Fazemos o que temos a fazer | Fazemos o que temos a fazer

Esta entrevista foi originalmente publicada no weblog do autor, em novembro de 2005.

Há uma divisão da Re.Al em vários blocos, digamos assim, de reflexão, análise, produção…Esta divisão é feita para o contexto criativo onde a Re.Al se insere, e para o que falta nesse contexto, ou uma aproximação a modelos internacionais e que a ti te interessa mais explorar?

De certeza que não é uma estratégia para se chegar a um modelo teórico ou conceptual que, por alguma razão, queiramos atingir. É, com certeza, uma consequência de uma reflexão interna e da necessidade de chegar a um modelo que, de alguma maneira, dê resposta àquilo que a Re.Al tem vindo a ser. Primeiro foi uma companhia de autor normal, depois, mesmo no início, tentou ser uma estrutura mais abrangente ao nível do que é ser um Centro Coreográfico, à imagem do sistema francês, mas muito incipiente, e à medida que o tempo passou foi-se metamorfoseando, quer porque a sua prática artística se foi alterando por alguma razão, quer porque os espaços e as condicionantes logísticas a obrigavam. Desde muito cedo que afirmámos uma espécie de “bicefalia” entre aquilo que é um trabalho de criação ligado à visibilidade e aquilo que é um trabalho de investigação e experimentação. O espaço obriga-nos a reposicionarmo-nos perante os outros e nós próprios. Essa reorganização, de certa maneira, separou as obrigações das pessoas, no sentido em que há pessoas com responsabilidades específicas, quer na difusão, quer na preparação de novos espectáculos, quer num trabalho agora mais ligado à investigação, uma área mais problemática, e à qual demos o nome de Atelier Re.Al. Isto esteve sempre latente, mas nunca se afirmou porque éramos uma equipa pequena. À posteriori percebemos que tudo isto tem a ver com modelos internacionais e isso não é por acaso. É porque nós a partir do interior tentamos criar lógicas de relação, de encontros, de plataformas de troca, seja geracionais, estéticas, de métodos distintos ou olhares diversos, e a consequência é aproximarmo-nos ou estarmos em paralelo com estruturas que fazem a mesma coisa. De alguma maneira o que está por detrás desta reestruturação é o desejo de criar um equilíbrio entre o visível e o invisível, de criar fluxos de contaminação entre a investigação e a criação, e entre as pessoas. Aquilo que substitui a ideia de companhia de dança está no centro de investigação e não ligado à visibilidade.

Há então a recusa de uma ideia de companhia de dança?

Sim, mas isso desde sempre. Desde que saí do Ballet Gulbenkian, que me apercebi que a ideia de repertório e bailarinos fixos não seria o modelo. Não era enriquecedor, porque enriquecedor é mudar pessoas, criar dinâmicas. Mas também porque não é sustentável manter uma companhia. Houve momentos em que, tivesse eu as condições, não acharia mal. De alguma maneira este núcleo do Atelier Re.Al pode até tornar-se em embrião de qualquer coisa mais estável. Porque uma das coisas que me angustia é a falta de condições de trabalho que as pessoas têm. Sobretudo os artistas e os bailarinos. Uma das perversões deste modelo de projecto de autor é que os bailarinos são contratados por três meses e depois acabou. E, numa estrutura destas, pensando até nas responsabilidades históricas que já tem, há que desenhar modelos que dêem qualidade de trabalho às pessoas. E isso é uma das coisas que me preocupa, sobretudo naqueles intérpretes com quem colaboro com mais frequência. Mas não pode ser ao nível da companhia porque isso não existe. Tem que ser ao nível da investigação, da reflexão, darem aulas, fomentarem projectos.

A noção que há é que, ao longo dos 15 anos, com mudanças de espaço, diversos contextos, mutação desses contextos, houve um trabalho de resistência e “sobrevivência”, através do qual foram ganhando uma capacidade de se moldarem. Quinze anos depois as resistências fazem-se de quê? E para seguir para onde?

