Núcleo do Dirceu ampliando circuitos das ações artísticas

Uma corrida, uma espiral de questões. De repente tudo fica potente e há, sim, gente para trabalhar, diálogos a se fazer, questões a levantar. Então, o Núcleo do Dirceu aciona um Curto Circuito, propondo-se a expandir suas ações, integrar propostas artísticas, performar e construir possibilidades de ações pontuais em nome de um resultado que reverbere em outras instâncias, ampliando cada gesto. O projeto vem na esteira dos espetáculos Matadouro e De Repente Fica Tudo Preto de Gente e da ação 1000 Casas. Tudo no que foi denominado Programa Indisciplinar Para Criadores Contemporâneos.

Nessa efervescência de referências e de ações motivadoras e mobilizadoras, o Núcleo do Dirceu quer investigar a sua própria forma de atuar e reorganizar os próximos passos. Trabalha com recursos (poucos) captados através de Lei de Incentivo, tendo seis meses como referência para o desenvolvimento desse circuito de trocas. Assim, focam a investigação de um sistema de formação, abrindo espaço para novas experiências, informações, compartilhamentos. Ou seja: o Núcleo baseado no bairro Dirceu, no Piauí, é a ponta (branca, como seu galpão) de um iceberg que emerge. Ele evidencia estudos teóricos, ações práticas, debates e investigações em torno do corpo contemporâneo, experiências, instantes de diálogos, instâncias de construções significativas.  O projeto começou com seleção de propostas pra ocupação do galpão. Todos eram bem vindos. Assim, abriram-se portas e possibilidades.

– Queremos criar no galpão um pensamento em torno do conceito de ambiente. Algo que possa proporcionar a formação e também a criação. Queremos investigar como se alimentar desse ambiente, dessa sopa que nutre qualquer outro que esteja disposto a isso. Então, nosso espaço acaba sendo um espaço público, um lugar de muitos – descreve o coreógrafo e o pesquisador Marcelo Evelin.

A mistura de possibilidades inclui reuniões e encontros sociais, quando, por exemplo, se vê um vídeo, conversando sobre ele, em momento de partilha de afetos e de ideias com possibilidade de sensibilizar gostos e gentes. Nessas instâncias, não se separa teoria de prática. Uma coisa não exclui a outra e, no circuito sugerido pelo Núcleo do Dirceu, não há divisões dessa ordem. Pelo contrário, por lá se fala de aproximações e contribuições, rede de significados, circuito de idéias. Assim estudantes universitários convivem com b.boys e professores de mestrado. Um criador de Fortaleza mudou-se de Estado para ficar mais próximo desse ambiente. Pessoas diferentes, artistas de muitas áreas, deslocam e desdobram seus interesses, tocam-se e trocam afinidades. Mídias e modos de atuar encurtam distâncias entre um e outro conhecimento. O resultado é aprendizado latente, movimento constante.

Essa perspectiva da indisciplinaridade inclui uma ideia de corporeidade ampla, que abrange oficinas de pensamento, onde são investigadas teorias e práticas que pensam o corpo contemporâneo. A ação agrega e inclui outros pesquisadores. Janaina Lobo escolheu o Núcleo do Dirceu para desenvolver sua pesquisa do Rumos Dança. O mesmo se dá com Jacob Alves, que desenvolve ali projeto contemplado com bolsa da Funarte.

– Tem sido bacana essa experiência do Núcleo ser referência e acolher outras pessoas. Assim, instaura-se um processo poroso. O galpão tem sido e servido para essa complexidade de propósitos e possibilidades. Entendo ele como um lugar necessário para pensar o que se está fazendo no Brasil – diz Evelin.

Pensar e agir, organizar ações qualitativas, de expansão e inclusão estão na roda. Uma delas é a o desenvolvimento, no Núcleo, de um Curso de Extensão da Universidade Federal do Piauí. O processo tem surpreendido pelo alto nível das discussões, e, claro, por redesenhar as linhas de ação da academia, dinamizando ainda mais aquilo que se faz e se pode fazer com a universidade fora do seu campus. O projeto não questiona a formação acadêmica, mas tem conversado sobre o lugar dela num ambiente – social, formativo, artístico, intelectual, institucional mesmo. Tem, portanto, importante valor na interseção dessas realidades, dando outra dimensão para a idéia de formação acadêmica. Além disso, segundo Evelin:

– O projeto pode alavancar o curso de dança na universidade. Queremos que ele venha atravessado por esse veneno indisciplinar, questionador. Não há perigo nisso.

