Entre o eclético e o estéril | Between the eclectic and the barren

Relações Fast Food

A dança plugada no mundo

Vivemos, como nunca antes visto, a era do emergencial e do descartável. As relações entre pessoas e objetos e os eventos que daí resultam seguem o modelo fast food, onde o que importa é o “quê” e não o “como”, o resultado e não o processo. Se o mundo hoje não pode ser entendido sem que se considere a globalização como fator fundamental de influência e transformação dos sistemas político, econômico e social, também não podemos ignorar que a dança contemporânea se encontra imersa neste contexto.

Na dança da diversidade o corpo busca sua identidade

Conforme discutido durante um estágio organizado em 1996, na “Association de Danse Contemporaine”, que teve como mediadores nomes como Hubert Godard, Laurence Louppe e Françoise Dupuy, “a dança contemporânea se situa dentro do movimento da modernidade e não se define por uma técnica referencial, mas por uma estética”. É importante o entendimento de que não se pode atribuir uma técnica específica à dança contemporânea, pois sua definição se dá através de um sentimento estético, de um ponto de vista sobre o mundo, as relações do indivíduo com ele e com si próprio. Assim, a questão sobre a impossibilidade de se definir a dança contemporânea como uma técnica ou um projeto únicos vai importar nesta pesquisa para iluminar o lugar em que se encontra o corpo do bailarino contemporâneo. Este corpo-canal “se perde de uma construção baseada em conceitos prévios criadores de uma estética permanente para refazer uma formação que o faz cruzar correntes múltiplas” (Louppe, 2000:27).

A pluralidade das correntes de dança contemporânea abriga um valor fundamental: o fato de o movimento não se limitar a ser abordado como um savoir faire, mas dar forma a um sentido (1). Considerando a sensação do instante, a intenção do gesto e a abertura e conexão com novos campos de investigação como fatores constitutivos deste sentido dado ao movimento, procurou-se definir quais parâmetros seriam essenciais ao corpo contemporâneo. Assim, como “ponto pacífico” e primordial estabelece-se a necessidade da consciência dos parâmetros de tempo, espaço e peso.

É interessante notar que os elementos para os quais a dança contemporânea volta sua atenção são responsáveis por afirmar a condição do indivíduo no mundo, a si próprio e ao que o cerca. A contemporaneidade na dança pode, assim, ter como característica não única porém relevante a auto-referencialidade. Será uma reação à velocidade e à falta de tempo de absorção de tantas informações? Será uma manifestação de egocentrismo como tentativa de afirmação da identidade de um corpo mergulhado na “sociedade do resultado e do produto”? Como parte do leque da dança contemporânea, as circunstâncias originam pensamentos cada vez mais diversos fazendo com que os coreógrafos voltem-se predominantemente para seus questionamentos, desenvolvendo sua própria linguagem. Neste sentido, de como a obra se apresenta, nota-se o incremento da especificidade como resultado cênico. Respostas múltiplas. Pontos de vista peculiares acerca do mundo e, no caso da dança, uma assinatura coreográfica mais presente. Paradoxalmente, a especificidade aqui é resultado de momentos pontuais de fusão de ocorrências múltiplas e concomitantes do mundo. A digestão de tantas informações e sua transformação em dança se dá como manifestação da existência do único e do irrepetível. O único múltiplo que determina o específico.

No entanto, embora faça parte e esteja sob o domínio do contexto traçado, o ponto principal da pesquisa precisa ser abordado com uma lupa em meio à confluência de tantas incertezas. Aqui o objetivo principal é levantar questões sobre a forma como se dá a construção do corpo do bailarino. É como se a obra fosse o quebra-cabeça, mas o ponto a ser abordado, ou seja, o corpo, fosse uma pecinha que, junto às outras, é responsável pela forma do todo.

Modernidade X Contemporaneidade: rejeição de heranças?

Até determinada época, conseguia-se identificar um bailarino por sua técnica. Paralelamente à estruturação da ideologia que estava por trás das correntes de dança moderna, ocorreu a sistematização de técnicas (Graham, Cunningham, etc.) que formavam os corpos de acordo com a requisição dos projetos coreográficos. Estes projetos, por sua vez, eram organizados de forma tão coesa que imprescindiam de um corpo específico para ganhar concretude.