De facto, o nosso alimento ao longo dos últimos quinze anos tem sido os inimigos que sempre foram muito claros. Mas continuam lá. Eu sempre fui adepto da ideia de que não nos podemos esquecer ou acomodar. Temos que criar estratégias, produzir anti-corpos de forma a que não nos acomodemos numa espécie de rotina. E esta relação-tensão que existe entre o Atelier Re.Al e a Companhia Re.Al produz esse tipo de anti-corpos. Obriga as pessoas a pensarem e repensarem. Os LAB, o objecto mais paradigmático destes quinze anos, são um espaço de reflexão super intenso, com uma luz imensa, mesmo que na privacidade do nosso espaço. É de uma violência muito grande, e o artista que está no LAB tem que estar consciente disso. Neste momento temos um contrato para quinze anos, o que faz com que a resistência do espaço desapareça, mas há resistências internas. E em todos os projectos que criamos está implícito um princípio de resistência. Portanto, é uma estratégia. Nunca nos acomodaremos, penso eu. Até porque há um treino de resistência. A minha não são só esses quinze anos, toda a minha família é anti-fascista, eu nasci no exílio… Eu não direi que está nos genes, mas a nível cultural está impregnado na minha vida. E também a ideia de sobrevivência. Mas há muita coisa a fazer.

Isso é também um discurso para o contexto? Ou seja, não havendo uma estratégia de imposição de modelos, mas havendo uma sobrevivência, essa resistência transforma-se em quê quando se olha ao redor e se vê que no contexto há outros projectos que não vingam, se transformam…

Eu não sou inocente ao ponto de me isolar em relação aos meus pares, mas não funcionamos em função das dinâmicas paralelas. Tratamos de nós. E o espaço para tratar do colectivo será, por exemplo, a associação REDE, onde eu também estou dedicado, não tanto como gostaria. Há aqui uma ideia de sobrevivência que é central.Nós percebemos muito rapidamente que se não tratássemos de nós, muito dificilmente resistiríamos.

E isso não te faz pensar no modo como és visto?

Eu vou fazendo o meu caminho. De vez em quando vou chamado a atenção dos meus pares, e às vezes de forma muito explícita, como foi o caso de um artigo recente [(Não) é assim a vida, jornal Expresso, 03 Setembro 2005] que fiz sobre o meu abandono da Plataforma [de Dança Contemporânea, Faro 2005] e disse explicitamente “tomem uma posição”. Se quiseres, em teoria, estruturas como a nossa, a da Vera [Mantero, Rumo do Fumo], do Francisco Camacho [Eira] – a da nossa geração -, terá alguma responsabilidade em marcar modelos, em chamar a atenção para certo tipo de exigências e de excelência ao nível daquilo que podemos fazer. Mas o trabalho aqui dentro é tanto, que não tenho ocupado muito tempo a pensar. Até porque ao nível daquilo que é a relação institucional com a Re.Al, não mudou muita coisa. Talvez nós tenhamos evoluído, naquilo que é a resistência e autonomia, mas ainda não passámos para um patamar como em França, que é sempre a referência. Um patamar onde à primeira geração, depois de um período de resistência de dez ou quinze anos, não sei, o Estado diz: “estes gajos estão aqui há muito tempo, provam que existem, provam que sobrevivem, etc., têm uma regularidade internacional e de criação interessante e aceitável, vamos agarrar nesta matéria-prima e institucionalizar isto” mesmo com todos os perigos que uma institucionalização tem. Mas isso ainda não aconteceu.

Por isso é que te questionava quanto ao isolamento. É que, provavelmente, os exemplos que justificam uma “institucionalização” não são assim tantos. Ou seja, é um tecido, por si mesmo, muito frágil.

Mas aí pedes-me uma coisa ingrata que é eu julgar os meus pares.

Mas quando tu fazes este discurso de reflexão sobre o que foram estes quinze anos, também estás a fazer um discurso sobre o percurso dos teus pares. Ou não?

É engraçado, mas eu não vejo a coisa assim. Até porque eu acho que há pessoas que têm conseguido fazer coisas. A Rumo do Fumo tem feito um trabalho muito interessante, eles não se interessam por ter um espaço por exemplo, mas interessam-se por outras coisas. Acho que, na minha geração, o Paulo Ribeiro fez o seu trabalho e um trabalho interessante. Tem tido azares agora, nos últimos anos, mas fez um trabalho muito importante. E depois há o Rui Horta, há o [José] Laginha, no Algarve, há, no Porto, o Balleteatro… Há estruturas. Mas eu estou mais preocupado com as segundas e terceiras gerações e com a incapacidade do Estado de se aperceber dessa situação. Porque, de facto, se há pessoas e estruturas que não fizeram aquilo que temos estado a fazer, elas poderiam tê-lo feito, porque estão em potência. E algumas estão a desistir porque não aguentam. Nem toda a gente tem uma capacidade de resistência a esse nível.

