E então… Serviu para quê?

A fim de ampliar sua política de “apoio à pesquisa em dança” o Centre National de la Dança (CND) – França convidou duas importantes associações estadunidenses de pesquisa em dança, a Congresso Research in Dance (CORD) e a Society of Dance History Scholars (SDHS), para pela primeira vez organizar na França sua reunião científica. Tal reunião aconteceu nas instalações do CND em Pantin, arredores de Paris, entre 21 e 24 de Junho. A iniciativa do CND veio de encontro ao desejo das associações americanas de ampliar sua rede de conexão e associados noutros países, e propôs como tema central de discussão “Repensando prática e teoria”.

Cerca de trezentos pesquisadores apresentaram seus trabalhos durante esse três dias. As apresentações foram divididas em quatro sessões diárias que duravam entre uma hora e quinze minutos e uma hora e meia. Em cada sessão aconteciam dez painéis, distribuídos em diferentes espaços do mesmo prédio. Em cada painel podiam ter até quatro apresentações de vinte minutos para cada, restando cinco a dez minutos para as perguntas do público. Cada participante pagou a filiação obrigatória à associação, que variou entre U$ 50 e U$ 120, mais 120 euros para a inscrição no colóquio. O público interessado em acompanhar as discussões deveria pagar 130 euros para ter acesso ao evento. Assim, nesses três dias, devem ter pagado suas respectivas taxas e circulado pelo prédio do CND cerca de quinhentas pessoas.

Os painéis tinham temas específicos como: Conceitualizar o corpo histórico, Gesto político ou novos modos de pesquisa, Questionando as metodologias, mas o conjunto das apresentações dentro do mesmo painel, muito raramente constituía uma rede de pensamentos coerente, nem tão pouco um nível de aprofundamento de pesquisa análogo. No painel do qual fiz parte – intitulado Coreografando a subversão -, apresentei o artigo intitulado “O corpo político antropofágico”, que relacionava as idéias de Oswald de Andrade com a obra O Samba do Criolo Doido, de Luiz de Abreu [1]. No mesmo painel estava uma colega de Campinas que vive nos Estados Unidos, Ana Paula Hófling, que falou sobre dois aspectos da capoeira de angola: a chamada e a malícia. Participou também um italiano, Mattia Scarpulla, que relacionou duas cenas do espetáculo Encarnado, da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues, com reflexões sobre o corpo no campo de concentração feitas pelo filosofo Giorgio Agamben.

O artigo de Ana Paula não se referia nem a uma prática coreográfica nem a uma ação subversiva. Apenas refletia sobre dois aspectos específicos da capoeira de Angola. Embora o artigo de Mattia tenha relação com atividade coreográfica, as reflexões por ele apresentadas sobre a realidade da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, onde Lia Rodrigues trabalha, foram baseadas em sua própria imaginação, uma vez que ele nunca esteve lá e nem tão pouco fez uma investigação sobre dados daquela realidade. O que ficou explícito na fala de Mattia foi a falta de fundamento do seu trabalho. O que nos reunia ali era realmente o fato de sermos ou trabalharmos sobre temas que, em uma instância qualquer, envolviam o Brasil.

Outro exemplo da falta de coerência nos temas propostos para os painéis é o da colega da Turquia, Gurur Ertem, que faz seu doutorado na New School for Social Research, e apresentou uma revisão crítica das abordagens sociológicas dos estudos em dança. Ela dividiu o painel – intitulado Política cultural – com as pesquisadoras Ida Meftahi e Ting-Ting Chang (que falaram respectivamente sobre aspectos de danças tradicionais do Iran e da China). A divisão dos painéis, mais que uma lógica de temas, parece ter seguido uma coerência de divisão geopolítica.

Grandes nomes da pesquisa em dança como: Andrée Grau, Barbara Browning, Christine Greiner, Helena Katz, Isabelle Ginot, Isabelle Launay, Mark Franko, Ramsay Burt, Susan Leigh Foster, fizeram apresentações. Foi a primeira vez que eu estive num evento dessa dimensão e com esse formato. O objetivo de minha ida foi expor minhas idéias num meio acadêmico internacional e ver e ouvir, de perto, autores que são referências teóricas para a dança na atualidade. Eu tinha acabado de participar da IV Reunião Científica da ABRACE (Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas)[2], que aconteceu dias 5 e 6 de junho em Belo Horizonte, e embora haja algumas relações que possam ser feitas entre os dois modos de organização, eu fiquei chocado com a experiência radical vivida na França.

