“Female”, de Tânia Dinis. Performar em tom acadêmico para desmantelar o espaço institucional

Transversalmente, no dia 10 de Julho de 2013, durante o MAP/P – Mostra de Processos, evento realizado na cidade do Porto no Mosteiro São Bento da Vitória com aval do Teatro Nacional São João, Produtora de Risco e da Fábrica de Movimentos – a performer Tânia Dinis expôs seu mais recente projeto artístico intitulado por “Female”, que é uma performance e, ao mesmo tempo, uma videoconferência, algo que aparentemente está em processo, mas que, talvez, essa seja a sua verdadeira forma de expressão.

Inicialmente, o objetivo que a motivou para a elaboração de um trabalho artístico novo não foi cumprido graças a um erro fatal. Tânia convocou todo arsenal que compõe a gravação de um vídeo, convidou performers, elencou sua equipe, escolheu a mais apropriada ambientação e não conseguiu concretizar o que cobiçava, pois a película, depois de revelada, veio quase toda negra. Dois ou três segundos da captação apareceu: nada além disso. E, por sorte, Dinis pôde contar com a colaboração de Jorge Quintela na sua equipe, que usou o recurso digital para registrar toda a mise-en-scène, estabelecendo uma metalinguagem, filmando Tânia Dinis nua a filmar outras mulheres igualmente sem roupas, o que era parte do conceito da artista que vive e trabalha na cidade do Porto em Portugal.

Devido ao erro, talvez o acerto no ajustamento da linguagem mais apropriada do que a artista pretendia abordar tenha suscitado outras indagações além da que existia no princípio, o que tornou o trabalho muito mais abrangente no seu conteúdo. E foi o acaso que decidiu tudo, que esquematizou uma nova linguagem a ser explorada por Tânia, que expôs sua “falta de sorte” como resultado de uma residência artística realizada no Núcleo de Experimentação Coreográfica em 2012. Essa apresentação foi filmada e, mais uma vez, houve um acidental problema na captação, que serviu para ser discutida em uma segunda exposição realizada no Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura no início de 2013. Dessa sucessão de erros, vemos acertos que geraram um work in progress, que fez jus a uma nova apresentação em uma mostra de processos criativos no MAP/P.

O que tem chamado a atenção na série de trabalhos de Tânia Dinis, especialmente em “Female” (2012), não é somente o questionamento levantado através da exposição do corpo feminino e da sua simbologia como forma de reivindicar os princípios feministas, mas também a discussão sobre o elemento tangível através do evento efêmero. A videoperformance, meio eletrônico que apresenta corpos fantasmagóricos, funciona, em certa medida, como o cerne de discussão proposto por essa artista que tem uma prática investigativa focada na arte da performance desde a sua primeira ação intitulada por “Lap Dance” (2011).

Tratando-se de uma espécie de conferência, onde a artista expõe os erros que cometeu na sua fracassada tentativa de criar uma videoarte/videoperformance sob o uso do recurso analógico de uma fascinante câmera Super 8, podemos ater nosso pensamento voltado para a sua investigação teórica a respeito do fenômeno do erro, do lapso, do equívoco. Obviamente, por ser uma abordagem sobre arte, não podemos esperar da performer uma conferência estritamente acadêmica, pois há uma diferenciada especificidade na fundamentação argumentativa nas pesquisas baseadas em arte, sejam práticas, teóricas ou as duas maneiras de produzirmos pensamento de uma só vez, afinal, conforme observa John Baldacchino, “as artes devem reivindicar seus próprios fundamentos autônomos de legitimidade como uma pesquisa distinta e específica de paradigma”  [1]. “As artes são inerentemente aporéticas” [2].

Claro que ao raciocinarmos sobre o objetivo de distinguir a arte (levando em conta não só a prática, mas também a especulação teórica) como uma pesquisa autônoma, as palavras de Theodor Adorno ecoam e ganham sentido para avaliarmos o que era dito na performance (em forma de conferência) de Tânia Dinis exposta no MAP/P, pois Adorno pretendia remover a arte de quaisquer estruturas institucionais de controle para afirmar o seu caráter de persistente questionamento crítico do mundo e do tempo em que se implanta. [3] Com obviedade, foi o acidente que fez com que Tânia não pudesse usufruir do espaço institucional do museu ou galeria, por exemplo, para acolher sua obra tangível em vídeo, mas foi também esse acidente que a impulsionou para uma reflexão através de sua auto-exposição efêmera sobre essa falha, levantando, assim, o papel fundamental do discurso que estaria impresso na obra que não existe como em princípio pensou; surgiu outra e sob uma nova roupagem, com certo tom crítico ao seu acolhimento nas instituições.