Achas então que o Estado tem uma responsabilidade.

Eu não tenho medo da palavra institucionalização. Não a todos os níveis, mas há níveis importantes, sobretudo, as infra-estruturas ou as condições sócio-profissional que não existem, ou ao nível da formação. É inadmissível que, por exemplo, ao fim de quinze anos de um fazer contemporâneo e internacional, muito ligado àquilo que de mais importante e interessante se faz na Europa, esse saber não seja reconhecido. Porque alguns de nós estão metidos nesses circuitos. E é inadmissível que esse saber não seja reconhecido e reciclado, porque isso só a “instituição” o pode fazer. Não digo uma nova instituição, porque tens o Fórum Dança ou o CEM que só precisam é de condições. Já o disse em alguns textos, que há uma má estratégia de se continuar a promover os criadores e a criação, que era pertinente no início dos anos 90, mas que nos últimos sete ou cinco o deixou de ser. Deveria ter havido um investimento nas infra-estruturas, nas condições, na formação. Aí o Estado tem uma importância enorme. Agora, é evidente que as estruturas também a devem ter, sobretudo ao nível de uma massa crítica e da capacidade que devem ter em resistir. E inventarem novos modelos, evitarem o lamento.

Essa maturação é uma coisa pensada também para o público? É possível perceber qual é o público da Re.Al?

Não há uma estratégia de comunicação, não há um público-alvo que queiramos previamente atingir. Acho que ao nível da apresentação dos espectáculos, é um público ao nível do da arte contemporânea. Ou seja, mais exigente, informado, que não vai para um espectáculo confirmar a expectativa que tem em relação a esse espectáculo, mas para ser confrontado com qualquer coisa. Sabe, mas como saberá em relação a outros artistas contemporâneos, mesmo portugueses, de que estamos num território de questionamento e não de entretenimento. E se for à procura do entretenimento não voltará, porque não tem os instrumentos para descodificar o que está a ver. Se vai para se questionar, para reflectir connosco sobre aspectos da contemporaneidade, então é esse o espaço que nós temos. Um dos paradoxos do nosso trabalho é exactamente esse: “como é que é possível ser exigente e absolutamente intransigente em relação ao que estás à procura, com referências e graus de dedicação muito grande, mas ao mesmo tempo ser aberto e disponível para largar o que acabaste de adquirir porque só largando é que podes voltar a questionar?” . Portanto, não pode haver acumulação, não pode haver saturação de informação. Temos tido reacções super gratificantes nesse aspecto porque o nível de feedback nos encontros com o público, e-mails e cartas, são de um nível que nos faz pensar que fazemos o que tem que ser feito. Este é o princípio para tudo. E o que temos que fazer é que tem níveis sobre os quais teremos que ser intransigentes, ao nível da qualidade, da pertinência, da contemporaneidade, do cruzamento geracional… E quando dizes que somos mutantes e nos adaptamos, isso é verdade mas não nos adaptamos à procura. Adaptamo-nos ao nosso próprio ritmo e à nossa própria velocidade. Nesse aspecto somos privilegiados, porque somos nós que decidimos o nosso ritmo. Mas não tenho bem a certeza como adquirimos esse privilégio. Mas imagino que seja de, em momentos certos, como a Plataforma de Faro, dizer não. Eu já tinha dito não à Expo’98, e na altura escrevi um texto [Um murro nos olhos faz ver, jornal PÚBLICO, 24/12/1998] que, curiosamente, é quase igual ao que escrevi [ (Não) é assim a vida, jornal Expresso, 03 Setembro 2005] agora, e onde já dizia que depois de sete anos de Nova Dança Portuguesa era inadmissível que não se invertesse, ou pelo menos que a Expo não fosse um momento onde se passasse a deixar instrumentos e infra-estruturas para um futuro, para contrariar aquele lado efémero e pontual, como veio a acontecer. E como acontece sempre nestas coisas.

(continua…)

Na 2ª parte da entrevista: A criação no contexto nacional.