Segundo Laurence Louppe, no início dos anos 80, aconteceu o que atualmente chamamos de perda das linhagens:

Essas linhagens foram, até então, formadas através de uma corrente, ligando de maneira contínua a elaboração de um estado de corpo com o conjunto de princípios estéticos e filosóficos de um grande criador – não apenas criador de espetáculos, mas também criador de corpos.(…) O bailarino se construía de maneira coerente e pertinente através de uma prática, uma visão, em que ele podia encontrar a constelação de referenciais simbólicos dos quais o seu corpo era portador. (2000:31)

Já o corpo contemporâneo diferencia-se por não refletir mais só uma técnica, mas por ser regido pelo princípio da experimentação, a qual procura a eficiência que vai dar conta de uma estética do momento. Este é o corpo urgente, corpo vítima da inevitável compulsão pelo conhecimento e pela reciclagem. Este é, acima de tudo, um corpo plural.

A impossibilidade do corpo absoluto

Dentro da abordagem da construção do corpo do bailarino atualmente, seguiu-se as duas fontes de instigação inicial: a especificidade e a multiplicidade. Num primeiro momento não dotado de embasamento teórico ou de uma pesquisa realizada em nível mais científico, estas foram as duas palavras que regeram a curiosidade sobre o tema da investigação. Conforme acrescentou-se ao significado dessas palavras segundo um nível semântico e morfológico sua possível acepção no contexto da formação do corpo que dança, constatou-se uma ligação inevitável e a complementaridade entre eles.

O corpo não é, o corpo são

O corpo múltiplo é aquele que pretende dar conta de muitos códigos (2). À luz da idéia de que tudo o que viabilizamos, que “deixamos que entre” em nosso corpo, permanece nele para sempre, será possível trilhar com êxito caminhos diversos? Neste contexto, de um sistema de comunicação que faz de seu corpo o canal, o plural se faz possível? Neste caso, é importante entender múltiplo enquanto sinônimo de versátil. Várias linguagens encontrando seu espaço em um mesmo meio e constituindo possibilidades de “lugares” de trânsito confortável para este meio (organismo/corpo). Segundo Laurence Louppe, a grande distinção a ser feita está relacionada aos resultados possíveis para a mistura de corporeidades ou estéticas distintas.

Há o caso de corporeidades incompatíveis, que determinam apenas uma justaposição, um encontro pontual para dar conta da necessidade de uma determinada obra, mas que não promovem a fusão entre si. Em oposição, há o caso em que a mistura acontece com sucesso, para isso sendo preciso que ela “reflita uma filosofia do corpo, uma abordagem específica do tônus corporal, [ou seja], de todo o dispositivo qualitativo do bailarino, tudo o que o constitui em sua relação com o mundo que deveria ser objeto de mutações e de misturas” (Louppe, 2000:29). Como constatação da necessidade de tempo para tal transformação, é citado um exemplo em que o corpo do bailarino de fato sofreu uma mudança em sua estrutura:

(…) Isto pode levar uma vida inteira ou várias gerações, como quando os bailarinos de ritmos de jazz combinam a pulsação vertical, as síncopes barrocas ocidentais com a potência lateralizada dos apoios africanos. Desse modo, uma nova cultura é criada através de novos ‘modos’ e não há apenas a enunciação de figuras motrizes justapostas. (Louppe, 2000:29)

É importante distinguir o corpo múltiplo do corpo eclético, visto que o primeiro transita confortavelmente entre linguagens diversas e o segundo caracteriza-se pelo hibridismo, pela perda de seu referencial e de sua autonomia. Retomando a idéia de corpo plural contextualizada no primeiro capítulo, a qual abriga um caminho de entendimento do corpo contemporâneo, é preciso relacionar a construção de um corpo híbrido com a emergência de uma característica peculiar às criações contemporâneas: “a dança de autor”. Como conseqüência, Dena David, citada por Laurence Louppe, vê “a reunião de elementos diversos que podem servir à elaboração de uma fantasia imaginária pessoal, sem que a identificação consciente dos materiais e a aliança corporal, sensível e ideológica dos atores que o põem em jogo, sejam minimamente necessárias” (2000:32). Por “dança de autor” entendemos ser uma profusão de propostas isoladas que caracterizam uma nova era, uma era que não exige que se esteja unido em torno de um estado de corpo comum (Louppe, 2000:33). O bailarino perde-se de uma constituição alicerçada em uma técnica para resignar-se em “pinçar” alguma habilidade de acordo com a estética do momento. Desta forma, o corpo híbrido tem o sentido do vetor de sua relação com o projeto estético invertido: ele não mais escolhe, porém é escolhido.

A hibridação é, hoje em dia, o destino do corpo que dança, um resultado tanto das exigências da criação coreográfica, como da elaboração de sua própria formação. A elaboração das zonas reconhecíveis da experiência corporal, a construção do sujeito através de uma determinada prática corporal torna-se, então, quase impossível. (Louppe, 2000:31)

Como especializar o eclético?

