Exercício de equivalência nº 3: emergência | Equivalence exercise #3: emergency

Fabiana Dultra Britto é crítica free-lancer membro da Associação Paulistados Críticos de Arte – APCA, e professora de Teoria e História da dança.Graduada em Dança pela UFBA, Mestre em Artes pela ECA-USP e Doutora emComunicação e Semiótica pela PUC-SP. Como Consultora de Dança, criou ecoordenou o projeto de mapeamento de danca contemporânea realizado peloRumos Dança-2000 do Itaú Cultural, e Idealizou e organizou o livro”Cartografia da Dança”, editado pelo Itaú Cultural, em 2003.Atualmente é professora visitante na UFBA e orientadora do Projeto SKR do grupo Cena 11.
Este ensaio faz parte da sua tese de doutorado, “Mecanismos de Comunicação Entre Corpo E Dança: parâmetros para uma história contemporânea”, defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da PUC de São Paulo, em agosto de 2002.

Improvisação

Trata-se da vertente de composição artística que melhor explicita a ocorrência dos fenômenos da auto-organização e da emergência na dança, uma vez que seu princípio básico – da organização do material coreográfico e/ou corporal em tempo real – exacerba o caráter contingencial contido em todas as escalas de estabilidade de um padrão (de dança ou outro). A improvisação permite observar a emergência de novas configurações a partir de condições já contidas no sistema como possibilidade(1).

Por variados que sejam seus graus de desprendimento a regras compositivas pré-fixadas, todos os tipos de dança – do balé clássico ao contato-improvisação(2) – requerem estabilidade em alguma escala, como pressuposto de aprendizagem. O corpo, implicado que está na irreversibilidade, só estabiliza padrões de acionamento cognitivo-motor se repete e quanto mais repete, mais oportunidades de variação ele cria. Por isso, mesmo quando se trata do aprendizado de uma coreografia “de repertório”, cada corpo consiste num diferente ambiente de interação para aquelas informações coreográficas e cria, portanto, uma nova síntese deste relacionamento.

Na improvisação, o caráter auto-organizativo contido na instabilidade intrínseca à natureza da dança manifesta-se de maneira mais exacerbada – por isso mesmo, com um potencial maior de complexificação artística.

Em termos de organização do material estético, a estabilidade pode ser detectada nos diversos níveis da concepção da obra: no treinamento técnico-corporal; na criação dos movimentos (variação de repertório); na organização das cenas e partes; até a própria encenação como um todo (evento). Isso é testado em escalas diferentes, por duas companhias paulistas de dança contemporânea: a Cia. Nova Dança 4 e Cia. 2 Nova Dança. Os resultados variam conforme as condições de flexibilidade conectiva disponibilizadas pelas companhias para conjugar, nos termos de uma composição artística, as instâncias da estabilidade e da mutabilidade.

Dirigida por Adriana Grechi, a Cia. 2 Nova Dança cria estruturas marcadamente coreográficas: um conjunto de cenas, onde cada bloco tem sua autonomia relativa, mas adquire e atribui sentidos diferentes quando reunidos. Fazem uso da improvisação como método, na criação de movimentos individualizados, durante o ensaio, bem como na realização cênica, flexibilizando os arranjos internos dos blocos e dos elos de ligação entre eles, mantendo-se, contudo, a sua ordem seqüencial. Nessa estrutura, está demarcado o espaço de ocorrência do imprevisto.

Com uma proposta mais extremada, as criações da Cia. Nova Dança 4, criada em 96, não são propriamente coreografias mas eventos de improvisação, levados ao palco e às ruas, sob a direção de Cristiane Paoli Quito (SP). Ao experienciar a improvisação como produto estético, todos são co-responsáveis pela construção – em cena – da estrutura da dança: formulam a identidade da “obra”, instaurando o relacionamento entre as várias individualidades corporais que integram o grupo. Interagindo uns com os outros e todos com seu espaço circundante, ninguém conserva intacta a sua individualidade – se o fizer a dança não acontece. Suas movimentações manifestam o esforço adaptativo dos seus corpos, ao desafio de reorganizarem-se continuamente, a partir do conjunto de condições definido como fonte exploratória – seja ele definido por uma idéia ou simplesmente pelo corpo do outro (seu peso, formato, dinâmica, etc.). É como resíduo desse processo que emergem as diferentes qualidades dos movimentos: os improvisadores não criam danças, criam corporalidades, que destilam dramaturgias de dança.

Na improvisação, o sentido autoral da idéia de composição deslocou-se do sujeito para a relação que ele estabelece com o mundo em que vive. Corpo, dança e mundo são co-autores involuntários de suas respectivas identidades.

O entendimento da dança, deslocado para o eixo da instabilidade, reorganiza nossos conceitos estabilizados: põe no corpo o que estava na coreografia: a dança; põe na dança o que estava no corpo: a identidade; e põe na relação entre todos o que estava em cada um: a autoria.

Diluir na vida o sujeito autoral é a ética deste registro estético.

(1) Remeto ao ensaio “O Coreógrafo como DJ”, de Helena Katz, publicado no Lições de Dança -1 – organização de Roberto Pereira e Silvia Soter, editora da UniverCidade Rio de Janeiro, 2000.
(2) Técnica de improvisação baseada no contato entre os corpos, criada por Steve Paxton (USA) e cuja introdutora no Brasil foi a professora intérprete criadora Tica Lemos (SP) – também co-fundadora do Estúdio Nova Dança, que é um centro de referência neste assunto no Brasil.Fabiana Dultra Britto is a free-lancer critic and member of the São Paulo Association of Art Critics – APCA. She teaches Theory and History of the Dance. Graduated in Dance at UFBA (Federal University of Bahia), Master in Arts at ECA-USP and Doctor in Communication and Semiotics at PUC-SP. As Dance Consultant, she created and co-ordinated a mapping project of brazilian contemporary dance carried through for Rumos Dança 2000, at Itaú Cultural. She then created and organized the resultant book “Cartography of Dance”, edited by Itaú Cultural in 2003. Currently she is visiting teacher at UFBA and orientates Project SKR for the brazilian dance group Cena 11.
The essay published in the portuguese version was taken from her doctorate thesis, “Mecanismos de Comunicação Entre Corpo E Dança: parâmetros para uma história contemporânea” (Comunication Mechanisms between body and dance: parameters for a contemporary history), presented at Post-Graduate Studies in Comunication and Semiotics in PUC, São Paulo, August 2002. The following is the abstract.

The relationship which links the world, the body living in such world, and the dance performed by it is based on communication mechanisms, that is, on grouping mechanisms which are interactive in nature and whose effects propagate through time and result in diverse levels of organizations, according to the specific ties between the parties involved.

Rather than a strategy for survival, such a way of operating is the means through which things define their format of existence and, therefore, the conditions required for the establishment of new nexus with all that surrounds us. Forming relationships is a communicative action and the format taken by an identity is dependent upon it. Communicating, then, constitutes an evolutionary strategy.

A certain relational dynamics generates the differences that characterize a change of state around the circumstance from which they emerge ­ thus affecting that which we can see: dance; and that which we can touch: the body.

Historiography is the very record of such difference, which, in turn, is a piece of information that participates in the same dynamics of transformational co-relations: each new difference generated by the interactive approach of related information brings forth a new circumstance for the continuation of the communicating process. If made seamless and cumulative, such process results in an increasing complexification of the cultural system.