Esta entrevista foi originalmente publicada no weblog do autor, em novembro de 2005.

Há uma divisão da Re.Al em vários blocos, digamos assim, de reflexão, análise, produção…Esta divisão é feita para o contexto criativo onde a Re.Al se insere, e para o que falta nesse contexto, ou uma aproximação a modelos internacionais e que a ti te interessa mais explorar?

De certeza que não é uma estratégia para se chegar a um modelo teórico ou conceptual que, por alguma razão, queiramos atingir. É, com certeza, uma consequência de uma reflexão interna e da necessidade de chegar a um modelo que, de alguma maneira, dê resposta àquilo que a Re.Al tem vindo a ser. Primeiro foi uma companhia de autor normal, depois, mesmo no início, tentou ser uma estrutura mais abrangente ao nível do que é ser um Centro Coreográfico, à imagem do sistema francês, mas muito incipiente, e à medida que o tempo passou foi-se metamorfoseando, quer porque a sua prática artística se foi alterando por alguma razão, quer porque os espaços e as condicionantes logísticas a obrigavam. Desde muito cedo que afirmámos uma espécie de “bicefalia” entre aquilo que é um trabalho de criação ligado à visibilidade e aquilo que é um trabalho de investigação e experimentação. O espaço obriga-nos a reposicionarmo-nos perante os outros e nós próprios. Essa reorganização, de certa maneira, separou as obrigações das pessoas, no sentido em que há pessoas com responsabilidades específicas, quer na difusão, quer na preparação de novos espectáculos, quer num trabalho agora mais ligado à investigação, uma área mais problemática, e à qual demos o nome de Atelier Re.Al. Isto esteve sempre latente, mas nunca se afirmou porque éramos uma equipa pequena. À posteriori percebemos que tudo isto tem a ver com modelos internacionais e isso não é por acaso. É porque nós a partir do interior tentamos criar lógicas de relação, de encontros, de plataformas de troca, seja geracionais, estéticas, de métodos distintos ou olhares diversos, e a consequência é aproximarmo-nos ou estarmos em paralelo com estruturas que fazem a mesma coisa. De alguma maneira o que está por detrás desta reestruturação é o desejo de criar um equilíbrio entre o visível e o invisível, de criar fluxos de contaminação entre a investigação e a criação, e entre as pessoas. Aquilo que substitui a ideia de companhia de dança está no centro de investigação e não ligado à visibilidade.

Há então a recusa de uma ideia de companhia de dança?

Sim, mas isso desde sempre. Desde que saí do Ballet Gulbenkian, que me apercebi que a ideia de repertório e bailarinos fixos não seria o modelo. Não era enriquecedor, porque enriquecedor é mudar pessoas, criar dinâmicas. Mas também porque não é sustentável manter uma companhia. Houve momentos em que, tivesse eu as condições, não acharia mal. De alguma maneira este núcleo do Atelier Re.Al pode até tornar-se em embrião de qualquer coisa mais estável. Porque uma das coisas que me angustia é a falta de condições de trabalho que as pessoas têm. Sobretudo os artistas e os bailarinos. Uma das perversões deste modelo de projecto de autor é que os bailarinos são contratados por três meses e depois acabou. E, numa estrutura destas, pensando até nas responsabilidades históricas que já tem, há que desenhar modelos que dêem qualidade de trabalho às pessoas. E isso é uma das coisas que me preocupa, sobretudo naqueles intérpretes com quem colaboro com mais frequência. Mas não pode ser ao nível da companhia porque isso não existe. Tem que ser ao nível da investigação, da reflexão, darem aulas, fomentarem projectos.

A noção que há é que, ao longo dos 15 anos, com mudanças de espaço, diversos contextos, mutação desses contextos, houve um trabalho de resistência e “sobrevivência”, através do qual foram ganhando uma capacidade de se moldarem. Quinze anos depois as resistências fazem-se de quê? E para seguir para onde?

