Ecos do Conexão Dança Contemporânea

Depois de uma intensa semana de atividades do projeto Conexão Dança Contemporânea – ano II (de 16 a 22 de maio, em São Luís-MA), ouvi do Yuri Azevedo, assíduo participante dos tantos vários itens da programação e integrante da Santa Ignorância Cia. de Artes, companhia realizadora do evento, uma frase que traduz bem a natureza dos acontecimentos. “Ainda estou meio tonto, foram tantas informações novas ao mesmo tempo nesses dias. E, olha, que quando a maioria dos participantes, inclusive eu, chegou a São Luís do Maranhão, já tinham passado pelo evento, com ações formativas e apresentações, Tadashi Endo (Japão) com seu butoh-ma; e Thelma Bonavita e Cristian Duarte, do Desaba (SP), deixando, sem dúvida, material suficiente para alimentar as conversas e ações que viriam e virão a seguir, ou, em outras palavras, muitas ‘novidades’ já tinham aportado na ilha, remexendo pra valer ‘as águas’ dali”.

Quando o Yuri falou da quantidade de informações novas, ele se referiu ao contato próximo com a arte contemporânea em suas mais variadas vertentes e linguagens híbridas, que, pelo visto, não é matéria comum no Maranhão. Em caminhos paralelos, com pouca ou quase nenhuma interseção, as danças populares – como o bumba-meu-boi, o cacuriá e o tambor de crioulas – e a dança clássica disputam a preferência dos artistas locais e tornam-se seu lugar de formação e fruição. Em um cenário de construções tão sólidas, fica difícil encontrar brechas para as tais informações novas chegarem. Talvez escolher a arte contemporânea como questão não fosse tão impactante em outras realidades brasileiras, mas no Maranhão é uma iniciativa, no mínimo desafiadora. O que dizer então da intenção de estimular trocas e reflexões em torno de tal conceito, objetivo expresso por Erivelto Viana, artista da Santa Ignorância que deu esse corpo ao CONEXÃO DANÇA CONTEMPORÂNEA, realizado graças ao incentivo de dois editais federais, o da Caixa Econômica, e o Klauss Vianna, da Funarte, já que o Maranhão não conta ainda com nenhum mecanismo de fomento em nível municipal ou estadual.

Desde os primeiros momentos de convivência nesta segunda edição do CONEXÃO, sentimos a importância destes encontros na formação do profissional da dança, e, no consequente fortalecimento da área. A troca de experiências em vários níveis, a partilha de vivências, o diálogo, são ferramentas indispensáveis para lidar com as novidades. E, neste sentido, as conversas nos intervalos, o debate que se estabelece em todas as pausas da programação têm tanto valor como a ação de assistir a um espetáculo ou fazer parte de uma oficina de dança. Afinal, tudo isso é ponto de conexão, caminhos diversos rumo às tão necessárias informações.

A “novidade veio dar à praia” e estava criado o ambiente de contrastes. Restava aos conectáveis e conectantes, aproveitar a convivência e multiplicar o saldo do encontro. Com este ideal permeando todos os acontecimentos, o CONEXÃO inaugurou sua maratona levando ao palco do solene Teatro Arthur Azevedo o MONO, de Marcelo Evelin e Núcleo do Dirceu (PI). Então um instigante estado de desconforto se instalou, e foi difícil ficar alheio, ignorar por completo o inusitado que ali se apresentava. “Isso não é dança”, teria dito um espectador mais corajoso, ao ser surpreendido pela instabilidade e a repetição de movimentos simples dos três intérpretes do trabalho, ao ser confrontado com o discurso silencioso daqueles corpos masculinos nus. Questão de gênero, discussão sobre a hierarquia e a rigidez de fórmulas na dança, ou simplesmente exploração de formas de organizar e mostrar a arte contemporânea? Dava para ver as interrogações se multiplicando nas expressões descontentes ou espantadas da maioria. Que bom ver gostinho de novidade sendo saboreado, apesar de ainda amargar no paladar de alguns, a experiência estava em curso!

Fazer dança hoje é estar conectado, aos seus próprios movimentos-pensamentos e aos tantos outros. Conectados, os artistas eliminam o prejuízo da distância e se fortalecem cada vez mais, inclusive politicamente. Mas como é que se conecta? Erivelto resolveu juntar gente de todos os lados para dar voz aos inúmeros sotaques da dança contemporânea. De Barcelona, veio o pernambucano João Lima (PE) mostrar seu solo O outro do outro, sendo biográfico e fictício ao mesmo tempo, e levantando questões sobre identidade, não só no sentido das singularidades de cada indivíduo, mas também da definição de limites entre as linguagens, que persiste mesmo na arte contemporânea. Para engrossar mais a mistura, os artistas convidados traziam na bagagem percursos e formação diferenciados, revelando diversas possibilidades de criação e seus igualmente diversos resultados cênicos.

