Estopim do moderno | The blast of modern

Em face das comemorações dos 450 anos de São Paulo, não há como não nos lembrarmos de um dos acontecimentos que mais marcaram os festejos do 400° aniversário da cidade e que foi extremamente importante para o desenvolvimento da dança no país: o Ballet do IV Centenário. Além de colocar a dança pela primeira vez em destaque nos noticiários, celebrando-a como grande acontecimento artístico, a sua fundação ainda representaria o início do profissionalismo na dança em São Paulo.Translation by Sarah Hyde, Ccaps Translation and Localization.

Criada em 1953 pela comissão dos festejos do IV Centenário da fundação de São Paulo, a companhia foi idealizada nos moldes estabelecidos pelo Ballets Russes de Diaghilev, não só no sentido da sua concepção artística, mas também na própria organização estrutural, visto que a proposta era criar uma companhia de grande porte que conservasse severamente as bases técnicas da dança acadêmica (clássica) internacional e que, ao mesmo tempo, tivesse um repertório de caráter moderno. No entanto, tratando-se de um empreendimento realizado no Brasil, deveria contar com a participação de uma maioria de integrantes brasileiros (de preferência da própria cidade de São Paulo) e ter em seu repertório algumas coreografias que incluíssem elementos do folclore nacional. Além disso, o projeto – de forma semelhante à companhia de Diaghilev – incluía a colaboração de alguns dos mais importantes compositores e artistas plásticos modernos brasileiros de renome como: Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Clóvis Graciano, Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade Filho, Heitor dos Prazeres, Toti Scialoja, Santa Rosa, Burle-Marx, Eduardo Anahory, Aldo Calvo, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Souza Lima e Villa-Lobos – que criariam músicas, cenários e figurinos para o balé.

Para exercer as funções de diretor artístico e coreógrafo, a Comissão do IV Centenário escolheu Aurel von Milloss (1906-1988), por ser um renomado coreógrafo na época e por ser também mâitre de Ballet – o que era de suprema importância em um projeto que visava criar a primeira companhia profissional de dança em São Paulo, que seria formada em grande parte por bailarinos ainda inexperientes. Por outro lado, a escolha por Milloss deveu-se à sua formação em dança moderna, visto que estudou com Rudolf von Laban, no final dos anos 1920 na Alemanha.

Cabe ressaltar que a maioria dos integrantes do corpo de baile tinha entre 14 e 17 anos, ou seja, que era composto em boa parte por meninas e moças que tiveram o balé como complemento de educação, e que ainda não tinham nenhuma experiência profissional. Assim, antes de começar a desenvolver o trabalho coreográfico com a companhia, Milloss teve que se dedicar nos primeiros meses a educar tecnicamente e artisticamente o elenco, a fim de que este viesse a ter condições de corresponder às suas exigências.

Em virtude da proposta ambiciosa do Ballet do IV Centenário, o trabalho realizado foi feito de modo intensivo, perfazendo em média um total de oito horas de trabalho diário, que eram distribuídas da seguinte forma: de segunda a sábado – e, às vezes, aos domingos – os bailarinos faziam duas aulas por dia (uma de manhã e a outra à tarde), que duravam cerca de duas horas, sendo seguidas de mais duas horas de ensaios em cada período.

Dono de um senso de espacialidade e de musicalidade muito forte, em virtude de sua formação com Laban e de sua formação como maestro, Milloss procurou desenvolver essas qualidades em seus bailarinos. Segundo alguns ex-integrantes da companhia, antes de dar a seqüência de passos propriamente dita, ele sempre ensinava o percurso do movimento no espaço, para que cada um compreendesse o seu trajeto, percebesse e mantivesse a distância necessária em relação ao outro. Neste sentido, o seu trabalho era tão preciso, que ele conseguia ensaiar separadamente os grupos, juntando-os, posteriormente, sem que sequer houvesse uma batida entre um elemento e outro. Já em relação à musicalidade ele ensinou os bailarinos a contar e a compreender a estrutura musical de uma obra, visto que constantemente utilizava contagens musicais irregulares, exigindo esforço até mesmo da orquestra.

Por outro lado, no seu trabalho como diretor e coreógrafo também havia preocupação em fazer com que o elenco amadurecesse artística e culturalmente, incentivando o grupo a visitar exposições de artes plásticas, a desenvolver atividades nos ateliês de cenografia, a ir a concertos. Além disso, ele procurava, durante o próprio processo de trabalho, transmitir parte do seu universo cultural, reunindo os bailarinos antes de começar a montagem das coreografias, fazendo-os observar a estrutura da música, fornecendo-lhes dados sobre o compositor e a época em que tinha sido composta, falando sobre quem faria o cenário e os figurinos e, por fim, explicando a proposta do balé, a fim de enriquecer os conhecimentos dos integrantes do grupo e ao mesmo tempo extrair o máximo de suas interpretações. De acordo com a bailarina Ady Addor, tal método representou um avanço, no sentido que, no Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro a maioria dos bailarinos dançava balés de repertório, como Copélia, desconhecendo o enredo, atendo-se somente às questões técnicas, sem se preocupar com a parte interpretativa.