De facto, o nosso alimento ao longo dos últimos quinze anos tem sido os inimigos que sempre foram muito claros. Mas continuam lá. Eu sempre fui adepto da ideia de que não nos podemos esquecer ou acomodar. Temos que criar estratégias, produzir anti-corpos de forma a que não nos acomodemos numa espécie de rotina. E esta relação-tensão que existe entre o Atelier Re.Al e a Companhia Re.Al produz esse tipo de anti-corpos. Obriga as pessoas a pensarem e repensarem. Os LAB, o objecto mais paradigmático destes quinze anos, são um espaço de reflexão super intenso, com uma luz imensa, mesmo que na privacidade do nosso espaço. É de uma violência muito grande, e o artista que está no LAB tem que estar consciente disso. Neste momento temos um contrato para quinze anos, o que faz com que a resistência do espaço desapareça, mas há resistências internas. E em todos os projectos que criamos está implícito um princípio de resistência. Portanto, é uma estratégia. Nunca nos acomodaremos, penso eu. Até porque há um treino de resistência. A minha não são só esses quinze anos, toda a minha família é anti-fascista, eu nasci no exílio… Eu não direi que está nos genes, mas a nível cultural está impregnado na minha vida. E também a ideia de sobrevivência. Mas há muita coisa a fazer.

Isso é também um discurso para o contexto? Ou seja, não havendo uma estratégia de imposição de modelos, mas havendo uma sobrevivência, essa resistência transforma-se em quê quando se olha ao redor e se vê que no contexto há outros projectos que não vingam, se transformam…

Eu não sou inocente ao ponto de me isolar em relação aos meus pares, mas não funcionamos em função das dinâmicas paralelas. Tratamos de nós. E o espaço para tratar do colectivo será, por exemplo, a associação REDE, onde eu também estou dedicado, não tanto como gostaria. Há aqui uma ideia de sobrevivência que é central.Nós percebemos muito rapidamente que se não tratássemos de nós, muito dificilmente resistiríamos.

E isso não te faz pensar no modo como és visto?

Eu vou fazendo o meu caminho. De vez em quando vou chamado a atenção dos meus pares, e às vezes de forma muito explícita, como foi o caso de um artigo recente [(Não) é assim a vida, jornal Expresso, 03 Setembro 2005] que fiz sobre o meu abandono da Plataforma [de Dança Contemporânea, Faro 2005] e disse explicitamente “tomem uma posição”. Se quiseres, em teoria, estruturas como a nossa, a da Vera [Mantero, Rumo do Fumo], do Francisco Camacho [Eira] – a da nossa geração -, terá alguma responsabilidade em marcar modelos, em chamar a atenção para certo tipo de exigências e de excelência ao nível daquilo que podemos fazer. Mas o trabalho aqui dentro é tanto, que não tenho ocupado muito tempo a pensar. Até porque ao nível daquilo que é a relação institucional com a Re.Al, não mudou muita coisa. Talvez nós tenhamos evoluído, naquilo que é a resistência e autonomia, mas ainda não passámos para um patamar como em França, que é sempre a referência. Um patamar onde à primeira geração, depois de um período de resistência de dez ou quinze anos, não sei, o Estado diz: “estes gajos estão aqui há muito tempo, provam que existem, provam que sobrevivem, etc., têm uma regularidade internacional e de criação interessante e aceitável, vamos agarrar nesta matéria-prima e institucionalizar isto” mesmo com todos os perigos que uma institucionalização tem. Mas isso ainda não aconteceu.

Por isso é que te questionava quanto ao isolamento. É que, provavelmente, os exemplos que justificam uma “institucionalização” não são assim tantos. Ou seja, é um tecido, por si mesmo, muito frágil.

Mas aí pedes-me uma coisa ingrata que é eu julgar os meus pares.

Mas quando tu fazes este discurso de reflexão sobre o que foram estes quinze anos, também estás a fazer um discurso sobre o percurso dos teus pares. Ou não?

É engraçado, mas eu não vejo a coisa assim. Até porque eu acho que há pessoas que têm conseguido fazer coisas. A Rumo do Fumo tem feito um trabalho muito interessante, eles não se interessam por ter um espaço por exemplo, mas interessam-se por outras coisas. Acho que, na minha geração, o Paulo Ribeiro fez o seu trabalho e um trabalho interessante. Tem tido azares agora, nos últimos anos, mas fez um trabalho muito importante. E depois há o Rui Horta, há o [José] Laginha, no Algarve, há, no Porto, o Balleteatro… Há estruturas. Mas eu estou mais preocupado com as segundas e terceiras gerações e com a incapacidade do Estado de se aperceber dessa situação. Porque, de facto, se há pessoas e estruturas que não fizeram aquilo que temos estado a fazer, elas poderiam tê-lo feito, porque estão em potência. E algumas estão a desistir porque não aguentam. Nem toda a gente tem uma capacidade de resistência a esse nível.

