Eu ensino dança: Tatiana Leskova

No segundo texto da coluna ‘Eu ensino dança’, conversamos com a mestra Tatiana Leskova. Ela falou sobre o auge de sua academia, no Rio de Janeiro, a importância da técnica aprendida com aulas de balé clássico, a graduação em dança, a relação com Angel e Klauss Vianna e outros temas. Leia aqui a primeira coluna, uma entrevista com Ruth Rachou.

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Tatiana Leskova começou a dar aulas de balé no Rio de Janeiro nos anos 40, ainda com 20 e poucos anos. Por seu estúdio, em Copacabana, passaram milhares de alunos até 2002, quando encerrou as atividades. Durante 50 anos, dona Tania (como seus alunos a chamavam) formou inúmeras estrelas da história da dança brasileira e viu mudar a forma de ensiná-la.

Famosa por um temperamento duro com suas alunas – “sou muito exigente comigo mesma” – dona Tania acredita que, atualmente, há bailarinos de técnica muito boa, porém, sem personalidade tanto no Brasil quanto fora. E que o ensino de dança tem a ver, acima de tudo, com o amor por essa forma de arte. O idança conversou com a mestra em sua casa, em Ipanema, em meio a inúmeras fotos e documentos que registram os áureos tempos do balé clássico. Ela acabara de retornar de uma viagem à França, onde deu seu depoimento em uma homenagem à ex-professora, a russa Lubov Egorova. Leia a entrevista completa abaixo:

Idança – Gostaria que a senhora começasse nos contando como tudo começou, como a senhora começou a dar aulas…

Tatiana Leskova – Comecei a dar aula muito cedo, quando ainda estava no Ballets Russes, por intermédio de uma das primeiras-bailarinas da companhia. Nunca tinha dado aula e pensei que era muito fácil, então eu repetia os passos que conhecia. Comecei a dar aulas no Brasil em 1945/46, num Studio do dr. Bandeira. No início você ensina de maneira muito automática, eu era jovem, tinha 23 anos, você vai simplesmente repetir tudo o que você aprendeu. Depois é que você vai se aprofundando, vai estudar mais, ler mais, vai procurar passar o passo na sua essência, não apenas a parte técnica. E obviamente você tem livros que te ajudam. Em 1952 abri um estúdio, que fechei em 2002, depois de 50 anos. Passaram pela minha academia muitas bailarinas e bailarinos, a maior parte que está aqui e muitos que foram para fora do país. Passaram por lá nomes como Marcia Haydée, Beatriz Consuelo, Ivone Meyer e outros nomes que depois viraram solistas de companhias. Roberta Marquez fez aula comigo dos 13 aos 16 anos, quando ela entrou para o corpo de baile.

Todas elas faziam aula simultaneamente comigo e na Escola de Dança do Theatro Municipal para poder entrar no corpo de baile. Elas faziam aula todos os dias comigo. Naquela época, o corpo de baile terminava de trabalhar às 17h, e minha aula começava em Copacabana às 18h. Muitas vezes eu levava o pessoal no meu carro, pequenininho, levava quatro, às vezes, seis pessoas. O pessoal trabalhava muito naquela época. Eu tive uma sorte pois quando você tem bons alunos, com talento, você obviamente produz bons bailarinos. Não acho que um professor pode criar talentos, o talento já vem na pessoa. Você pode influenciar, desenvolver, mostrar um caminho, ensinar um pouco da história da dança.

Acho que comecei mesmo a me aprofundar no ensino da dança depois que parei de dançar porque aí sim pude me dedicar mais. Como eu não dançava mais, comecei a dissecar mais os passos. Foi um momento difícil quando parei de dançar, tinha operado o joelho. Era 1964, eu estava com 43 anos, para mim é uma boa hora para parar de dançar. Depois disso nosso rendimento vai diminuindo. Eu parei na minha melhor época, dancei vários balés que tiveram grande influência em mim e que depois nem foram mais montados.