No decorrer da pesquisa, o termo “especialidade” se apresentou mais apto a responder ao significado proposto primeiramente pela palavra especificidade. O objetivo é questionar a possibilidade da existência de um corpo que, mesmo cercado e conectado com uma rede de eventos que, alterando-se sempre, se comunicam e interpenetram, consegue dar conta da pureza de uma linguagem. Que estratégia possibilitaria o êxito da tentativa de preservação de um código que apresenta em seu canal o trânsito de informações as mais diversas e, em muitos casos, contraditórias? Seria uma utopia? Seria determinável pelo desenvolvimento de uma habilidade do corpo? Entendendo a Educação Somática como “correspondente aos diversos métodos de trabalho corporal onde os aspectos motores, sensoriais, perceptivos e cognitivos são abordados simultaneamente” (Soter, 1999:143), é preciso entender a maneira como ela se coloca à disposição do bailarino no auxílio à sua formação.

No processo de cognição motora, os neurônios aprendem as sinapses necessárias para enviar uma ordem aos músculos e, assim, gerar movimento (entendido amplamente tanto como trivial quanto não trivial). Este conhecimento é armazenado gradativamente pelo organismo, num processo onde um dos elementos principais é o tempo, e acarreta/consiste na necessidade de uma constância na repetição do movimento, como um treinamento mesmo, para que seu caminho possa ser esmiuçado. Se o canal é o mesmo, podemos concluir que, no caso de informações distintas e até mesmo incompatíveis, a pureza da mensagem fica inevitavelmente comprometida, pois tratam-se de elementos díspares brigando por seu espaço no mesmo “compartimento”.

Se a inteligência pode ser definida como a capacidade de relacionar coisas aparentemente não pertencentes a um mesmo contexto; se, tudo o que está no mundo está conectado com seu entorno; e visto que o mundo globalizado se caracteriza pelo trânsito cada vez mais rápido e intenso de informações; então, a tendência é que estas informações sejam cada vez menos puras? Embora instigante, a questão acerca do quão crescente é a probabilidade de as linguagens estarem condenadas à interpenetrabilidade, a terem suas fronteiras diluídas, não vem ao caso. O que esta pesquisa procura é indagar sobre como diversos códigos motores afetam seu canal – o corpo.

Utopia do corpo impenetrável

… refleti que tudo aquilo que acontece com alguém, acontece agora, precisamente agora. Séculos de séculos e só neste instante é que os fatos ocorrem; homens sem conta nos ares, na terra e no mar e tudo o que realmente se passa está se passando comigo… (trecho de “El jardín de los senderos que se bifurcan” (3), de Jorge Luis Borges, citado por Calvino, 2000:134)

Para organizar o “terreno” em que esta pesquisa “pisa” com muitas dúvidas e quase nenhuma certeza, é preciso ter em mente que, na aquisição de conhecimento, os eventos não se sobrepõem uns aos outros de forma cronológica e sistemática. A reorganização das informações já existentes é imanente a este processo. Assim, podemos prever, com limitação, o que assimilar. Para isso, podemos selecionar um lugar, um grupo de pessoas, enfim, um ambiente que nos rodeie com o qual sabemos que teremos experiências de percepção e, por conseqüência, de descobertas. O indivíduo modifica o ambiente assim como o ambiente modifica o indivíduo. O que não podemos determinar é o resultado desta troca. As emergências, associações que daí resultarão, são dependentes de vários outros fatores cujo controle não nos pertence. A autonomia do indivíduo vai até seu poder de escolha, o qual é exercido todo o tempo, nas atividades mais cotidianas, funcionando, inclusive, como um meio de sobrevivência face à constância de bombardeios de informações que sofremos a cada segundo.

Antes mesmo que a ciência tivesse reconhecido oficialmente o princípio de que o observador intervém para modificar de alguma forma o fenômeno observado, Gadda (4) sabia que ‘conhecer é inserir algo no real; é, portanto, deformar o real’. Donde sua maneira típica de representar deformando, e aquela tensão que sempre estabelece entre si e as coisas representadas, mediante a qual quanto mais o mundo se deforma sob seus olhos, mais o self do autor se envolve nesse processo, e se deforma e se desfigura ele próprio. (Calvino, 2000:123)

É necessário procurar um fio condutor das indagações aqui propostas através do mecanismo do movimento, seu acionamento, sua construção e sua consciência. Como exemplo, unindo a investigação teórica à prática vivida pela autora desta pesquisa, há o caso da acrobacia aérea, com as mudanças que ela vem ocasionando em seu corpo desde o momento em que se deu o primeiro contato entre eles, considerando que este corpo continha anteriormente uma informação de dança segundo a técnica do balé clássico. Como o corpo está sempre em mudança, reorganizando-se, é utópico desejar lê-lo “destilando” apenas uma linguagem.