Fotos JELL CARONE

Fotos JELL CARONE

Assim, as ações do Curto Circuito reorganizam, também, as instâncias denominadas processo e produto no ambiente da dança contemporânea brasileira. Isso é experimentado na prática, nos encontros, nos debates, nas performances sediadas e protagonizadas pelos integrantes do Núcleo do Dirceu em Teresinha, no Brasil, no mundo. É por isso que o espaço planeja sediar residências, pensando ações pontuais, que tenham resultado objetivo. A ideia sugere produtividade desse tipo de recurso. Afinal, num determinado momento, houve muita residência no Brasil, apresentação de processos. Mas esse é um expediente que pode ser revisto pensando na relação do artista com o público.

– Identifico certo afrouxamento, certa falta de compromisso nisso. Tenho uma ideia de público, que é também uma instância de compartilhamento – analisa Evelin, sinalizando que a apresentação de resultados de processos investigativos também é um contexto importante na dança brasileira.

É por isso que, nas ações do Curto Circuito, público é um dado fundamental. Durante todo o ano, o galpão do Núcleo será aberto, haverá coisas para se ver, trabalhos para assistir, encontros para frequentar, aulas para compartilhar. Essas, por exemplo, tomam várias formas, transitam por diferentes instâncias, com debates e leituras e conversas em torno de textos teóricos previamente distribuídos.

Nesse trânsito, o Núcleo do Dirceu também sai de sua área geográfica, com ações como a ocupação do Museu do Piauí, que está sendo planejada. A ideia é mais do que significativa: um grupo com linguagem e performance inovadoras ocupando um ambiente de tradição pra lá de estabelecida, algo precária. O gesto pode arejar esse espaço. Gesto de arte, ação política.

– Continuamos tentando dialogar com outros meios, mas ainda estamos meio isolados – diz, sinteticamente, Marcelo Evelin.

Mas esse isolamento é parcial, em visível transformação, pois o Núcleo do Dirceu virou espaço de resistência que, no fluxo-troca entre o que é produzido no seu galpão e a cidade, renova seu entorno. O lugar vira, então, um espaço de resistência.

– O perfil da cidade mudou com o surgimento do Núcleo, que tem influências artísticas e políticas. Vivemos na periferia da periferia. Mas essa é uma situação privilegiada. Somos a pele da cidade, o lugar onde se respira, o órgão mais profundo do corpo, que promove as trocas entre interior e exterior – analisa o coreógrafo.

Ambiente e contexto. Estar no subúrbio é, sob uma nova perspectiva, estar no centro de transformações. É esse espaço urbano que tem gestado inovações. É nele que antigas disciplinas, compartimentos e isolamentos, têm sido rompidos. É nele, portanto, que se reforça uma nova postura política, que legitima outras possibilidades de produção de arte e conhecimento. Aí se gera muitos sentidos: de existência e de arte inclusive. E, aliás, elas são também inclusivas, pois, segundo Evelin, no Núcleo faz-se arte para existir e existe-se para fazer arte.

– Aqui a gente defende a vida no sentido mais primitivo – diz Marcelo Evelin.

Essas defesas estética, éticas e vitais, se processam de forma intermitente no Curto Circuito do Núcleo do Dirceu. São processos que abrem lugar para um ativismo. Foram integrantes do Núcleo, por exemplo, que disseminaram a ideia do Fora Feliciano em Teresina. Para a trupe de artistas, a discussão de arte como postura política é para lá de pertinente. E os debates são amplos, internos, com pessoas que se chegam, grupos ou instituições externas.

Para isso, se colocam como espaço aberto para residências. Basta acionar vontades, afinidades. Peter Pál Pelbart é alguém com quem querem compartilhar sua vida (política) e sua política (ética e estética). Essa mesma que vive e pulsa em Teresina e, também, vai ao mundo: das mil casas visitadas, outras mil e tantas seguem potentes de novos gestos artísticos, Matadouro e De Repente Fica Tudo Preto de Gente estarão em diversos festivais europeus ainda em 2013. Há uma curiosidade dos europeus sobre o que se tem feito no Brasil. Sinal de uma há inovação e inquietação sendo gestada nos corpos artísticos brasileiros. Lembrando Boaventura Sousa Santos, sinal que as epistemologias do Sul se anunciam vitais para o mundo. Sinais do corpo, potências do gesto, indisciplinaridade organizando novos discursos estéticos. Num galpão de Teresina, num núcleo irrequieto, na afirmação de que a inconformação toma corpo, dança, emerge e resiste.