Voltando ao ensino, a gente aprende todos os dias. Eu aprendi com a minha professora, ela me deu a base, mas depois eu aprendi com muitas outras pessoas. Quando eu já era bailarina, cada vez que eu tinha férias ia aprender com outros professores. E você pega uma coisa de um de outro, tudo evolui. Isso inclui também a dança, ela evolui hoje de uma maneira impositiva. Não sei bem como dizer, mas evoluiu muito a individualidade do bailarino. Há muitos bailarinos sendo formados, a própria São Paulo Companhia de Dança tem bailarinos muito bem formados, mas você não vê uma personalidade… Nem aqui e nem fora do Brasil. Mesmo as russas, que continuam dançando de maneira incrível, saltam, giram… Mas você não vê mais uma Pavlova, Nijinsky. Eu não os vi, mas até hoje essa geração é uma referência, seus nomes são lembrados até hoje. Mesmo na Ópera de Paris, após a morte do Nureyev, não surgiu um grande bailarino. Não digo nada com relação ao ensino, pois a Escola continua excelente, as bailarinas não perderam nada em técnica, continuam lindas, mas são todas iguais. Acho que isso tem a ver com a personalidade dele. Acho que isso tem a ver com a falta de mestres… Ele não era professor, era coreógrafo e remontava as coreografias do Petipa. Ele tinha muita personalidade, impressionava os bailarinos e eles queriam tirar mais deles mesmos. Hoje em dia há muitos professores, mas não são grandes professores. No meu tempo havia grandes professores e eu tive a chance de estudar com alguns deles, como Dubrovska. Naquela época eles eram grandes bailarinos, não eram apenas professores, que dão aula pelo livro. Eles dão aula pela experiência. Eram importantes como professor, mas também como mestre de balé, passaram pelo palco. Não precisa ter sido primeiro bailarino, mas sim ter tido a experiência, dançar em vários tipos de balé. Hoje eu acho que falta peso. No momento, no Rio, as duas principais professoras eram a Feodorova e eu. Ela morreu e eu não dou mais aula. Tem gente esforçada, mas não é, talvez, a mesma autoridade. Os alunos de hoje são diferentes também. Você já não pode brigar com eles como antes, ninguém aceita. Nunca bati em ninguém, mas falava forte, chamava a atenção. Agora você não pode nem tocá-los, consertar o cotovelo, colocar o pé en dehors, que ninguém mais deixa. Então o que se quer? Não sei aonde vai mais…

A senhora sempre foi conhecida pela rigidez com os alunos…

Tatiana em sua casa, no Rio de Janeiro

Eu sempre fui rígida comigo mesma…

Como era sua relação com os alunos?

Sempre fui muito exigente. E as alunas que fizeram nome, em geral,  nunca reclamaram de nada. Podiam dizer que eu era exigente, mas reconhecem que isso é uma coisa positiva. Sou muito emotiva, então, mesmo quando vou ver um espetáculo me envolvo tanto que eu critico o espetáculo ali mesmo… Sou exigente como público também.

O professor tem que ser honesto com a dança. Sendo honesto com a dança, você vai ser honesto com o aluno também. Ficar dizendo que o aluno é ‘engraçadinho’, ‘bonitinho’, todos esses ‘inhos’, para mim, é muito prejudicial. É tudo pejorativo. Ou ele é bom, ou é mais ou menos, ou é ruim. Tem também os muito bons, claro! (risos) O professor tem uma responsabilidade muito grande se quer criar grandes bailarinos. E tem que ter amor à dança… Se você não tem amor à dança como quer criar um grande bailarino? Não é vontade de brilhar, nem vontade de aparecer, é amor à dança, paixão pelo que está fazendo. Tem que ter prazer em se movimentar e não prazer em se mostrar.

Dentro dessa questão do professor que tem que ter uma bagagem, o que a senhora acha da formação universitária?

São coisas diferentes… Não acho que alguém pode ensinar um adulto de 18, 19 anos a ser professor. Você não aprende nada, tem que ter uma base. Agora, dar uma ideia do que é a dança, uma ilustração, tudo bem. Dança moderna também requer estudo, tem gente que diz que a dança moderna qualquer um faz. Tem uma base acadêmica moderna também, com vários estilos: Martha Graham, Cunningham, Limón… Todos professores muito importantes que eram intérpretes de companhias e que depois tiveram seus alunos. Agora a dança, como aqui se chama dança contemporânea, pode se chamar dança no momento em que a pessoa sabe dançar. Mas o que se vê no palco são moças, senhoras rapazes que não têm ideia do que é dança, em seu sentido estético, não sabe se movimentar. O Klauss Vianna fez um comentário certa vez e eu fui contra, achei que poderia ser mal interpretado. Ele disse que qualquer brasileiro dança. Sim, é verdade… Mas não dança de uma maneira profissional, com qualidade cênica. De fato o brasileiro tem jeito pra dança, alguns têm até talento, físicos alongados, lindos… Mas físico não basta, você tem que moldá-lo.

