Estados transitórios e coletivos

Não há nenhum lado bom por onde começar, é preciso começar por todos os lados ao mesmo tempo. Mas toda grande criação na área da vida, parece-nos logicamente impossível antes e às vezes até depois de seu aparecimento. (Edgar Morin)

Nessa nada fácil tarefa de investigar como a pesquisa se dá em dança, não foram poucas nem simples as questões que se fizeram presentes nessa parceria entre bolsistas, residentes, orientadores, consultoria e coordenação de dança no programa desenvolvido na Casa Hoffmann – Centro de Estudos do Movimento em 2006 [1] . Participar dessa nova organização foi uma experiência que me fez refletir e aprender a lidar com algumas coisas que “para mim”, até então, ficavam meio abstratas e que vejo, hoje, tão implicadas. São duas: a primeira é a idéia de criar em rede num trabalho coletivo; a segunda é perceber a atuação do tempo na criação.

Mais do que construir trabalhos individuais, as produções dos bolsistas e residentes foram aparecendo como resultado do entrecruzamento de idéias e experiências coletivas e como um sistema [2] que se auto-organizou ao longo do tempo. Tempo!!! O tempo, que se instala e se corporifica na pesquisa, tornando-se um espaço concreto e aberto, para que a criação de fato aconteça. Um tempo de experimentação de que o pesquisador necessita para que a produção de conhecimento aconteça no corpo. Tempo que se torna processo e que guarda o desconhecido e o que não pode ser previamente planejado. Tempo em ação, em espaço, que possibilita a dilatação da idéia e dos seus sentidos, que acolhe as questões e promove a rede de relações, o aparecimento de possibilidades de escolha e o aprofundamento de certos caminhos e de outros não. O tempo que permite o reconhecimento do que permanece, mas também do que modifica e transforma.

O programa da Casa Hoffmann investe no processo colaborativo que busca compreender como o artista formula sua idéia e como esta pode existir e estabelecer relações com o mundo. Nisso e em “tantas” outras coisas, a orientação de Fabiana Britto, consultora do programa, foi de extrema importância. Ela traz de início a discussão sobre a idéia que o artista formula um problema e busca pelos mais possíveis e diversos modos por resolvê-lo. Problema que é questão, inquietação, dúvida, algo que promove ações e estratégias para investigar. Questão que necessariamente não está no início do processo, sendo a “causa” para criação, mas que, liberta de uma ordem, pode estar em todo lugar, permeando e se metamorfoseando durante o fazer artístico.

Resolver um problema? Sim. Porém, mais no sentido de problematizar algo situado no corpo e, de preferência – por estar se falando de arte – que procure se colocar como uma informação diferenciada no mundo, tirando a idéia que se pretende elaborar, do senso comum, dos lugares já vistos e feitos. Não existe “melhor” ou “pior” na criação, mas existem sim modos mais ou menos eficazes de elaboração dos argumentos em dança. Existem maneiras mais coerentes que outras, quando se pretendem dilatar os significados e olhares sobre as coisas a partir da promoção de “soluções” provisórias aos problemas levantados para dar a continuidade às reflexões e história das questões.

Quantas vezes temos uma idéia “genial” e quando queremos organizá-la, no entanto, ainda usamos procedimentos que não condizem com essa idéia e que, pior, a tornam mais frágil e pobre. Criar, na prática desse programa, passa a ser um atento estado coletivo de percepção das relações e principalmente das desestabilizações dos velhos conceitos que nortearam por muito tempo nossas danças e criações. Sabemos que a vontade de tratar de coisas da contemporaneidade é grande; no entanto, construir modos de criar que tenham coerência com essas questões é que é, foi e continuará sendo o grande desafio e que se apresentou como um “bom” campo de tensões. Como transformar nosso modo de criação? Como criar novos procedimentos para tratarmos do que realmente interessa? Como estar aberto para correr o risco de não usar “fórmulas” mais rápidas e conhecidas de criação?

Nosso ambiente artístico em Curitiba não contempla muitos pesquisadores e, para falar com franqueza, não é pecado algum assumirmos, quando preciso, a necessidade de aprender a lidar com esses outros modos de olhar e fazer pesquisa. Falo em aprender sim. Pesquisa em dança se aprende. É um aprendizado que trata de como criadores que pretendemos ser adquirimos competências para fazer alguma coisa, como criar. E isso é produzir conhecimento. Obviamente, um conhecimento que não está ligado à imitação, a uma fórmula, e por isso se constrói dinamicamente na indissociável relação entre teoria e prática. Não temos um manual de pesquisa em dança, em que se abra e se ache qual é a idéia que se quer colocar no mundo, indicando quais serão os procedimentos que devem ser usados para comunicar de uma forma eficaz essa idéia. Ainda bem! No entanto, isso não significa que não existam modos de pensar e agir que possam colaborar para tornar a criação mais coerente e conectada com as questões do ambiente em que ela se encontra.

