, afinal, parafraseando Guillermo Goméz-Peña (2011), a aproximação entre performer e pesquisador é tremenda. Mas a questão é que, em sua profunda efemeridade, a própria ação da performance, que faz parte do plano de composição do processo criativo, rapidamente se desfaz, e poucas vezes chega a ser repetida.

Podemos observar ainda que a performance, o trabalho criado pelo performer, parte de questões que não se baseiam no espaço fabular de transmissão de uma mensagem direta. Sua comunicação é indicial, e seus sentidos são construídos processualmente através da experiência do performer que realiza a ação e do próprio público que a vivencia hic et nunc.

Pensando em performances há muito realizadas, ou mesmo performances recentes, que o crítico ou o pesquisador não pôde acessar no ato de sua realização, como proceder uma crítica ou estudo apurado, pensando nos elementos genéticos do processo criativo do/no qual deriva esta ação?

Depoimentos dos que presenciaram a performance talvez fossem uma forma de fazê-lo, entrevistar o próprio performer, caso ainda vivo, seria outra, mas resiste o fato de que a performance é ação, e mesmo que o elemento discursivo e investigativo seja usado, seria um ato relapso desconsiderar a significação e a leitura do crítico da própria performance posta em experiência.

Nos voltando a questão da reperformance diante da questão levantada, é preciso esclarecer que a reperformance não é uma tentativa de replicação exata de uma performance já realizada.

Claro que assim como o nome “performance” trouxe uma inumerável quantidade de complicações para essa linguagem artística, que em outros contextos foi menos conflitivamente chamada de body art, ou art corporel (GOLDBERG, 2006), a denominação “reperformance” mostra certa crueldade com a prática que designa. Isso porque, numa leitura direta, e pior, linguisticamente correta, o prefixo “re” indica a ideia de repetição, como se o que o artista do presente ensejasse fazer fosse criar uma cópia exata da performance já realizada.

Claramente sabemos que não é assim que acontece, que muitos performers na verdade retomam certas questões e proposições de uma performance já realizada e as colocam sob outras condições, criando outras explorações possíveis dentro da experiência da performance “original”.

Seria possível que a reperformance fosse uma opção diante deste problema? Poderíamos arguir que não, como Peggy Phelan (1997), e apontar que a própria lógica reprodutiva descaracteriza o ato da performance. Poderíamos dizer que sim, como Marina Abramovic, e afirmar que o sucesso da reperformance está além daquele dos modos de documentação e registro usados para “grafar” a performance para outras gerações.

 

Performance art is an art form essentially tied to the act of live performance and the exchange of energy between the audience and the artist. While documentation is possible, and through that documentation re-exhibition, the artwork is fundamentally changed by the change in medium. We believe that in this change of medium, much of the power and impact of the original work is lost. We believe that performance is best exhibited as a performance.

The question then becomes, how is this work reconstructed and remounted? Is it possible to recreate this work outside of its original artistic milieu?[1]

 

A performance, contudo, não cessa no binômio “sim ou não”, é mais sinuosa, e a resposta pode não ser tão clara. Pensando sobre uma ótica crítico-genética devemos reconhecer que é impossível reconstituir um processo criativo em sua totalidade (porque ele é compositivo e não total), ele é vivido e vivo, e portanto a experiência da performance como foi realizada estaria para sempre perdida.

Todavia, a inquietação filosófica que queremos deixar a esse respeito é a de que a experiência da performance que se realizou a três, quatro ou cinco décadas atrás nunca “se achou” para que a consideremos perdida, isto é, foi uma experiência em processo criada naquele momento a partir da efemeridade dos próprios fatores que a cercavam. Assumindo isto podemos pensar que a ação realizada em um período do passado nunca foi o resultado, o produto final, ou mesmo o cerne último do processo que se quis com a performance realizada.

Dessa feita, seria possível assumir que a reperformance não é reprodução, cópia, ou descaracterização, mas uma continuidade de um processo, um estudo dos modos de ser/estar do corpo no mundo segundo algumas condições já estudadas e acionadas no passado por outro corpo, em outro contexto.