A sensação era de estar na Galeria Lafayette em Paris ou na Daslu em São Paulo. A diferença entre as duas situações é que nas lojas das grandes marcas falta dinheiro pra levar tudo o que você deseja, enquanto que no Colóquio Repensando Prática e Teoria se pagou antes de entrar e o que faltou foram outros, de mim mesmo, para se dividir pelos diferentes espaços onde cada um dos que eu desejava ouvir estavam apresentando seus trabalhos. Apesar da super oferta disponível, eu saí da jornada com a sensação de um enorme vazio, de pouco ter acrescentado às minhas reflexões sobre dança, a não ser as interrogações sobre as reais finalidades daquele encontro. Em alguns dos espaços nem mesmo microfone tinha e, embora tenha sido divulgado que o congresso seria bilíngüe (francês e inglês), só havia tradutor em três dos grandes espaços. No encontro da ABRACE, em Belo Horizonte, se pagou à associação, mas não se pagou para a apresentação de artigos. Os associados se inscreveram em Grupos de Trabalho (GT), discutiram temas divididos por áreas de interesse e depois uma síntese foi levada para grande plenário, num tempo também insuficiente para aprofundar as questões.

O que me parece importante refletir sobre essas experiências são as diferenças e similaridades entre modos de associação no Brasil e nos Estados Unidos, sob solo francês, que indicam formas de manejo de poder. E junto com isso, refletir também sobre os tipos de distorções que o esquema acadêmico pode criar ao exigir do estudante de pós-graduação a participação em congressos e publicações – como prerrogativa para a conclusão dos estudos.

Os Estados Unidos tem uma tradição de associações acadêmicas em dança comparável às demais associações em outras áreas do conhecimento acadêmico, construída pela história da inserção de pesquisadores de dança em diferentes programas de pós-graduação, além da produção daqueles que são específicos da área de dança. Regulada essa prática, entre outros aspectos, existem de um lado os encontros e congressos científicos e de outro um mercado editorial prolífero. A CORD existe desde 1965. Foi criada por Bonnie Bird (YM-YWHA), Harry Bernstein (Adlephi College), Nadia Chilkovsky (Philadelphia Dance Academy), Martha Hill (Juilliard School of Music), Lucile Nathanson (YM-YWHA), Patricia Rowe (NYU), Jeannette Schoenberg Roosevelt (Barnard College), Bessie Schoenberg (Sarah Lawrence College), Theodora Weisner (Brooklyn College) and Lucy Venable (Dance Notation Bureau). Tem hoje cerca de oitocentos associados dentro e fora dos Estados Unidos. A SDHS foi organizada em 1978 [3]. No Brasil existe uma só associação acadêmica de artes cênicas: a ABRACE, criada em 1998 com a participação de representantes das Universidades Federais da Bahia – UFBA, do Rio de Janeiro – UNI-RIO, Fluminense – UFF, do Rio Grande do Sul – UFRS, da Paraíba – UFPB, de Pernambuco – UFPE, do Rio Grande do Norte – UFRN e de Viçosa – UFV, das Universidades Estaduais de São Paulo – USP, de Campinas – UNICAMP e de Santa Catarina – UDESC, e da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/ SP. Tem cerca de quatrocentos associados, na maioria pesquisadores da área do teatro. Tem um único mestrado específico da área de dança, que iniciou suas atividades em 2006 na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia. As pesquisas acadêmicas desenvolvidas no Brasil até o ano passado foram provenientes de programas de artes cênicas, ou de outras áreas relacionáveis.

Se por um lado é importante que o estudante de pós-graduação exponha seus trabalhos ao confronto de idéias, pondo em prova sua pertinência e sua validade acadêmica, por outro é questionável a criação de uma indústria sem critérios, criada para dar conta dessa demanda, privilegiando a quantidade e não a qualidade da produção acadêmica. Se as associações desenvolvessem um papel político importante no sentido de debater as questões urgentes para a área, traçando estratégias e planos de ação para o seu desenvolvimento, elas conseguiriam alcançar seus objetivos.

O CND, ao ter em suas instalações as associações americanas, a meu ver, visou apenas aumentar seu prestígio internacional, cedendo seu espaço ao jeito americano de ser, onde a racionalização do tempo e do espaço visa o maior acúmulo financeiro em menor tempo possível, deixando em segundo plano os objetivos de troca de experiência, aprofundamento das reflexões e confronto entre as diferentes metodologias. Aqueles que realmente produzem o conhecimento, nessas ocasiões, compram a alto custo o passaporte para garantir seu espaço no mundo da pesquisa em dança, financiando o espetáculo de poder que muito agrada as instituições.

Uma vez que não existe uma associação sem a atividade empreendida por seus sócios, parece-me importante estar engajado às associações de pesquisa em dança. Cabe então atuar nesses ambientes de forma que seus propósitos possam ser garantidos. A forma comercial encontrada pelas associações americanas até então não tinha sido aplicada, por exemplo, ao sistema de ensino na França. O Brasil importou muitos aspectos do sistema educacional dos Estados Unidos. A atuação organizada e sistemática de cada sujeito dentro das organizações pode empreender revisões constantes no sentido de adequar as práticas dessas organizações aos diferentes e constantes desafios que a pesquisa na área de dança enfrenta numa sociedade como a nossa.

Notas:

[1] O artigo referido será publicado na integra no site da Rede Sul Americana de Dança (http://www.movimiento.org).

[2] Para um maior conhecimento dessa instituição acesse http://www.portalabrace.org.

[3] O número de sócios não está disponível no site da associação http://www.sdhs.org.