Ética da cooperação cultural internacional

Texto e tradução oferecidos pelo Instituto Goethe

Na formulação do tema “Ética da cooperação cultural internacional” são citados fatores contraditórios: por um lado transparece a possibilidade de descrever a cooperação como um fator de equilíbrio no âmbito do dinamismo cultural, por outro lado descreve-se um mercado que é limitado pela concentração dos eventos em poucos tipos e pólos de cultura. Ao mesmo tempo constata-se que a cooperação internacional pode promover a confirmação recíproca de culturas diferentes e “um contato marcado pela tolerância entre várias visões do mundo”. Dessa maneira somos confrontados com as grandes tarefas de uma “cooperação cultural internacional” que dificilmente podem ser concebidas isoladamente, fora de suas circunstâncias sócio-políticas e condições econômicas. Nessa área surgiram num passado recente desenvolvimentos múltiplos e mudanças.

Permitam-me citar um texto de Ursula Zeller, da revista “Kulturaustausch” (2/03): “A política cultural e educacional externa avançou de uma atitude de concorrência e autoprojeção para um intercâmbio entre culturas em forma de diálogo baseado na igualdade e no respeito mútuo. Ela representa um esforço de entendimento dirigido para dentro e para fora. Tanto assim que se transformou num elemento natural e indispensável de uma política exterior abrangente: trata-se de mostrar, no exterior, a diversidade cultural de uma Alemanha federativa e democrática e, simultaneamente, promover dentro do próprio país uma atitude de compreensão e abertura para outras culturas. Partindo de um conceito de cultura que abrange todos os valores espirituais, a cooperação compreende tanto eventos culturais em sentido estrito quanto medidas que buscam apoiar o empenho pela construção de uma sociedade civil em culturas diversas… Em vista das múltiplas possibilidades que oferece, o intercâmbio cultural é hoje muito mais do que um simples enfeite da política exterior ou um programa de números culturais para acompanhar eventos políticos. Ele é muito mais o impulsionador e a força motriz de um processo que visa a criação de um ambiente de confiança e compreensão”.

Tais palavras soam como a descrição de um ideal que, lamentavelmente, não reflete a prática usual no dia-a-dia da cooperação internacional. No mesmo número da revista “Kulturaustausch” podemos ler num texto de Ludwig Laher que “a produção cultural se transformou, há muito tempo, num importante fator econômico, sobretudo o comércio com serviços de natureza artística e cultural. Pela porta dos fundos do direito de concorrência… estão sendo atendidos interesses econômicos.” Laher cita um representante da Comissão Européia que se referiu à indústria cultural como a um “big business” como qualquer outro orientado pela “competitividade e produtividade alta”. Prosseguindo citou como exemplo a produção diversificada de livros na Escandinávia que, com as estruturas obsoletas de um setor protegido, constituiria um luxo em vista de seu mercado reduzido. O progresso artístico e o sucesso econômico não deveriam ser vistos como antagonistas, já que o mercado livre respeita o gosto da maioria como diretriz do desenvolvimento, além disso se colocaria hoje o selo da arte em muitos produtos apenas para justificar o direito a receber subvenções.

Esse exemplo mostra uma outra maneira de lidar com a cultura e a arte, uma realidade que influencia em grande parte também a cooperação internacional. Se quisermos formular uma ética da cooperação internacional será necessário esclarecer antes que os estados não podem furtar-se ao dever de promover a arte a cultura e de “criar e propiciar as condições básicas que garantam à arte aquela liberdade que é diametralmente oposta à liberdade do mercado” (Laher).

Analisando atentamente o desenvolvimento do intercâmbio e da cooperação cultural constata-se que houve de fato uma mudança para melhor. Não faz muito tempo que a “cooperação internacional” se resumia principalmente na exportação de objetos representativos da arte e da cultura nacionais, decidida e organizada por canais políticos, geralmente pelas embaixadas. Raramente procurava-se envolver nas decisões também os parceiros. Lembro-me de negociações árduas para o planejamento de eventos culturais, como por exemplo para o programa “Cidade Cultural da Europa Berlim 1988” ou para o festival “Teatro do Mundo” – ITI, em 1999 em Berlim, quando procuramos levar para a Alemanha projetos e programas que nós mesmos tínhamos escolhido, em vez de aceitar simplesmente as companhias oferecidas com certa determinação pelas respectivos órgãos estatais.

