Espaço público em um mundo privado

Com o intuito de estimular discussões sobre a relação entre a dança e o espaço urbano, o idança firma uma parceria de conteúdo com a rede Ciudades que Danzan. Traduzimos um artigo que integra a primeira edição da revista anual editada pela rede, que é bilíngüe em inglês e espanhol. Lá, você pode encontrar artigos, depoimentos de artistas e a programação dos festivais que têm a cidade como cenário. Para ler a revista, clique aqui.

Ciudades que Danzan é uma rede internacional de festivais de dança com programação em paisagens urbanas, que acontecem em diversas cidades da Europa e da América Latina. O objetivo é humanizar as cidades, valorizar o patrimônio artístico e arquitetônico e promover o intercâmbio entre os centros urbanos. Para conhecer mais sobre o projeto, clique aqui.

Até pouco tempo atrás, falar sobre paisagens urbanas era uma maneira quase poética de se referir àqueles espaços que, hoje, parecem estar no caminho da extinção. Na Europa, não se questiona que a rua é um espaço público. Na América Latina, o espaço público vai de arena de lutas a patrimônio privado nas mãos de donos de empresas. Nada mais distante de harmoniosas paisagens urbanas ou espaços para encontros de cidadãos. Se o movimento popular navega contra o fluxo da privatização do espaço público, se a educação pública não educa e a administração local não funciona… Faz sentido falar sobre dança contemporânea em espaços públicos? Talvez, hoje em dia, mais do que nunca. Se estamos escrevendo sobre a América Latina, não há nada inocente ou simplesmente estético em nossa cultura. É verdade que dentro do auto-proclamado Primeiro Mundo, a pós-modernidade é vivida em sua plenitude e, de acordo com Zygmunt Bauman, houve uma passagem dos espaços sociais cognitivos (incentivados no período moderno) para os espaços sociais estéticos (filhos naturais da pós-modernidade).

A interpretação desses espaços sociais estéticos é simples: é tudo sobre meios sem um fim, sobre a vida como jogo ou diversão. Por isso, programar eventos culturais em nossos espaços urbanos nos força a pensar, a fazer uma auto-crítica, a virar projetos do avesso um milhão de vezes em uma busca por coerência e responsabilidade social que é configurada em um valor limitado: impossível de ser alcançada, mas que precisa ser buscada.

Há uma tarefa pendente para os programadores e administradores culturais da nossa região: a reconciliação com o público espectador e a busca por pontos de vista mais latino-americanos, para mostrar mais de nós mesmos e quem somos.

É nossa inevitável responsabilidade brincar com aquilo que somos realmente e reconquistar o espaço onde podemos ser de fato nós mesmos. Recentemente, ao participar de um festival da rede Ciudades que Danzan, na Europa, ficamos chocados de ver os melhores dançarinos contemporâneos dançando na rua para menos de cem espectadores. Muitos dos transeuntes, ofuscados pelas luzes desses espaços sociais estéticos, não conseguiam parar, olhar e aproveitar.

Em um pequeno vilarejo colombiano, no meio de uma tempestade e com uma multidão de componeses, 600 pessoas lidam com a chuva torrencial que obriga os dançarinos a levar seus corpos ao limite. O resultado é a reconquista de um espaço, dançarinos que, mais do que dançar, reinvidicaram a força da vida e os laços com um público mais exigente que se pode encontrar. Espaço público, a praça, a conversa de noite, com cheiro de suor e churrasco, a paquera na esquina, os gritos de sempre…

Paco Gómez Nadal é co-fundador e membro da equipe de coordenação de Sobresaltos, festival de dança em paisagens urbanas, que trabalha pela democratização e transformação dos espaços públicos.