Faces da Dança Cênica

O ano de 2008 foi muito fecundo no que diz respeito às publicações na área de dança. Aproveitando a boa fase editorial, o idança publicará uma série de resenhas de livros lançados este ano. A primeira foi escrita pela bailarina e pesquisadora Nirvana Marinho sobre o livro Dança Cênica – pesquisas em dança volume 1, organizado por Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres.

Muitos livros foram lançados nos últimos meses – podemos citar Balé Popular do Recife: a Escrita de uma Dança, de Christianne Galdino, e O fazer-dizer do corpo, de Jussara Setenta. Dança Cênica – pesquisas em dança volume 1 chama atenção. Organizado por Jussara Xavier, Sandra Meyer e Vera Torres, o livro traz pesquisas realizadas no curso de especialização (latu senso) da Universidade Estadual de Santa Catarina, entre 1999 e 2003. Primeiramente, vale saber que as três pesquisadoras e professoras são um trio à toda prova que vem incentivando muitas oportunidades para a dança em Florianópolis e Santa Catarina como um todo – a exemplo do livro e cd-rom Tudo de Ensaio (2006). E depois, a relevância desta publicação encontra-se na união de pesquisadores de vários lugares, com pesquisas também diversas e demonstra o alcance fértil que estudos em dança podem trazer para a área.

Além do problema enfrentado pela delonga para publicação, exigindo das organizadoras uma releitura dos artigos apresentados, o livro tem o mérito de mostrar um leque de assuntos pertinentes à dança: antropologia na dança, políticas culturais, ensino da dança, fenomenologia na dança, ensino e apreciação com corpos especiais, teatralidade e corporeidade contemporâneas, sobre mestres, dança contemporânea, educação somática, alimentação para bailarinos, performer e a relação entre artes plásticas e dança.

Fica cada vez mais claro que nossa atenção e responsabilidade aumentam a cada semestre letivo, no qual diversos estudantes, dançarinos e pesquisadores vão formando uma rede de conhecimento, que cresce em complexidade, exigindo de nós acompanhar mais a produção teórica. E ainda, tal produção nutre e resignifica a produção artística no seu mais amplo espectro: ensino, criação, gestão e a própria pesquisa em um movimento infindo.

Vale uma visita rápida – que sirva de convite à leitura – sobre cada artigo. Concluímos a resenha apontando para uma reflexão acerca da difusão de conhecimento em dança nos últimos tempos. Fato político.

Giselle Guilhon apresenta um ensaio bibliográfico sobre antropologia da dança, chamando nossa atenção ao cuidado que é necessário ao nos aproximarmos da dança como atividade antropológica, a partir da qual sabe-se que não é desejável uma postura etnocêntrica.

Andrea Bergallo e Denise da Costa explicam sobre as políticas públicas para a dança na cidade do Rio de Janeiro entre os anos de 1993 a 1996 e 1997 a 2000, onde a crescente produção artística se fez mais veemente e apresenta, com isso, quais são as relações possíveis. Reflete sobre contrapartidas, direitos e deveres do artista na sociedade contemporânea.

Isabel Marques, já renomada pela pesquisa no ensino de dança, apresenta a interessante comparação de dois slogans de duas distintas gestões municipais da cidade de São Paulo. “São Paulo: uma cidade educadora” e “São Paulo é uma escola” guardam segredos inclusive no que concerne ao entendimento de ensino da dança nas escolas.

Luciana Rosa apresenta como a fenomenologia de Merleau-Ponty, tão lida e referenciada na universidade para o assunto das artes, é aplicada e pensada no corpo que dança. A importância de Merleau-Ponty vai muito além de um escopo teórico, é um pensamento que encarna em muitos artistas.

Capa Pesquisas em Dança - coleção Dança Cênica

Capa Pesquisas em Dança - coleção Dança Cênica

Ida Mara Freire traz também a fenomenologia para descrever as experiências com a dança e a cegueira, com o grupo de Dança Potlach, grupo de extensão da UFSC. A pesquisadora apresenta, de forma sensível e à luz de filósofos, questões presentes no criar e aprender com corpos sem a faculdade da visão.