Claro que na direção oposta se procedia mais ou menos da mesma maneira. O que era enviado aos outros países dificilmente passava antes por uma análise da provável aceitação pelo país visitado. Por isso, muitos desses projetos careciam de repercussão, nem muito menos levavam a alguma forma de cooperação. Para essas iniciativas existiam – e continuam existindo – em alguns países fortes estruturas institucionais que, por ordem do ministério do exterior, ou em contato estreito com ele, e providos de recursos orçamentários próprios, apóiam sobretudo projetos de interesse nacional, funcionando na verdade como instrumentos de “política exterior cultural”. Sem querer entrar na questão do mérito de seus resultados, pode se afirmar, contudo, que nesse contexto são raros os casos de verdadeira “cooperação internacional”. Posso citar como exemplo o esforço da AFAA francesa que, depois da queda do muro entre o Leste e o Oeste da Europa, mandou vários grupos de dança e coreógrafos para os países ex-comunistas em que, além do balé clássico, a dança contemporânea era praticamente desconhecida. Como essas turnês eram quase totalmente bancadas pelo estado francês, eram aceitas de braços abertos pelos organizadores nesses países de poucos recursos financeiros. Certamente houve uma transmissão de informações sobre a dança moderna, mas o processo era unilateral, não dando chances a artistas de outros países que não primam pela mesma generosidade financeira em relação a seus grupos de dança. Durante muito tempo via-se em alguns países nada além de pequenos epígonos dos franceses. Chamaríamos iniciativas como essa também de cooperação, e seria possível chegar por meio delas a uma “ética”?

Os acordos oficiais de cooperação celebrados entre países e cidades muitas vezes não contribuíram realmente para essa finalidade, visando em muitos casos mais “o mercado”. Mas ultimamente mudaram em muitos países também os conteúdos e as formas de arte. Já não é tão óbvio e tão comum que o espírito da época se manifeste em “grandes projetos” ou nos programas das grandes instituições. Hoje, os artistas preferem as pequenas formas e os espaços reduzidos, seja por razões financeiras seja porque procuram aproximar-se mais do público. Ao mesmo tempo aumentou muito a mobilidade, não só na Europa. Com isso, os artistas, seus empresários e seus produtores começam a perceber que a globalização progressiva faz com que os problemas se pareçam, independentemente das fronteiras. A procura por expressão e por formas adequadas já não fica restrita ao território nacional. Aumenta assim o interesse de uns pelos outros, o que enseja, por sua vez, as oportunidades de cooperação. Para esse tipo de cooperação, as estruturas políticas tradicionais perderam a importância; elas interessam quando muito como fontes de recursos financeiros, não como agentes. Essa função passa a ser assumida por novas estruturas que possibilitam novas parcerias e iniciativas individuais; normalmente se fala delas como “redes”. Pode tratar-se de parcerias das mais diversas dimensões que, formadas a partir de um ponto de partida ou de um objetivo comum, praticam a verdadeira cooperação.

Naturalmente, existem também dificuldades e resistências. Há alguns anos surgiu de uma parceria de organizadores e produtores da Europa e dos Estados Unidos a idéia de um “festival” que deveria transmitir uma imagem do teatro jovem europeu; seria, em outras palavras, a apresentação dos resultados da longa influência da arte jovem norte-americana sobre a Europa, basta citar o grupo Wooster, Richard Forman, Robert Wilson, Merce Cunningham, etc.

A tentativa de definir o programa já provocou na fase preparatória acusações mútuas de “intervenção”. O projeto se revelou totalmente inviável quando começou o rateio dos recursos financeiros que deveriam sair dos orçamentos nacionais. De repente, nenhum governo estava disposto a participar do financiamento de um programa conjunto – cada país preferiu a sua própria mostra em Nova York. Não havia nenhuma chance de uma cooperação entre parceiros.

O vento contrário soprou também em outros níveis. Quando um grupo de agentes de vários países europeus que comungavam das mesmas idéias se juntaram em sociedades de organização e produção para tornar possível pela cooperação a realização de projetos artísticos especiais, levantou-se repetidamente a acusação de que esses parceiros formavam uma máfia poderosa que dominaria a tomada de decisões sobre os projetos e ou sobre a escolha dos artistas.

A verdadeira cooperação precisa ser aprendida e ensaiada também ao nível dos artistas e produtores. É necessário perder o medo da “intervenção” e também o medo de sair perdendo com a união. Antes da queda do muro entre o Leste e o Oeste observava-se com certa freqüência que agentes isolados, ligados às atividades artísticas nos países do Leste, guardavam ciosamente para si as informações vantajosas sobre estruturas de organização, financiamento e artes, obtidas por eles a duras penas. Nem enxergavam as oportunidades que uma eventual cooperação lhes poderia trazer. Há uma bela música do grupo de teatro infantil berlinense “Grips” que diz: “Um não é nenhum, dois são mais que um – mas quando formos três, os outros também participarão.”

Apesar de todos os problemas fica claro que, nos últimos anos, as pequenas e as grandes redes e associações de produção conseguiram mudar profundamente a cooperação internacional e, em conseqüência disso, mudaram também as estruturas políticas e as formas de incentivo. Hoje existem na União Européia programas de promoção da cultura, sobretudo o programa “Cultura 2000”, que incentivam expressamente o trabalho das redes. Especialmente bem-sucedido revela-se, nesse contexto, o “Theorem”, uma associação de teatros e produtores jovens do Oeste e ex-Leste da Europa, fundada em 1998 como projeto “Avignon – Cidade Cultural da Europa 2000”, que já conseguiu obter duas prorrogações da Comissão Européia. No primeiro encontro, organizado de forma quase aleatória com muitos participantes do Oeste e do Leste, predominavam atitudes de desconfiança e a retraimento. Circulavam preconceitos do tipo: “os parceiros ricos do Oeste vão comprar os pobres do Leste”, ou de outro lado: “a arte do Leste nem é tão contemporânea e interessante”.