Seria possível aceitar que, desde que nos limites do que o performer/investigador inicial julga apropriados para com seu trabalho[2], aquele que performa em outra instância uma ação já realizada, partindo de outros referenciais, de outras questões, dá continuidade a uma pesquisa começada por outro, não da mesma (per)forma, considerando-se que corpos e contextos se distinguem irreparavelmente, mas diante de condições similares (imagens e partes da ação) aplicadas a um contexto distinto?

 

3 Considerações processuais

Pensar na performance sob uma perspectiva da crítica genética, é colocar o pesquisador em xeque sobre determinados modos de proceder de cada linguagem, e as próprias estruturas filosóficas e políticas que movem, ou mesmo como elas compreendem a distinção entre processo criativo e obra.

No caso da performance vem à tona o soar dessa questão sobre a importância, a significação, a dimensão, da reperformance. Existem fatores que dão suporte a sua negação, e a sua aceitação, a depender do campo em que enfocamos, político, filosófico, estético, cultural, etc.

As linguagens artísticas que acionam o corpo na contemporaneidade sem dúvida apresentam um desafio à pesquisa e crítica com sua existência fluída e aberta, e dentre elas a performance parece saltar com rapidez e poder conceitual incomparáveis na sua capacidade de rompimento de bordas e indefinição.

Fica, por fim, essa possibilidade, de pensarmos de outra forma também o processo criativo em performance como espaço resistente à pertença, à conclusão, a sua transformação em produto, e ao mesmo tempo um espaço convidativo de presenças, do qual questões podem ser retomadas e trabalhadas, processadas em outras direções, reperformadas por outros caminhos.

 

 

REFERÊNCIAS

 

ABRAMOVIC, M., FISCHER-LICHTE, E., UMATHUM, S., & SPECTOR, N.  Marina abramovic: Seven easy pieces charta. 2007.

COHEN, R. Performance como linguagem: criação de um tempo-espaço de experimentação. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1989.

DELEUZE, G. & GUATTARI. F. Mil Platôs. Vol. 3. Tradução de Aurélio Guerra Neto et al. São Paulo: Ed. 34, 2008.

GOLDBERGR. A arte da performance: do futurismo ao presente. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São PauloMartins Fontes2006.

GÓMEZ-PEÑA, G.; SIFUENTES, R. Exercises for Rebel artists: radical performance pedagogy. New York: Routledge, 2011.

PHELAN, Peggy. A Ontologia da Performance: representação sem produção. Tradução de André Lepecki. Revista de Comunicação e Linguagens. Lisboa: Edição Cosmos, 1997, p. 171-189.

SALLES, C. A. Crítica Genética: fundamentos dos estudos genéticos sobre o processo de criação artística. 3ºed. São Paulo: Educ, 2008.

 

 

 

 

[1] Texto “Why Reperformance?”, do projeto curatorial da mostra organizada por Marina Abramovic denominada “The artist is absent”.Disponível em: http://www.theartistisabsent.com/. Acessado em 11/11/2013 às 13:00.

“A performance é uma forma de arte essencialmente ligada ao ato ao vivo de performance, e a troca de energia entre o público e o artista. Enquanto a documentação é possível, e através de que a documentação re-feitura, a obra de arte é fundamentalmente alterada pela mudança de mídia. Acreditamos que nesta mudança de mídia, grande parte do poder e impacto da obra original está perdido. Acreditamos que a performance é melhor exibida como uma performance.

A questão torna-se então, como é que este trabalho é reconstruído e remontado? É possível recriar esse trabalho fora do seu meio artístico original?” (Tradução nossa).

[2] Talvez inclusive além desses limites, se considerarmos que a performance pode assumir uma postura de quebra de protocolo de forma proposital, pode aceitar e se propor ao risco de infringir o limite do aceito pela noção de autoria, obviamente assumindo as consequências que socialmente, e mesmo juridicamente, se aplicam nesse caso.