Uma das maiores exigências de Milloss, sem dúvida, dizia respeito à interpretação de seus bailarinos, solicitando que colaborassem ativamente neste sentido e dessem sua marca pessoal ao papel, sem que, no entanto, fugissem da coreografia.

Não bastasse todo esse preparo técnico e artístico, os 50 bailarinos da companhia ainda puderam desfrutar da experiência de trabalhar contando com a mais completa infra-estrutura, recebendo bons salários e tendo o apoio de uma equipe que englobava uma oficina de costura e de cenotécnica, uma orquestra sinfônica, além da participação dos artistas citados.

Ao estrear em 6 de novembro de 1954 no Ginásio do Pacaembú, o impacto não poderia ter sido maior, apesar das condições inadequadas que o espaço oferecia. Mas seria no Teatro Municipal do Rio de Janeiro que o Ballet do IV Centenário exibiria seu esplendor apresentando todo seu repertório, composto por mais de dezesseis coreografias, sendo cinco de temática brasileira.

Infelizmente, por falta de suporte financeiro, o Ballet do IV Centenário sobreviveu somente até dezembro de 1955, perdendo, antes disso, já no início do ano, a presença de Aurel von Milloss. Apesar deste coreógrafo e mâitre de ballet ter trabalhado apenas durante dois anos no Brasil, foi inegável a sua importância no desenvolvimento da nossa dança, visto que ele nos deu um modelo de profissionalismo inexistente até mesmo no Rio de Janeiro. Com isso, foram os seus ex-discípulos, que lutaram, no decorrer da década de 50 e de 60, para criar condições para que a dança profissional sobrevivesse em São Paulo, fundando alguns grupos como o Balé do Museu de Arte de São Paulo, o Balé do Teatro Cultura Artística, os Amigos da Dança, o Ballet Society.

Somente em 1968, com a criação do Corpo de Baile Municipal e,em 1972, com a fundação do Ballet Stagium, a dança profissional em São Paulo conseguiria assumir sua forma definitiva. Apesar da frustração pelo fim do Ballet do IV Centenário e das dificuldades enormes para produzir um espetáculo, na metade da década de 50, a dança brasileira começou a contar com profissionais como Iolanda Verdier, Edith Pudelko, Eduardo Sucena, Ady Addor, Ismael Guiser, Márika Gidali, Mariza Magalhães, Neyde Rossi, Ruth Rachou, Yara von Lindenau, Yoko Okada; que além de lutar em prol da dança, passaram essa experiência para as gerações seguintes.

Por fim, o Ballet do IV Centenário ainda deixou um saldo positivo por ter conseguido fazer uma mediação entre o balé clássico e a dança moderna, abrindo espaço para que, gradativamente, a dança moderna começasse a se desenvolver no país, sobretudo, na cidade de São Paulo.

*Atriz, bailarina, professora e pesquisadora na área de dança. Mestre em Artes Corporais pela Unicamp, doutora em Artes Cênicas pela ECA/USP.

In celebration of São Paulo’s 450 years, there is no way to forget one of the events that marked most the commemorations for the 400th anniversary of the city, one that was extremely important for the development of dance in the country: the IV Centennial Ballet. In addition to placing dance in news spotlight for the first time, celebrating it as a great artistic event, the ballet’s foundation also represented the origin of professionalism in São Paulo’s dance scene.

Created in 1953 by the IV Centennial of São Paulo Commemoration Commission, the company was designed from models established by Diaghilev’s Ballets Russes, not only in the sense of its artistic conception but also in the sense of its structural organization, given that the proposal was to create a large company that would strictly conserve the technical foundation of international academic (classic) dance and that, at the same time, had a repertoire of modern character. However, as a venture undertaken in Brazil, it would require that the majority of members be Brazilians (preferably from the city of São Paulo) and would need to have in its repertoire some choreographies that included elements of national folklore. In addition, the project – similar to Diaghilev’s company – had the collaboration of some of the most important and renown Brazilian composers and visual artists of modern times, including: Cândido Portinari, Di Cavalcanti, Lasar Segall, Clóvis Graciano, Flávio de Carvalho, Oswald de Andrade Filho, Heitor dos Prazeres, Toti Scialoja, Santa Rosa, Burle-Marx, Eduardo Anahory, Aldo Calvo, Camargo Guarnieri, Francisco Mignone, Souza Lima and Villa-Lobos – who created music, stage sets and costumes for ballet.

