Improvisação em dança como instrumento para o ator

A tese pretende esmiuçar os processos comunicativos que envolvem o método de criação e a performance artística do clown (1). Esta investigação, iniciada no mestrado (2), circunscreve a indagação sobre a natureza do processo semiótico para a construção do corpo do ator. Nesse sentido, o processo de criação do clown contempla esta especificidade no modo de construção do personagem. Este processo tem início no corpo do ator, na experimentação de suas habilidades corporais, sejam elas relativas a um estado de presença e percepção diferenciado como também de habilidades relativas ao jogo e a improvisação. Trata-se de um treinamento intenso de habilidades físicas do ator.

No panorama histórico da presença do clown nas artes cênicas, manifestou-se com ênfase a corporeidade e fisicalidade que o uso da máscara demanda (Fo, 1998; Levy, 1990; Pascal, 1992; Fabri&Sallée, 1982). E as metodologias estudadas na dissertação destacam o treinamento físico e energético por meio de técnicas de dança, acrobacias, exercícios físicos de diversas ordens, enfim exercícios físicos intensos objetivando habilitar o ator para o jogo e para a presença cênica. (Lecoq, 1997,1987; Paoli Quito, 2000, 1998, 1995, 1994; Burnier Mello, 1994 e Ferracini, 1998).

Por outro lado, estes estudos evidenciam uma questão atual e recorrente nas pesquisas de linguagem teatral e formulada já desde o tempo de Constantin Stanislavski (1863/1938): o corpo do ator. Neste aspecto, o treinamento do clown tem sido incorporado ao teatro como linguagem artística das artes cênicas e como recurso de formação de atores dadas habilidades de presença e disponibilidade, expressividade, jogo e improvisação que ele desenvolve.

O Método das Ações Físicas constitui um dos mais importantes legados de Stanislavski para as gerações seguintes de atores e diretores. Entre outros desdobramentos desta prática, encontra-se o redimensionamento do corpo do ator no processo de criação do personagem e os inúmeros procedimentos de treinamento gerados por este redimensionamento como foi o caso das pesquisas de Jersy Grotowski (3), Eugênio Barba (4), Peter Brook (5); no Brasil, seguindo esta vertente de pesquisa de linguagem encontramos o Lume – Campinas (6), Cia Nova Dança 4 (7) para citar alguns.

De lá para cá, o corpo e sua expressão foram ganhando espaço nos processos de pesquisa de linguagem teatral. De fato, como também observado por Azevedo (2002), em O papel do corpo no corpo do ator o trabalho corporal sistematizado gera transformações qualitativas no trabalho de criação e interpretação do ator. Este aprofunda seu conhecimento acerca de seu corpo e seus recursos de expressão, intensifica sua presença cênica, promove instaura o estado de atenção e prontidão necessários à percepção das sensações, dos estados corporais, das idéias, dos pensamentos e das imagens que o corpo produz. O ator desenvolve a consciência e compreensão de sua ação em cena. É neste contexto que as técnicas de dança em muito podem contribuir para o desenvolvimento do ator.

Diferente de um personagem da dramaturgia, em que o contexto é dado pela narrativa a partir da qual se constrói o corpo do personagem, no clown, a máscara confere a essa linguagem, antes de tudo, uma fisicalidade que expressa as características e o modo de estar no mundo desse personagem. O clown se desenvolve a partir dos desafios físicos a que o ator se submete no treinamento, em outros termos, a exposição do corpo ao ridículo, ao jogo com outros corpos, à sua capacidade de comunicação sem fala e sem gestos estereotipados.

Esta abordagem implica repensar os parâmetros de compreensão e análise do corpo e seus processos comunicativos, o que então constitui a hipótese desta tese.

O clown caracteriza-se por ser um personagem que pode estar em qualquer lugar. E em qualquer lugar que ele esteja ele transforma este espaço, evidenciando outros sentidos e significados das relações ali existentes. Um dos modo possíveis de explicar tal constituição implica na possibilidade de compreender que a característica cômica do clown encontra-se num estado particular de comunicação e interação. O clown e o ambiente em que ele está dispõem-se mutuamente a um jogo de receber, trocar e devolver estímulos. Receber, trocar e devolver comicamente os estímulos do ambiente e do clown.

Estas questões estão relacionadas no modo mais amplo à habilidade e aptidão do corpo para permanecer no tempo e espaço. O corpo incorpora imagens, sensações e pensamentos de movimento e os produz na medida que incorpora, um jogo contínuo da relação corpo / ambiente (Andy Clark, 1997, 2001; Steven Pinker 1999, 2002; Antonio Damásio, 2003, 2000, 1995).