Não é um discurso findado unicamente em recinto acadêmico – embora tenha pose de conferência –, é arte, é dança sem dança, é cena sem interpretação (embora por vezes estejamos a ver a interpretação de si mesma em movimentos pseudo-naturais a questionar o estatuto de arte já sendo arte). Há, nesse trabalho, a eficácia crítica de uma obra de arte que não pode ser arruinada pela sua institucionalização; ela desarticula à obra os acomodamentos internos de resistência à dominação, sob a aparência de os manter.

Tânia, em caminhos opostos, está discursando academicamente sobre um processo artístico de criação e já está, também, apresentando-se enquanto “objeto” de arte junto de todos elementos que compõem sua performance.  Lamenta o lapso que a afastou de uma possível permanência no ambiente institucional, para, dentro dele, fazer com que notemos o quanto o efêmero superou o tangível nesse caso que ela nos detalha, o quanto a ação ao vivo pode arruinar com a fixa ideia do tangível. Com “Female”, nesse sentido, sem hastear essa bandeira, Tânia nos desperta para observarmos as qualidades de uma obra de arte viva, quando, em tom inclusive crítico, deixa os objetos gerados a partir da sua apresentação como instalação.

Na sua performance-palestra, Tania Dinis se posiciona consciente de teorias levantadas por Kristine Stiles sobre vestígios que podem ser vistos como “expansões” dos próprios atos performáticos, vinculados a eles como “comissuras” [4], ao mesmo tempo que demonstra aquilo que Peggy Phelan afirma com veemência com relação a impossibilidade de desdobrar uma performance em objetos, pois para ela esse é um tipo de ação que não permite repetição e, por isso, encerra-se no próprio ato. “A única vida da performance é no presente” [5].

Notas:

[1] BALDACCHINO, J. (2009). Opening the picture: On the political responsibility of arts-based research: A review essay. International Journal of Education & the Arts, Volume 10 (Review 3) / 01 de Fevereiro de 2009. Disponível em: http://www.ijea.org/v10r3/ (Consulta realizada em 15 de Julho de 2013). Tradução livre a partir do inglês.

[2] idem.

[3] Cf. ADORNO, Theodor W., Teoria Estética, p. 35.

[4] Cf. STILES, Kristine. Theories and documents of Contemporary Art: a sourcebook of artist’s writings, p. 779.

[5] PHELAN, Peggy. Unmarked: the politics of performance, p. 146.

Referências:

ADORNO, Theodor W., Teoria Estética. Tradução de Artur Mourão, Lisboa: Edições 70, 1993.

BALDACCHINO, J. (2009). Opening the picture: On the political responsibility of arts-based research: A review essay. International Journal of Education & the Arts, Volume 10 (Review 3) / 01 de Fevereiro de 2009. Disponível em: http://www.ijea.org/v10r3/ (Consulta realizada em 15 de Julho de 2013)

PHELAN, Peggy. Unmarket: The politics of Performance. London/New York: Routledge, 1993.

SELZ, Peter; STILES, Kristine. Theories and documents of Contemporary Art: a sourcebook of artist’s writings. Los Angeles: University of California Press, 1996.

TALES FREY (Catanduva-SP, Brasil. 1982) vive e trabalha entre o Brasil e Portugal. Encenador, crítico de arte, artista performático e videoartista, atualmente, é doutorando em Estudos Teatrais e Performativos pela Universidade de Coimbra em Portugal, onde está desenvolvendo a tese-projeto (Practice-led Research) “Performance e ritualização: moda e religiosidade em registros corporais”.

Fez Mestrado (Strictu Sensu) e especialização (Lato Sensu) em Estudos Artísticos – Teoria e Crítica da Arte pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Sua formação (graduação) é em Artes Cênicas com habilitação em Direção Teatral pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), instituição onde manteve vínculo para cursar uma graduação em Indumentária na Escola de Belas Artes da UFRJ. Apresentou trabalhos artísticos na Argentina, no Brasil, no Canadá, na China, em Cuba, nos Estados Unidos da América, na Inglaterra, na França, na Alemanha, na Malásia, no Peru, em Portugal, na Sérvia, na Suécia e na Tailândia. Entre os principais eventos e espaços, exibiu um filme no Short Fim Corner do Festival de Cannes 2011, uma performance durante o Rapid Pulse International Performance Art Festival na Defibrillator Gallery em Chicago e apresentou uma videoperformance no The Kichen em New York em 2012. Entre suas exposições coletivas e individuais, destaca-se, em nome da Cia. Excessos, e realização da exibição de “Moda e Religiosidade em Registos Corporais” apresentada em Guimarães (Portugal) no Centro para os Assuntos da Arte e da Arquitectura durante o mês de Junho de 2013.

Membro fundador da Cia.Excessos e do Instituto das Artes de Inhumas. É editor da revista eletrônica Performatus. É autor do livro “Discursos críticos através da poética visual de Márcia X.”