Conectividade, organização, permanência, estrutura e complexidade foram “conceitos em ação”, parâmetros sistêmicos [3] , que muito nos acompanharam na busca de certos entendimentos. Não dá mais para dissociar elementos da criação, nem predizer o que vai ser mais importante, ou o que vem antes ou depois. O processo de criação como sistema se constrói justamente no estudo do conjunto das relações nada lineares que acontecem e de como o artista estabelece possíveis conexões para estruturar e colocar no mundo sua idéia. E isso é um tipo de organização. Um modo específico que cada artista configura e que inclui as relações e conexões que definem seu trabalho como um todo. Todo que não é produto acabado, nem descolado do seu processo. Ele, o produto artístico, carrega esse processo sempre em andamento, sem fim e aberto às novas informações que são geradas tanto internas ao próprio processo de criação ou pela relação instável com o ambiente. Instabilidades e novas informações que, de diversas maneiras, reorganizam o processo, tornando-o cada vez mais vivo.

O ato criativo, segundo Jorge Albuquerque, é um processo decorrente de uma crise [4] , uma crise denotativa de um alto nível de complexidade viva. A crise num sistema é a transição entre um nível de estabilidade e outro. A arte é feita dessas crises, dessas instabilidades e transições. No entanto, parece que a busca – dos artistas – muitas vezes opta pela estabilidade, busca-se o lugar como porto; porém, o desequilibro e instabilidades são inevitáveis e modificam, transformam essa “forma” a que se tenta apegar. E o que fica é dificuldade de viver o que transita, o que não tem lugar fixo, de viver os estados caóticos e desorganizados, sem garantia e controle de tudo o que acontece. Esse aspecto pode ser uma das questões que aponto para refletirmos um o nosso modo de criar e olhar para nossa vida. Como tirar as palavras “crise”, “imprevisto”, “acaso”, “caos”, “incerteza” das nossas falas, teorias e dos livros que tratam de contemporaneidade e realmente incorporá-las no exercício do dia a dia, nos micro e macro espaços da arte? Como integrá-las em procedimentos e metodologias para criação?

A Casa Hoffmann se apresenta como um lugar aberto para se experimentar com inquietude e também sabor e prazer, esse universo em crise, chamado de pesquisa em dança. E com um detalhe diferencial: isso pode ser realizado de uma forma coletiva. Não foram poucas as vezes em que as funções de orientação, bolsistas e residentes foram diluídas, invertidas, modificadas no decorrer, apontando para um arranjo de co-responsabilidades. O singular como parte de um todo se construiu na relação e a existência das idéias se fez mais importante do que assinatura personificada delas. A pesquisa não é só de um artista, nem só de outro, nem do orientador. A criação foi carregando a história desse lugar… de todos os cursos, das discussões, da consultoria, da visita dos artistas/professores, do grupo de estudos, do diálogo com as regionais, das diferenças compartilhadas e as pouco entendidas, do Dança Cidade, da mostra de vídeos, dos “problemas” não resolvidos, dos passantes curiosos no Dança de Portas Abertas, do barulho de passos nas escadas da arquitetura vazada da Casa, de cada um e de todos, muito mais que a soma das partes.

A dança, é portanto, um produto histórico da ação humana: cada corpo constrói uma dança própria que, no entanto, é relativa ao conjunto de conhecimentos disponibilizados em cada circunstancia histórica e aos padrões associativos que o corpo desenvolve para estabelecer as correlações com o mundo – outros corpos, outras danças, outros conhecimentos. E a história da dança é uma narrativa das coerências instauradas através dessas suas correlações. [5]

Notas:

[1] Programa criado por Marila Velloso, coordenadora de dança da FFC, com consultoria de Fabiana Britto. Mais informações sobre o programa e o edital 2007, ver site www.fccdigital.com.br.

[2] “Sistema” aqui considerado na definição de Avenir Uyemov compreendido por Jorge Albuquerque: “(…) um agregado m de coisas é um sistema quando, por definição desenvolve-se um conjunto de relações entre os elementos dos agregados, de tal forma que venham partilhar propriedades”.

[3] Cf. BRITTO, Fabiana. Mecanismos de comunicação entre o corpo e a dança: parâmetros para um a história contemporânea. Tese de Doutorado. São Paulo, 2002. PUC-SP.

[4] Jorge Albuquerque discute crise no seu ensaio “Formas de conhecimento – arte e ciência”. Revista Repertório Teatro e Dança, Salvador, ano 3, nº 4, 2001.

[5] Britto, Fabiana. Op. cit. p. 13 e 14.