O corpo é a memória da dança

No final de maio, realizou-se em Belo Horizonte o I Encontro de Pesquisa sobre Memória da Dança Brasileira em Minas Gerais. O evento, que integra o projeto Fóruns Por Que Dança?, surpreendeu muita gente pela quantidade de público, demonstrando que a comunidade da dança em Minas, cada vez mais, busca trabalhar a partir da construção de conexões além da fronteira de seus grupos, escolas, movimentos, apostando alto na busca de informação.

De um encontro como esse, poderíamos esperar o tradicional: palestras, debates, depoimentos. Foi, contudo, na apresentação de dois espetáculos que o tema ganhou sua força. A programação incluiu Por que tão solo?, que a bailarina Gabriela Christófaro criou em colaboração com o coreógrafo Tarcísio Ramos Homem e o videomaker Ricardo Garcia; e Arqueologia coreográfica, coletânea de algumas das remontagens com as quais Roberto Pereira, Marise Reis e seus alunos na UniverCidade tentam resgatar a história da contemporaneidade na dança brasileira.

Na comunidade que trabalha com arte contemporânea, é quase unânime a idéia de que a arte trata, antes de qualquer outra coisa, de si mesma. Raramente pensamos nas conseqüências disso para o conceito e a prática de uma herança cultural. Se a arte trata da arte, a obra de arte fala, ao mesmo tempo, de toda a história cultural, de toda a sua genealogia, e também, da maneira como se insere nesta história cultural. Isso pode parecer simples se pensamos em termos de um quadro, uma edificação, um livro, uma sinfonia, um filme. Torna-se problema quando chegamos a um espetáculo cênico, uma execução musical, uma recitação.

Qual seria a diferença na relação entre essas duas categorias de obras e a herança cultural. Em relação à primeira, fica evidente que as próprias obras iluminam qualquer registro sobre elas. A construção teórica sobre um determinado quadro e seu pintor, o estudo de um movimento cinematográfico ou a história da dramaturgia ocidental giram em torno de objetos concretos e contemporâneos: o próprio quadro, a cópia do filme, o conjunto de peças de teatro. Em relação à segunda categoria, como temos obras que desaparecem no próprio ato de sua criação, podemos contar apenas com seu registro em outro meio, e com a memória dos que as presenciaram. Fácil perceber que se trata, então, de uma herança precária, ou até mesmo falsa: o vídeo que registra um espetáculo de dança pode ser dança mas não é um espetáculo, o disco contendo uma execução musical pode ser música mas não é uma execução musical, a memória sobre um espetáculo teatral é a memória do conjunto de sensações de um espectador ou um crítico, mas não é um espetáculo. O que temos na história dessas obras, então, é um conjunto de vestígios de que elas existiram, não a própria história.

É possível realizar alguma compensação para essa perda constante? Ironicamente, a resposta nos vem do ballet. As criações da dança européia no século 19 permanecem vivas – no sentido de estarem à disposição imediata de espectadores contemporâneos, sem a necessidade de um registro bidimensional ou de fontes indiretas, como críticas e depoimentos. Muitos pensam que essa sobrevivência se deve ao fato incomum de o ballet ter sido pioneiro entre as raras tentativas de notação do movimento, da postura ou da posição, a coreologia. Essa opinião esconde algo mais profundo. As coreologias foram, na verdade, apenas instrumentos para uma estratégia de sobrevivência mais profunda. O que garantiu a continuidade foi a própria continuidade. O espetáculo de ballet permanece vivo exatamente porque permaneceu em cena. Nenhum registro dele trata de objeto inexistente, nenhuma teoria sobre ele o discute apenas hipoteticamente: o registro da obra fala de algo ainda novo na memória, ou de algo semelhante ainda novo na memória. A teoria trata de questões vivenciadas cotidianamente nas escolas, nos palcos, nas salas de aula das grandes companhias. Argumento semelhante poderia ser usado em relação a diversas manifestações populares de dança, da street dance aos folguedos, que constituem, em última instância, sua própria memória.
Alguém pode questionar que tanto o ballet quanto as danças populares se encontram, hoje, em estados distintos dos que apresentavam em momentos diversos do passado. Isso é óbvio, mas não nega o fato de que a dança é sua própria memória. Ao contrário, afirma uma nuance dessa premissa: o fato de que a dança, em si mesma, é efêmera.

Portanto, as modificações sutis ou drásticas que uma obra sofre entre duas apresentações distintas é parte integrante da própria dança e fato histórico relevante e apto a ser preservado. Ao apresentar a partir de idéias ou sentimentos contemporâneos qualquer obra erudita ou popular que integra nossa herança cultural, atualizamos não apenas o conjunto da obra, mas a maneira efêmera como ela se inseriu no mundo à época de sua criação.

Podemos, aqui, voltar a Por que tão solo? e a Arqueologia coreográfica. Os dois partem do pressuposto mencionado acima – a memória da dança só pode existir a partir da própria dança, que dá sentido a todas as fontes de informação que giram em torno dela. Debatendo com os participantes do evento em Belo Horizonte, Gabriela Christófaro deu boas pistas sobre como esse processo pode ocorrer. Mencionou como fontes primeiras do espetáculo as fotos de época, que registraram imagens de obras do passado, e depoimentos de artistas. Nos dois casos, o trabalho da artista teria sido atualizar as fontes corporalmente. A imagem de um corpo em determinada postura poderia ser atualizada por um corpo contemporâneo, morfologicamente análogo àquele corpo registrado na imagem. Aquela imagem ofereceria, a esse corpo contemporâneo, as informações necessárias para que ele refizesse os movimentos possíveis que conduziriam àquela postura ou partiriam dela. Os depoimentos operariam no mesmo sentido, ao construir memórias de movimentos, contextos onde eles poderiam ocorrer, discursos que ocorreriam simultaneamente. Vale mencionar que a participação da bailarina no debate não ocorreu apenas através da fala, mas também da expressão corporal: o processo descrito não faria sentido se não demonstrado.

A pesquisa de Roberto Pereira e Marise Reis pode ser conceitualmente mais simples. Realiza, essencialmente, a remontagem de obras, ou seja, busca a constituição de um repertório da dança contemporânea brasileira. Suas conseqüências, contudo, são tão positivas quanto as da investigação de Gabriela Christófaro. Primeiro, porque, como vimos, é o próprio repertório que legitima qualquer outra fonte para a história da dança. Segundo, porque ao buscar a reposição em corpos contemporâneos, acaba evidenciando a diferença entre esses corpos e os corpos que originalmente dançaram aquelas coreografias.

Tomemos, como exemplo, a interpretação. Ao recuperar uma peça da fase em que a coreógrafa Carlota Portella estava mais presa aos cânones do jazz norte-americano, a expressão facial dos bailarinos e sua relação com o ambiente parecia viva, contemporânea, autêntica. Ao fazerem a mesma coisa com uma criação de Graciela Figueroa em seu momento mais delirantemente contracultural, essa relação não parecia existir. O contraste provavelmente vem do fato de que a “interpretação jazz” é mais viva em nosso cotidiano que a “interpretação contracultura”. Até essa falha fala, então, do panorama histórico dos palcos brasileiros, do que se perdeu e do que se preservou – algo análogo à restauração de um edifício, que preserva até mesmo os danos sofridos por este edifício. A falha acaba indicando, também, o caminho para sua própria solução: num estágio mais adiantado da mesma pesquisa, podemos imaginar os bailarinos reconstruindo em seus corpos outras nuances de época, e no processo, arrancando de suas fontes a informação necessária a essas nuances.