A hipótese consiste em que o treinamento do clown habilita o ator a interagir com o ambiente no que ele manifesta de inusitado, diferente, polissêmico, porque ambos, ambiente e corpo do ator, estão repletos de movimentos inusitados, diferentes e surpreendentes.

Trata-se de uma hipótese que sustenta a complexidade da relação corpo e ambiente, compreendendo a complexidade particular destes dois corpos no espaço, não se tratando de uma simples questão de estímulos e respostas, mas da constituição de uma complexa rede de relações.

A atividade corporal transforma hábitos, modos de pensar e agir. O relaxamento de músculos, a percepção de apoios e pesos, a percepção do corpo no espaço (volume) facilitam a presença cênica, a percepção das sensações e dos estados corporais e das ações e movimentos engendrados, constituindo o fluxo da linguagem e favorecendo uma ação mais orgânica do ator na criação e na execução do personagem. Focando o objeto desta pesquisa podemos questionar: como um treinamento de clown se realiza ou pode ser realizado de modo a permitir ao ator reconhecer qual é esse modo diferente de estar no mundo? Como um treinamento pode levar a um novo modo de percepção? Quais os fundamentos deste treinamento no corpo do ator? Como o ator incorpora essa técnica de ação artística no mundo? Focando o objetivo deste artigo: como a improvisação em dança pode contribuir para esta construção?

A improvisação em dança constitui um dos focos da pesquisa. De fato, para esta tese, a técnica e metodologia de criação do clown enfocam o trabalho de Cristiane Paoli Quito (8) cujo trabalho corporal constitui o suporte articular de sua metodologia. Algumas técnicas do Contact Improvisation (9) constituem um dos recursos de treinamento neste trabalho. A improvisação em dança fundamenta-se num profundo trabalho de consciência do corpo no espaço, técnicas de composição e jogo no movimento organizado como dança, exploração e instrumentalização da expressão do corpo e da relação com o ambiente.

* Maria Ângela é doutoranda no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP e pesquisadora do Centro de estudos do Corpo (PUC-SP). Atriz e pesquisadora da linguagem teatral, com especialização em clown, desenvolve oficinas, workshops e performance nesta área.

Notas:

1. Clown e palhaço são sinônimos. A preferência dada à terminologia inglesa apenas se justifica para diferenciar o palhaço inserido numa linguagem teatral do palhaço inserido na linguagem circense.

2. Cartografia do conhecimento artístico: o processo de criação do ator, dissertação de mestrado defendida em 2000 no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP, sob a orientação da Prof. Dra. Helena Katz.

3. Jersy Grotowski (1933-1999), diretor de teatro, criador do Teatro-Laboratório em 1959 na Polônia cujos objetivos consistiram em pesquisar o domínio da arte teatral, sua metodologia e estética. Escreveu Em busca do teatro pobre, ed. Civilização Brasileira.

4. Eugênio Barba (1936- ) é diretor e estudioso do teatro contemporâneo. Estudou com Grotowski. Na Dinamarca, fundou em 1964 o Odin Teatret e, em 1979, o ISTA (International Scholl of Theatre Anthropology) que constituem hoje ponto de referência da arte teatral.

5. Peter Brook (1925- ) é diretor de teatro, fundou e dirige em Paris o Centro de Pesquisas Teatrais. Suas arrojadas concepções cênicas para teatro, ópera e cinema tornaram-se marcos de renovação e referências da escritura cênica ocidental.

6. LUME (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais) UNICAMP, fundado em 1985 por Luís Otávio Burnier Mello, Carlos Roberto Simioni , Ricardo Puccetti e Denise Garcia. As linhas de pesquisa que orientam o trabalho são: a dança pessoal, o clown e a mímesis corpórea (Ferracini, 1998).

7. Nova Dança 4 é um grupo de dança dirigido por Cristiane Paoli-Quito, que desde 1996 tem desenvolvido um trabalho de pesquisa em improvisação, dança e teatro. Trata-se de um grupo que vem inovando as possibilidades de ligação entre a linguagem da dança e a do teatro. E entre suas técnicas de treinamento encontra-se a prática do clown.

8. Cristiane Paoli Quito é diretora doa Cia. Nova Dança Quatro desde 1996, ministra curso de clown e improvisação dança teatro no Estúdio Nova Dança em São Paulo e é professora da Escola de Arte Dramática (USP).

9. Contact Improvisation, constitui uma técnica de improvisação em dança desenvolvida por um grupo de bailarinoas e sistematizada pelo americano Steve Paxton. Entre outras dançarinas desta técnica no Brasil, encontra-se Tica Lemos, dançarina e preparadora corporal da Cia Nova Dança 4.