Foi necessário percorrer pacientemente um longo caminho de aproximação, empreender muitas viagens, realizar encontros, debates, conversações e negociações, até que finalmente começasse concretizar-se uma das experiências de cooperação internacional que, a meu ver, é uma das formas de maior êxito. Da reflexão contínua sobre as possibilidades da ação conjunta e sobre as vantagens do apoio mútuo nasceu um número impressionante de excelentes produções de teatro e de dança, aplaudidas em toda parte por um público crescente que está convencido da qualidade e da pujança do teatro atual. Ao lado disso foram criados também programas de aperfeiçoamento técnico e organizacional e estruturas de política cultural adequadas ao nosso tempo. Os frutos mais importantes, porém, são a confiança e a amizade propiciadas por um melhor conhecimento mútuo que ultrapassou muitas fronteiras e que levou a um entendimento genuíno e ao desejo de cooperar.

Ao lado da “Theorem” existe um grande número de outras redes e parcerias, também fora do âmbito europeu, que mostram um ótimo desempenho. Surgiram inclusive grupos de redes e outras estruturas supranacionais, como por exemplo a “European Cultural Foundation” ou o “European Forum for the Arts and Heritage”, que se apresentam como interlocutores no diálogo e nas negociações com instituições nacionais e européias, fomentando e agilizando o desenvolvimento de novas estratégias nas atividades culturais e ampliando ainda mais as redes de cooperação.

As experiências que acabo de descrever e os exemplos que conheço sobretudo no contexto europeu demonstram que a cooperação cultural funciona como um “fator de equilíbrio” que revela as chances de criar uma alternativa ao dinamismo globalizado orientado apenas mo “mercado”, sem que seja necessária uma “intervenção”. Constata-se, certamente, uma mudança dos “paradigmas de orientação”, uma vez que o eixo se deslocou da exportação de produtos culturais representativos para uma troca diversificada de arte e cultura nos mais diversos níveis, um processo acaba reforçando a própria diversidade. Com a mudança dos agentes mudaram também as perspectivas: a cooperação passou a ser vista em termos mundiais. A formação de grandes blocos supranacionais não me parece levar a grandes a transformações substanciais nesse panorama, apesar do surgimento de determinadas áreas de concentração provocadas por programas de financiamento voltados, por exemplo, para dentro da União Européia. Fruto de uma mobilidade maior, o interesse pela cultura e pela arte no mundo inteiro opõe-se a esse tipo de limitação. A prova disso vemos em numerosos festivais, exposições e eventos em que se pratica hoje, por exemplo, a cooperação direta entre produtores de teatro argentinos e alemães ou entre dançarinos e coreógrafos brasileiros e alemães. Devemos ter o cuidado de evitar que os programas e as medidas de blocos supranacionais interfiram nesse processo com a introdução de regras restritivas, em vez de promover a ampliação do leque de oportunidades.

“O diálogo intercultural como elemento da política cultural externa deixou de estar a serviço da expansão de uma cultura universal; a política baseia-se hoje no interesse convincente pelos outros, por seu maneira diferente de ser, e na nossa capacidade de apreensão do outro. A diversidade cultural não é um peso, pelo contrário, ela desperta curiosidade. Sem ela haveria menos esperança num futuro comum … Hoje conta-se em muitas sociedades com a coexistência de tradição e modernidade, e o seu equilíbrio produtivo é visto como uma chance …”, escreveu Hilmar Hoffmann em “Alles nur Theater” (DuMont, 2004).

O verdadeiro “intercâmbio cultural” precisa levar em consideração as respectivas condições locais, senão acaba contribuindo para a redução da diversidade cultural. A UNESCO protege essa diversidade. Em seu plano de ação de Estocolmo está escrito: “A criatividade cultural é a fonte do progresso humano. e a diversidade cultural, que é um bem da humanidade a ser protegido, é um fator decisivo de qualquer desenvolvimento … O equilíbrio entre a cultura e o desenvolvimento, o apreço pelas identidades culturais, a tolerância com as diferenças culturais diante do pano de fundo de valores democráticos multiformes e o respeito pela unidade territorial e soberania nacional fazem parte dos requisitos básicos de uma paz duradoura e justa.”

Um apelo da EFAH declara: “We have learned to share what we have in common by celebrating our differences.” Essa atitude poderia tornar-se a expressão da ética de uma cooperação cultural internacional.

*Nele Hertling é diretora do Programa Berlinense de Artistas do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico (DAAD); presidente do Conselho de Cultura Franco-Germânico e do Conselho de Artes; membro do grupo “Teatro” no Comitê de Consultoria Cultural junto à Comissão das Comunidades Européias (Bruxelas); foi diretora superintendente e comercial do Hebbel-Theater Berlin.