Explorando a máxima da interatividade, Neto Machado, do Coletivo Couve-flor (PR), por exemplo, fez o público ser a obra, enquanto enchia o ambiente de reflexões sobre categorização/rotulação de pessoas, ou sobre o próprio conceito de arte e de espetáculo…em Agora se mostra o que não está aqui, apresentado na sala de aulas de uma das mais tradicionais escolas de dança de São Luís, a Academia de Ballet Olinda Saul, o que por si só já é um fato novo. Fruto do diálogo criativo entre a dança contemporânea de Andréa Bardawil, e o corpo de brincante e bailarina de flamenco de Maria das Graças Martins; o solo Graça – Evidência um de percurso (CE), ampliou o leque de opções, dando motivos para acalorar ainda mais os debates. Haja novidade! Acredito que Yuri teve mesmo motivo para ficar estonteado.

E Erivelto resolveu juntar também todos os “jeitos” no mesmo evento: processos em construção, espetáculos, instalações, intervenções urbanas, entre outras formas das tantas falas da dança contemporânea. Uma escolha que parecia gritar: “vejam, existem outros jeitos, outras formas, outras maneiras!”

Experimentos filosófico-conceituais em processo, como o solo de Eduardo Fukushima (SP) intitulado Como superar o grande cansaço, conviveram com trabalhos criados a partir de matrizes da dança de rua, como a Interferência inacabada… Preste atenção ao ruído no fundo, de Vanilton Lakka (MG), e o Para 3 falta 1, de Alexandre Santos, César Costa e Clayde Silva, do Núcleo do Dirceu (PI).

Também eram vários os lugares de conexão, entre os oficiais estavam três teatros (todos estatais), o pátio do SESC, onde aconteceu a Mostra do Maranhão, e a Praça Alfredo Lisboa, onde Ricardo Marinelli, também do Couve-flor, mostrou a performance Eu tenho autorização da polícia para ficar pelado aqui (foto 1), criando situações diversas de aproximação com o público passante.

Conversas, reflexões... Atividades paralelas que ajudam na troca de informações

Novidades mil, conexões feitas, vem a pergunta: o que é que fica de tudo isso? Esta é uma questão que gera outras tantas perguntas. A que e a quem serve um festival e até onde alcança? Todo lugar é palco para a dança? Será que tudo pode servir de matéria prima para a dança contemporânea? Como lidar com as tais informações novas? A surpresa, seja ela positiva ou negativa (motivo de atração ou repulsão), estava estampada nas caras e nas falas tanto do público quanto dos artistas convidados, nos momentos oficiais e também na informalidade dos intervalos da programação. Espetáculos, performances, debates, videodanças, oficinas práticas e teóricas, vivências… As provocações vinham de todas as direções, entrando por todas as brechas. E apesar da freqüência de artistas locais nas discussões e ações de formação ainda ser pequena, o rebuliço já estava instalado, felizmente.

Tanto se tem falado sobre a necessidade de possibilitar acesso à informação, de dar espaço para o novo e promover a descentralização de recursos e ações, que é difícil imaginar que no Maranhão a figura do “pai-trocinador” (ou similar) ainda seja o principal meio de manutenção dos grupos e companhias do Estado. Viver exclusivamente da dança, da arte, em São Luís, ainda é um “luxo” para poucos. Tomara que do caldo do CONEXÃO brote mobilização suficiente para mudar esse cenário. Principalmente agora que eles têm uma oportunidade concreta de fazer a diferença, interferindo para evitar ou minimizar as distorções do recém lançado Edital Universal de Apoio a Cultura Maranhense, primeiro mecanismo de fomento estatal. Potencializar a força do encontro é uma urgência para que o rebuliço do CONEXÃO continue e ajude a tecer a rede, tão vital ao desenvolvimento da arte contemporânea. Já que “a novidade veio dar à praia”, que se possa tirar dela o melhor proveito.


Christianne Galdino é jornalista, produtora, pesquisadora e crítica em dança. Especialista em Jornalismo Cultural (UNICAP) e Mestre em Desenvolvimento Local (UFRPE).