Qual era a sua relação com Angel e Klauss Vianna? Eles começaram dando aula na sua academia e depois acabaram seguindo um outro caminho…

Eles deram aula na minha academia quando chegaram ao Rio. Tanto Klauss quanto Angel deram aula de clássico, Angel se ocupava das crianças e era muito boa professora. Klauss dava aulas mais para os profissionais, aulas de ‘limpeza’, tudo muito anatômico (ele conhecia muito). Depois disso eles foram para os EUA. Lá, eles fizeram vários estudos, conheceram vários tipos de escolas…  Klauss ficou famoso quando ele começou a trabalhar com atores. De lá tomou voos mais altos, sempre na parte mise en scène, o corpo em cena, a movimentação teatral. Já Angel foi para um outro caminho, de consciência do movimento. É outro tipo de movimento. Hoje, eu acho que ela forma professores, mas não sei bem de quê… Eu vou pular para uma outra história para tentar explicar… A Isadora Duncan abriu caminho para a dança livre, só que todo o mundo esquece que a Isadora Duncan era ela porque ela tinha uma genialidade. Não se pode imitá-la porque ela inventava movimentos livres. Tem que ter esse gênio, ela era uma bailarina inata. Inata, porém estética, tudo que ela fazia era estético. Aí você vê em dança contemporânea gente se movimentando de maneira feia. Ou então coreógrafos que se dizem contemporâneos e distorcem o corpo de propósito, para ser mais moderno, mais contemporâneo, pra ser diferente, faz tudo antiestético. Isso só pode ser feito quando o bailarino é profissional. Quando o bailarino é profissional, você pode fazer nele qualquer movimento antiestético que ele faz isso de outra forma porque ele tem o ‘alfabeto’.

A senhora estava falando sobre essa questão do ‘todo mundo dança’. Ainda hoje para ser um bom bailarino em qualquer tipo de dança é necessário fazer o caminho que começa no balé clássico?

Nos últimos dias de sua academia / Foto: arquivo pessoal

Eu acho que tem que conhecer o alfabeto e depois, sim, desenvolver a coreografia. Por estranho que pareça, nesses últimos 20 anos, a qualidade dos intérpretes das companhias que vêm de fora, ou então de uma companhia como a de Rosely Rodrigues, você logo vê. Logo se percebe quem aprendeu a dançar e quem não aprendeu, salta aos olhos, todo mundo está esticando mais os pés, levantando mais as pernas, tem linhas melhores em todas as companhias.

Voltando à questão do contemporâneo, você é contemporâneo por quê? Tudo pode ser contemporâneo, contemporâneo é hoje, até o balé clássico pode ter uma forma contemporânea. Essas companhias modernas, tanto na Europa quanto nos EUA, eles escolhem os bailarinos pela qualidade. Eles montam as coreografias em cima do material humano que têm, que sabe se movimentar. A matéria bruta é de qualidade.

E voltando ao Klauss, como vocês se conheceram?

Eu nem me lembro como foi… Eu sei que eles vieram e estavam sem trabalho e eu estava precisando de uma professora, e então convidei a Angel. E assim veio Klauss. Ele dava poucas aulas na academia, eram excepcionais, mas quem dava diariamente e várias aulas, principalmente de manhã quando eu estava no Theatro Municipal, era Angel. Acho que nos cruzamos talvez porque eles tenham sido alunos de Carlos Leite em Belo Horizonte, acho que foi ele quem recomendou. Faz tanto tempo que não me lembro mais.

A senhora faz alguma avaliação de como está a Escola de Dança Maria Olenewa, do Theatro Municipal hoje?

Não tenho mais nenhum contato… Há boas meninas que sairam de lá, meninas muito bonitas tecnicamente, mas são uns ‘objetos’, ainda não são artistas, vamos ver o que é que vai dar. Por exemplo, a filha da Rosely (que não sei onde está agora) tem muito talento, tem muito futuro. Eu a vi dançar e fiquei muito impressionada. Mas vamos ver, pode haver outros rapazes e moças de talento, eles têm que mostrar ainda… Pode ser muito bom aluno e não chegar a ter uma carreira. Tem que ter uma coisa a mais.

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