Achas então que o Estado tem uma responsabilidade.

Eu não tenho medo da palavra institucionalização. Não a todos os níveis, mas há níveis importantes, sobretudo, as infra-estruturas ou as condições sócio-profissional que não existem, ou ao nível da formação. É inadmissível que, por exemplo, ao fim de quinze anos de um fazer contemporâneo e internacional, muito ligado àquilo que de mais importante e interessante se faz na Europa, esse saber não seja reconhecido. Porque alguns de nós estão metidos nesses circuitos. E é inadmissível que esse saber não seja reconhecido e reciclado, porque isso só a “instituição” o pode fazer. Não digo uma nova instituição, porque tens o Fórum Dança ou o CEM que só precisam é de condições. Já o disse em alguns textos, que há uma má estratégia de se continuar a promover os criadores e a criação, que era pertinente no início dos anos 90, mas que nos últimos sete ou cinco o deixou de ser. Deveria ter havido um investimento nas infra-estruturas, nas condições, na formação. Aí o Estado tem uma importância enorme. Agora, é evidente que as estruturas também a devem ter, sobretudo ao nível de uma massa crítica e da capacidade que devem ter em resistir. E inventarem novos modelos, evitarem o lamento.

Essa maturação é uma coisa pensada também para o público? É possível perceber qual é o público da Re.Al?

Não há uma estratégia de comunicação, não há um público-alvo que queiramos previamente atingir. Acho que ao nível da apresentação dos espectáculos, é um público ao nível do da arte contemporânea. Ou seja, mais exigente, informado, que não vai para um espectáculo confirmar a expectativa que tem em relação a esse espectáculo, mas para ser confrontado com qualquer coisa. Sabe, mas como saberá em relação a outros artistas contemporâneos, mesmo portugueses, de que estamos num território de questionamento e não de entretenimento. E se for à procura do entretenimento não voltará, porque não tem os instrumentos para descodificar o que está a ver. Se vai para se questionar, para reflectir connosco sobre aspectos da contemporaneidade, então é esse o espaço que nós temos. Um dos paradoxos do nosso trabalho é exactamente esse: “como é que é possível ser exigente e absolutamente intransigente em relação ao que estás à procura, com referências e graus de dedicação muito grande, mas ao mesmo tempo ser aberto e disponível para largar o que acabaste de adquirir porque só largando é que podes voltar a questionar?” . Portanto, não pode haver acumulação, não pode haver saturação de informação. Temos tido reacções super gratificantes nesse aspecto porque o nível de feedback nos encontros com o público, e-mails e cartas, são de um nível que nos faz pensar que fazemos o que tem que ser feito. Este é o princípio para tudo. E o que temos que fazer é que tem níveis sobre os quais teremos que ser intransigentes, ao nível da qualidade, da pertinência, da contemporaneidade, do cruzamento geracional… E quando dizes que somos mutantes e nos adaptamos, isso é verdade mas não nos adaptamos à procura. Adaptamo-nos ao nosso próprio ritmo e à nossa própria velocidade. Nesse aspecto somos privilegiados, porque somos nós que decidimos o nosso ritmo. Mas não tenho bem a certeza como adquirimos esse privilégio. Mas imagino que seja de, em momentos certos, como a Plataforma de Faro, dizer não. Eu já tinha dito não à Expo’98, e na altura escrevi um texto [Um murro nos olhos faz ver, jornal PÚBLICO, 24/12/1998] que, curiosamente, é quase igual ao que escrevi [ (Não) é assim a vida, jornal Expresso, 03 Setembro 2005] agora, e onde já dizia que depois de sete anos de Nova Dança Portuguesa era inadmissível que não se invertesse, ou pelo menos que a Expo não fosse um momento onde se passasse a deixar instrumentos e infra-estruturas para um futuro, para contrariar aquele lado efémero e pontual, como veio a acontecer. E como acontece sempre nestas coisas.

(continua…)

Na 2ª parte da entrevista: A criação no contexto nacional.