Espaços na dança

Dando continuidade à parceria com a rede Ciudads que Danzan, o idança publica mais um artigo da revista editada pela organização. Para ler a revista na íntegra, clique aqui. Veja na nossa galeria de videos, Travessia, da Cia. Hibridus, que trabalha idéias semelhantes.

Corpos não formam sociedades – isto é, coreografias – apenas com outros corpos, mas também com todos os outros elementos, móveis ou estáticos, dentro de seu contexto.

O papel atribuído ao corpo pelas novas coordenadas do espaço público moderno concebe-o como um objeto sem tema, justamente por estar localizado dentro de um contexto, a rua, que é vista como uma máquina sem espírito, como um mecanismo privado de alma, um artefato que, na falta de uma consciência privada ou compartilhada, não é nada além do trabalho que realiza: a cidade em si. Esse papel central do corpo na atividade de zonas urbanas evoca automaticamente a referência formal da dança. Isso não é fortuito, uma vez que o corpo e a cidade estão sempre em estado de agitação permanente, mesmo de forma latente, quando em repouso ou imóvel.

O corpo de um pedestre – corpo sem sujeito, corpo apenas como seqüência de atos – é constituído de uma série de descargas energéticas em espaços desiguais que acontecem em curtos intervalos de tempo, pontos de união de conexões sempre frágeis e laterais com outros organismos que se encontram ou se cruzam. Basta lembrar como Jane Jacobs, na sua obra-prima The Life and Death of Great American Cities (Morte e Vida de Grandes Cidades), não conseguiu encontrar imagem melhor para descrever o fluxo incessante dos espaços públicos do que um “intrincado balé, no qual dançarinos solistas e em conjuntos têm papéis específicos que milagrosamente reforçam-se mutuamente e compõe um todo ordenado”.

A dança é um tipo de criação artística que se baseia no máximo aproveitamento das possibilidades expressivas do corpo, que exerce sua energia ao longo de um determinado tempo e espaço, um tempo e um espaço que parecem já ter existido antes da ação humana, mas que na verdade emanam dessa ação.

O corpo-energia-tempo do dançarino expressa todas as suas possibilidades na atividade cotidiana dentro dos contornos urbanos, nos quais palavras geralmente valem relativamente pouco na relação entre completos ou quase estranhos e em que tudo parece depender de eloqüência superficial, não no sentido de trivial, mas, neste caso, de atos que acontecem na superfície.

Essa ênfase na proeminência dos corpos nas atividades que os seres humanos desenvolvem dentro dos espaços públicos, permite-nos insistir no fato de que qualquer ciência social que tem o atrevimento de transformá-las em seu objeto de estudo, deveria ser conduzida principalmente como uma coreologia. Os indivíduos, casais, pequenos grupos e, também, as multidões que se fazem presentes em superfícies urbanas – calçadas, shoppings, corredores de metrôs, halls de estações, praias – agitações em coro que respondem às mesmas lógicas secretas que geram, não são nada mais que figuras dançantes que se relacionam basicamente através de sua presença física imediata.

Na prática, todas as tradições microsociológicas não têm feito nada além de estudar jogos efêmeros, indivíduos traçando filigranas no espaço, intersecções previstas ou involuntárias, atividades de corpo-espaço-tempo-energia, cuja referência – explícita ou não – era a dança. Dificilmente poderia ser encontrada metáfora melhor do que essa para o objeto de estudo daquilo que o interacionismo e etnografia da comunicação têm chamado de situacionismo, ou seja, que se relaciona com situações sociais no território fisicamente delimitado, protagonizadas por indivíduos que compartilham o mesmo campo perceptivo. Afinal de contas, a dança nada mais é do que a encenação de uma ordem baseada em aparecer, em gesticular para ou com outras pessoas, dentro de um espaço que se manifesta e se torna visível jogando na medida do possível com nossa própria aparência e com a de outras pessoas.

Por exemplo, a utilização do espaço público por um pedestre solitário também implica uma aplicação temporária de energia dentro do espaço em que ocorre, ou seja, uma seqüência diacrônica de pontos transitórios, e não a figura formada por esses pontos em um espaço supostamente sincrônico. Andar é substituir uma série espacial de pontos por uma articulação temporária de lugares. Onde antes havia um gráfico, há agora uma operação, uma passagem, um trânsito.

A atividade do bailarino expressa de forma imbatível o trabalho de apropriação ao qual o usuário do espaço público está sujeito. É importante ter em mente que, a apropriação, de acordo com Marx é algo muito diferente de propriedade. É mais, de certo modo, seu exato oposto. O apropriado é o que se põe a serviço das necessidades humanas, o que é próprio, adequado. A noção marxista de apropriação, retomada, como se sabe, mais tarde por Lefebvre, aproxima-se do que Leibnitz sugere como ocupação. E, o que ocupa um espaço, senão um corpo? Não um corpo abstrato, a corporeidade como conceito, mas um corpo específico, concreto, definido, esse corpo que gesticula e, ao fazê-lo, direciona, pontua, rodeia, dá voltas em torno de si mesmo e de outros corpos e objetos.

O corpo que está localizado no espaço, que tem diante de si e ao seu redor uma objetividade, que se constitui como epicentro desse espaço, como núcleo de onde partem os raios que definem seu entorno, que reconhece contornos, que, a cada vez, instaura periferias mais remotas, corpo que busca com o olhar ou às cegas. Às vezes, encontra.

Manuel Delgado é professor de antropologia e membro do grupo de investigação Etnografía de los Espacios Públicos do Institut Catalá d’Antropologia. Teórico sobre a construção da etnicidade e das estratégias de exclusão em centros urbanos.