Neusa Dendena desenvolve uma reflexão acerca do corpo surdo, ou seja, da corporeidade presente nos corpos de surdos quando estes passam pela experiência de aprender dança, no caso, pela técnica de contato-improvisação. A partir dos estudos de Paul Schilder, analisa como se dá a imagem corporal do corpo surdo.

Betti Grebler reflete sobre a teatralidade e corporeidade contemporâneas. Com uma enriquecedora contextualização da dança entre as áureas décadas de 60 a 80, a pesquisadora apresenta como a dança contemporânea emerge, focando em dois grandes ícones: na França, Maguy Marin, e na Alemanha, Pina Bausch.

Marta Cesar constrói uma relação entre três coreógrafos internacionais e três nacionais, sendo eles: Martha Graham e Gaby Imparato, Merce Cunningham e Gícia Amorin e Pina Bausch e a companhia Terceira Dança, como exemplo de dança-teatro no Brasil. História, tradição e renovação se mesclam, em uma leitura política de como as influências chegam até nós.

Fátima Wachowicz relata sua aproximação teórica com o conceito de “memes”, de Richard Dawkins, para refletir sobre este organismo complexo que é a dança contemporânea. Estranhamento e familiaridade, termos que já ganharam adeptos, são movimentos ambíguos e presentes no fazer e assistir dança contemporânea.

Elaine de Markondes analisa a fértil e desejada relação entre a dança e a educação somática. Markondes apresenta o termo cunhado por Thomas Hanna para definir estas transformações “de dentro para fora”. E sabemos que reeducar o movimento é também re-contextualizar o pensamento engendrado no corpo.

Fabiana Faraco fala de transtornos alimentares nas bailarinas clássicas. Com uma preocupação vivida sobre o peso dos bailarinos e sua relação alimentar, a bailarina e professora traz importante colaboração para sérios problemas por vezes mascarados no meio.

Mapi Cravo analisa a pele como figurino do performer. É um estudo sobre figurino cuja presença revela pistas sobre a cena, seja dançada ou performada. O figurino como uma segunda pele, um texto do próprio corpo.

Alex Sander apresenta a relação entre dança e artes plásticas no que tange a representação pictórica do corpo na história. Além de uma oportunidade de revisitar a história da arte, é também a chance de ver os pontos de conexão com o corpo representado e suas danças.

Como se percebe, os artigos têm uma riqueza de assuntos e preocupações pertinentes ao fazer artístico, pedagógico e cultural da dança.

É recorrente a necessidade de “historiar” aquele determinado objeto de estudo na dança, ou seja, apresentar as referências históricas que foram utilizadas pelo pesquisador. Este fato, ainda que pilar para sustentação teórica, indica uma constante necessidade de remontar a história, refazê-la, dizer de novo, dizer mais. Não é porque não lemos uns aos outros, mas porque muito da história da dança ainda está em construção. Ora por falta de bibliografia em português, ora por nosso anseio de rever nossa própria história, isso só aponta a urgência de livros sobre história da dança em seus diversos aspectos.

Também recorrentes são as mais diversas aproximações ou embasamentos teóricos, dos quais é salutar perceber como foram e ainda o são importantes os estudos de Helena Katz, a publicação do Lições de Dança e os estudos de áreas afins à dança, como a filosofia, a educação, as ciências cognitivas e humanas.

Estamos de fato, e cada vez mais, fazendo pesquisa, produzindo e refletindo sobre nossas necessidades, que ultrapassam o âmbito pessoal ou subjetivo – importante ponto de partida – para ocupar um lugar político. Político porque nos re-situa na sociedade, porque apresenta nosso percurso, porque a importância se evidencia na qualidade das pesquisas e (por que não?), na quantidade crescente. Significa muito para quem faz, para quem assiste, para quem paga ou subsidia e, sobretudo, tatua em nós a responsabilidade de fazer dança estudando constantemente.

Nirvana Marinho é bailarina, coreógrafa e pesquisadora de dança. Atualmente coordena o projeto de acervo e videoteca Mariposa, em São Paulo.