To exercise the functions of artistic director and choreographer, the IV Centennial Commission chose Aurel von Milloss (1906-1988), a renown choreographer of the period and a mâitre de Ballet – which was of supreme importance for a project that aimed to create the first professional dance company in São Paulo, one that would be largely made up of inexperienced dancers. The decision to choose Milloss was also based on his modern dance training. He had studied with Rudolf von Laban in Germany in the late 1920’s.

It is important to point out that the majority of the members of the ballet group were between 14 and 17 years old. In other words, the group was composed largely of girls and young women who took ballet as a complement to their education and who still had no professional experience. Consequently, before beginning to develop choreographic work with the company, Milloss had to dedicate the first months to providing his cast with a technical and artistic education so that it would have the conditions to meet his requirements.

Because of the IV Centennial Ballet’s ambitious proposal, the work was carried out intensely, reaching a daily average total of eight hours of work, distributed in the following manner: from Monday to Saturday – and sometimes Sunday – the dancers attended two classes per day (one in the morning and another in the afternoon) that lasted approximately two hours. These classes were then followed by two more hours of rehearsals.

Gifted with a strong sense of spatiality and musicality because of his education at Laban and because of his experience as a maestro, Milloss sought to develop these qualities in his dancers. According to some former members of the company, before teaching a sequence of steps, Milloss always showed the dancers the course of the movement in space so that each one would perceive and maintain the necessary distance in relation to the other dancers. In this sense, his work was so precise that he was able to hold separate rehearsals for the groups, joining the dancers later without the separate groups having ever even brushed shoulders. Using his musical talents, he taught the dancers to count and understand the musical structure of a performance, since he constantly used irregular musical scores that required the special efforts of even the orchestra.

On the other hand, in his work as director and choreographer there was also a concern with the artistic and cultural maturation of the cast. He encouraged the group to visit art exhibits, develop activities in the set design studios and attend concerts. He also sought to transmit a part of his cultural universe during the work process, gathering the dancers before the choreographies were mounted, teaching them to observe the structure of music, supplying them with information about the composer and the period, speaking about who would create the set and the costumes and, finally, explaining the concept and proposal of ballet in order to enrich the understanding of the group’s members while at the same time extracting the maximum from their interpretations. According to dancer Ady Addor, such a method represented an advance in the sense that in the Rio de Janeiro Theatre Dance Group, the majority of the dancers danced the repertoire ballet, Copélia, without understanding the plot. In other words, they paid attention only to the technical aspects without concern for the interpretive part.

One of the greatest demands that Milloss had of his dancers dealt with interpretation. He requested that they actively collaborate by leaving their personal mark on the paper, but without diverging from the choreography.

As if all of this technical and artistic preparation were not enough, the 50 company dancers could still enjoy the experience of working with the most complete infra-structure, received good salaries and had the support of a team of costume and sets, a symphonic orchestra and benefited from the participation of the cited artists.

Upon its debut on November 6, 1954 in the Pacaembú Gymnasium, the impact of the performance could not have been greater, despite the inadequate conditions that the space offered. However, it was in the Rio de Janeiro Municipal Theatre that the IV Centennial Ballet demonstrated its full splendor, presenting an entire repertoire of more than 16 choreographies, five with a Brazilian theme.

Unfortunately, due to a lack of financial support, the IV Centennial Ballet survived only until December 1995, losing the presence of Aurel von Milloss earlier that same year. Despite this choreography and the fact that the mâitre de ballet had only worked for two years in Brazil, his importance for the development of our dance is undeniable, since he gave us a model of professionalism that did not exist even in Rio de Janeiro. His disciples later struggled to create the survival conditions for professional dance in São Paulo during the 1950’s and 1960’s, founding groups such as the Ballet of the São Paulo Museum of Art, the Ballet of the Theatre of Artistic Culture, the Friends of Dance and the Ballet Society.

It was only in 1968, with the creation of the Municipal Dance Group, and in 1972, with the foundation of Ballet Stagium, that professional dance in São Paulo was able to assume is definitive form. Despite the frustrations concerning the end of the IV Centennial Ballet and the enormous difficulties faced to produce a performance, in the mid 1950’s, Brazilian dance began to attract the participation of professionals such as Iolanda Verdier, Edith Pudelko, Eduardo Sucena, Ady Addor, Ismael Guiser, Márika Gidali, Mariza Magalhães, Neyde Rossi, Ruth Rachou, Yara von Lindenau and Yoko Okada. In addition to working on behalf of dance, they passed their experience on to subsequent generations. The IV Centennial Ballet left a positive mark because it repositioned balance between classical ballet and modern dance, clearing a space for the gradual development of modern dance in the country, and especially in São Paulo.

*Actress, dancer, professor and researcher in the area of dance. Guimarães has a master’s degree in Corporal Arts from the State University of Campinas (Unicamp), and a PhD in Scenic Arts from ECA – University of São Paulo.