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Excesso de significados

O corpo de Luciana Chieregati não pede licença para começar a dançar. Seu modo de existir é robusto, espesso e grave desde o começo e assim segue até o fim de sua dança. Tal como a caminhada que a artista dá até a frente da grande caixa branca do SESC Campos Salles em que nos encontramos todos, sua dança é certeira no desajuste que articula e, aos tropeços, vai direto ao assunto. Tal dimensão – a do desajuste – se repete e desdobra, ronda a si própria, mas nunca é a mesma. A diferença emerge da repetição.

A escolha da curadoria – desenhada por Datan Izaká, Jacob Alves e Janaina Lobo – para abertura do Junta 2 se potencializa pela própria situação na qual Gag foi apresentada: logo depois da cerimônia de abertura onde, por mais ironia e glamour que Chandelly Kidman tenha trazido, sempre há um ranço de formalidade e adequação entre o que se fala e se faz. Gag parece nos provocar exatamente sobre os processos que constituem tal adequação. Como os significados e sentidos se grudam nas coisas?

Como o corpo – carne, osso, vísceras, fluidos – e o discurso – que da experiência deste corpo se origina, rebusca e (paradoxalmente) se aparta – podem ser continuidade um do outro? E como poderiam deixar de ser? O corpo que se move e deforma a própria identidade por meio de afetos que o afastam de uma experiência apolínea, justaposto à caixa de som que fala, analisa, confunde, questiona e perturba dá a ver a artesanal feitura que sucede em cada uma das sinapses que permite a uma sensação virar verbo. O corpo falante de Gag não é uma máquina fabulosa, mecanismo higiênico, de funcionamento acético. O corpo de Luciana é gambiarra, um gato, uma ligação não autorizada. Nela dançam juntos no coro de um corpo só o desassossego de Fernando Pessoa, as notas “desafiadoras” de Florence Foster Jenkis, Samuel Beckett e suas paisagens cheias de deserto, as literaturas menores de Franz Kafka, Bartelbys, Macabéas, Leandros, Leonardos.

Em verdade pomo-nos todos a dançar, na medida em que para além de instaurar na percepção dos que assistem esse desajuste, se poderia dizer que Gag dá a ver o constante desajuste operante em qualquer nível de comunicação, em qualquer ordem de entendimento, inclusive na comunicação que mantemos e nos entendimentos que temos com o próprio corpo que simultaneamente temos e somos.

A gambiarra linguística que Luciana Chieregati propõe encadeia-se ao evocar corpos outros em desajuste (Esse corpo é de mulher ou de um homem que se passa por mulher?) corpos para os quais é impossível falar “de verdade” (Esse corpo está em protesto?), corpos nos quais os significados não conseguem se grudar (Esse corpo habita as ruas?). À extensa lista de referencias que daí emerge se poderia incluir o corpo-místico que Alejandro Jodorwski articula em celebre frase: “Entre o que eu penso, o que quero dizer, o que digo e o que você ouve, o que você quer ouvir e o que você acha que entendeu, há um abismo”. Gag é um salto nesse abismo. E sem corda de segurança.

Teresina, junho de 2016