“Liqüidificando” a informação

A apreensão de conhecimento motor implica na perda da ingenuidade do corpo. Não é possível conservar em estado bruto um organismo que “está no mundo”, submetido a processos cognitivos. A questão é como conservar as “escutas abertas”, disponíveis para novas informações e como este estado de frescor atua na construção de corpos desprovidos de ideologia – característica da dança contemporânea.

Há que se considerar a real necessidade de tempo para a inscrição consistente de um vocabulário no corpo e a variação de intensidade desta inscrição de acordo com a força de circunstâncias cujo domínio nos escapam.

No caso do contato e da manipulação de elementos diversos necessários para dar conta de um projeto estético, da mensagem contida em uma obra, o corpo não é modificado em sua essencialidade. Qual será a condição para que haja a real modificação do corpo ou, no caso de duas informações incompatíveis, para que o corpo consiga fundi-las e se libertar do hibridismo? Seria a educação somática uma possibilidade de resposta a estas questões? Deveríamos parar de nos autoconferir o poder de resposta e “aceitar a história, ou antes esse lugar a-histórico onde o corpo não se inscreve, jogar com as feridas de um corpo que não se constitui a partir de uma consciência contínua de si” (Louppe, 2000:38)?

Notas

(1) Esta questão remonta ao século XVIII, onde Noverre chamava de “fogos de artifício” tudo numa obra coreográfica que não respondia a uma essencialidade. Para um exame aprofundado sobre o contexto reformador das propostas do bailarino e mestre de balé Jean-Georges Noverre, auxiliares para a compreensão da dança na modernidade, consultar Noverre – Cartas sobre a Dança, de Marianna Monteiro.

(2) “Código é um sistema de símbolos com significação fixada, convencional, para representar e transmitir a organização dos seus sinais na mensagem, circulando pelo canal entre a emissão e a recepção.” (Chalhub, 1997:48)

(3) Borges, Jorge Luis. “El jardín de los senderos que se bifurcan” In: Ficciones, Buenos Aires: Emecé, 1956.

(4) Carlo Emílio Gadda: engenheiro e escritor italiano. Na obra Seis Propostas Para o Próximo Milênio, de ÿtalo Calvino, alguns de seus pensamentos enquanto filósofo amador são citados e analisados enquanto material auxiliar do entendimento da multiplicidade como um dos valores literários a serem preservados no curso deste novo milênio.

BIBLIOGRAFIA

CALVINO, ÿtalo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio, trad. Ivo Barroso, São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

KATZ, Helena. “O Coreógrafo como DJ” In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (Orgs.) Lições de Dança 1, Rio de Janeiro: Univercidade Ed, 1999.

KLEIST, Heinrich von., Sobre o Teatro de Marionetes, RJ: Sette Letras, 1997.

LOUPPE, Laurence. “Corpos Híbridos”, trad. Gustavo Ciríaco, In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (Orgs.) Lições de Dança 2, Rio de Janeiro: Univercidade Ed, 2000.

MONTEIRO, Marianna. Noverre – Cartas sobre a Dança, São Paulo: Edusp, 1998.

SANTAELLA, Lúcia. Estética – de Platão a Peirce, São Paulo: Experimento, 1994.

SCHULMANN, Nathalie. “Da Prática do Jogo ao Domínio do Gesto” In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (Orgs.) Lições de Dança 1, Rio de Janeiro: Univercidade Ed, 1998.
SOTER, Sílvia. “A Educação Somática e o Ensino da Dança” In: PEREIRA, R. e SOTER, S. (Orgs.) Lições de Dança 1, Rio de Janeiro: Univercidade Ed, 1999.

*Clarice Silva é bailarina da Cia de Dança Dani Lima, professora de balé clássico da UniverCidade e de dança contemporânea do Centro Cultural Municipal Dyla Sílvia de Sá.
This research had as initial stimulaton the questioning of how the body processes information and acquires knowledge. In principle, we looked for the crossing of two approaches – the multiplicity and the specificity – so that questions on the construction of the body of the contemporary dancer were raised. However, the border between these two concepts blured as the body was considered as an organism related to the environment. From the premise that the interaction with the environment, the power to transform it and the inevitability of being transformed by are imanented to the existence of this body, the meanings of specific and multiple stop being so polar to become linked, one completing the other.

This is the beginning of a journey that, to aim at any answer, requires the previous clarification of the context of its research object, that is, the body of the contemporary dancer. Much more than to define answers, the objective is to raise a net of investigations on the process and the result of the “digestion” of a body possessing some codes. What is the place of this deriving body “of diverse formations [that received ] diverse elements, for times contradictory, without the necessary tools to read its own diversity?” (Louppe, 2000:32).