Independentes de quê: indigestão cultural nos corpos da dança

 

Revirando o baú de obviedades não resolvidas: sobre as condições de produção de artistas independentes da dança contemporânea e a neoliberalização das condições de produção e reprodução artística

 

Faz aproximadamente um mês comecei a pensar em um texto que há tempo já se fazia necessário sobre as relações econômicas e a sua incidência nas práticas e poéticas artísticas. Em Uruguay e depois de um ano da mudança de governo – ano em que a palavra-chave foi, sem dúvida, “orçamento” – e em um momento de reorganização do mapa de coletivos, associações e redes de dança, não são poucas as mudanças observadas. Em um período de dois anos, se dissolveu a Red Sudamericana de Danza, teve varias crises na Asociación de Danza del Uruguay (ADDU: Grêmio de trabalhadores da dança), mudou a legislação que regula a atividade profissional dos artistas (ainda que quase ninguém respeite a lei nova), surgiram coletivos alternativos e ações sem coletivos. Criaram-se o Instituto Nacional de Artes Escénicas (dependente do MEC) e a formação de licenciatura de dança no Instituto de Profesores Artigas, continuam surgindo espaços de formação e iniciativas para a apresentação de obras, continuam aparecendo obras e novos artistas.

O panorama apresenta novidades mas também traços de uma longa evolução. A partir de um convite do Idança e me perguntando se poderia dizer algo novo, que outros bons artigos não tenham dito, tentei transformar em palavras um monte de perguntas e problemas que se apresentam a partir do meu fazer e das minhas relações como artista que podería se autodefinir como dentro do setor independente. Em parte este texto é fruto de uma crise com esse adjetivo, uma crise respeito a sua pertinência e significado quando consideramos as relações, meios e modos de produção que afetam e ao mesmo tempo habilitam as práticas artísticas.

O que segue não é uma análise sistêmica, estatisticamente embasada, mas sim a partilha de um conflito que frequentemente se vive de forma solitária ou censurada, com o propósito de reabrir o assunto e nos dedicarmos à sua discussão. O propósito e motivação – deste texto ou da sua publicação – é tentar jogar na roda uma serie de perguntas e paradoxos, reconhecendo as complexidades implícitas nas formas de produção de acontecimentos/conteúdos políticos; uma tarefa que acho necessária para nossas práticas não se converterem numa nova trend pseudo-pós-estruturalista que, por desconfiar da política maníqueista da cultura, se entrega excessivamente às dinâmicas do mercado.

Nesse impasse entre a viabilização de projetos e a sustentabilidade nas vidas dos trabalhadores da arte – que necessitam de recursos não mensuráveis em valor de uso – e a geração de espaços sensíveis e públicos para fora dos campos do estado e do mercado, nós artistas nos chamamos de independentes, nos chamamos de contemporâneos, e há muito trabalho por fazer quanto a isso.

 

Dança: entre a política do sensível e a economia da arte

A primeira coisa, quando comecei a escrever, foi encontrar-me com um texto de Gustavo Bitencourt, o mesmo que me havia convidado, com um título quase análogo ao que eu havia dado ao rascunho do artigo, que abordava perguntas semelhantes, nada menos que sete anos antes, no país vizinho, Brasil. “Depende de quê?” – ele se perguntava. “Independentes de quê?” – eu me perguntava.

O certo, e já apontado por autores interessados na precarização dos trabalhadores da cultura, como Isabell Lorey (2006), é que o fenômeno de transformação da cultura em empreendimento não é neoliberal, e sim é algo que está na base do liberalismo mais iniciático.

A chamada mercantilização da vida e da cultura não é nova e nem exclusiva da arte da mesma forma que a emergência do empreendedorismo na cultura não é um fenômeno neoliberal, mas sim está na base do liberalismo. A financializaçao da cultura forma parte do fenómeno pelo qual produção e reprodução, ou vida e trabalho, passaram a integrar uma relação funcional e normalizadora – ou, em outras palavras, biopolítica – no capitalismo ocidental contemporâneo. Se para qualquer atividade social as alternativas não são fáceis de achar, para a arte – que entende a si mesma como trabalho sobre a distribuição política do sensível, porém, com uma função fortemente ideológica – habitar estas contradiçoes põe em conflito a própria natureza do trabalho e o jeito como os conteúdos que se pretendem pôr a circular são muitas vezes diretamente antagônicos às formas escolhidas ou disponíveis para fazê-lo. Uma característica da arte é ser um campo de produção onde os resultados ou ambições não são quantificáveis em termos materiais (ainda que as políticas baseadas em estatísticas sobre consumo cultural prefiram afirmar o contrário), sem por isso deixar de ter um forte e determinante componente material. Diz Lorey:

(…) a tese da mercantilização da vida faz sentido de uma perspectiva de governamentalidade biopolítica. Ela aponta para as relações de poder e dominação de uma sociedade burguesa liberal, que por mais de 200 anos tem se constituído em torno da produtividade da vida. Nessa perspectiva, a vida nunca foi o outro lado do trabalho. Na modernidade ocidental, a reprodução sempre foi parte da política e da economia. Não só a reprodução, como a vida em geral nunca esteve além das relações de poder. Ao contrário, a vida, precisamente na sua produtividade, o que quer dizer seu potencial de ‘design’, sempre foi efeito dessas relações. E é precisamente esse potencial de ‘design’ que constitui o suposto paradoxo da subjetivação moderna, entre subordinação e empoderamento, entre regulamentação e liberdade. O processo liberal de tornar a precarização uma contradição inerente não se colocou além dessa subjetivação. É um resultado inteiramente plausível de um conjunto de posições políticas, econômicas e sociais. (LOREY, 2009)

A construção da precariedade é indiscernível dos processos de subjetivação em que germinam as contradições que a tornam possível. Entre o determinismo econômico e a possibilidade de agenciamento que abre a ação simbólica, o campo artístico nos coloca uma pergunta urgente: Está nossa ação simbólica fortemente determinada por os modos e meios econômicos e políticos de produção na contemporaneidade? Ou existem ainda fissuras, onde se possa agir, dentro deles? Existe algo fora deles?

Posicionar-se não é fácil para o artista contemporâneo, a quem os discursos oficiais e a própria ‘realidade’ oferecem um mapa de posições fixas e coordenadas predefinidas, tornando cada vez mais difícil encontrar e gerar espaços fora deste mapa. Tornando cada vez mais difícil tomar posição, premiando a obediência estética e política e fomentando a dissociação (que para os artistas tem sido bastante cômoda) em meio a um olhar político das estéticas e discussões profundas sobre o lugar não só estético, mas sim político, que ocupamos como agentes no campo social e cultural. Não falo somente de reprodução simbólica.

 

A era dos projetos

O projeto como horizonte e a coerção da temporalidade da produção artística por parte dos dispositivos de apoio econômico baseados em projetos são assuntos que têm sido abordados por autores como Bojana Kunst (2011) e inclusive explorados por mim ao analisar projetos que não se colocam como “obras cênicas” e buscam dissolver o caráter produtivista e serial dos projetos com o objetivo de criar zonas de experiência (não sem contradições) (NASER, 2015).

A neoliberalização dos modos de produção tem várias contrapartidas e uma delas é que, assim como se necessita do êxito do mercado, os artistas têm incentivos para deixar de pensar-se comunitariamente e passam a funcionar como um oligopólio, orientado pela livre concorrência. Ainda que existam alternativas, que aparecem sobretudo em espaços pouco institucionalizados e efêmeros, é curioso – e inexplicável sem levar em consideração uma sucessão de crises nos modos de coletividade no campo da arte (NASER, 2009) – como as associações de artistas têm se transformado quase exclusivamente em organizações cuja finalidade é negociar junto ao estado ou à esfera pública, ou mista, para melhorar as condições de iniciativas que, paradoxalmente, na maioria dos casos, vêm do próprio estado. (Por exemplo e atualmente: a participação no processo de construção de um Plano Nacional de Cultura no Uruguai.)

A consolidação de um mercado cultural não é uma realidade só terminológica e na boca de gestores culturais e criadores de políticas, mas também para artistas e seus meios e modos (im)possíveis de ser e fazer em seu campo profissional.

Entre diferentes estratégias e estrategistas do campo artístico, vemos insiders, outsiders, vemos pessoas que anseiam por tornar-se agentes dentro do mercado, e vemos as que, estando dentro dele, se esforçam para não sair, para permanecer, para melhorar as possibilidades de competição, para não serem apagadas, esquecidas, substituídas por importações, condenadas à autoexportação. E, como em todo campo, já disse Bourdieu, os agentes ocupam posições definidas em relação às posições de outros (ou algo assim): o clima de competição começa a esquentar e a transação aumenta. E é assim que nós artistas prometemos mundos e fundos na ânsia de ganhar um financiamento.

Por que isso, que em termos econômicos pode chegar a arruinar a nossa vida, é visto como “inversão”, ou é justificado como “o mesmo que um projeto que se realiza sem dinheiro”?

Para além da diferença entre fazer projetos com ou sem dinheiro, ou de fazê-los com a condição de que o dinheiro apareça, é plausível o argumento de que estamos diante de uma precarização crescente de nossas formas de vida e de trabalho de acordo com a ideia (totalmente pró-sistêmica) de que somos trabalhadores freelance ou independentes, sujeitos livres e autônomos. Escrevendo no contexto dos EUA, o que Isabell Lorey (2009) diz ao referir-se aos trabalhadores da cultura pode-se aplicar, sem muitas diferenças, ao nosso panorama.

Para alguns de nós, como produtores culturais, a ideia de um trabalho permanente em uma instituição é algo que sequer consideramos, ou, em todo caso, é algo que decidimos fazer no máximo por alguns anos. Depois disso, queremos algo diferente. Afinal, a ideia não foi sempre evitar se comprometer com uma coisa, uma definição clássica de trabalho, que ignora tantos aspectos? Não era nunca se vender e, consequentemente, ser compelido a abandonar as várias atividades que nos movem? Não era importante não se ajustar aos limites de uma instituição, guardar tempo e energia para realizar os projetos criativos e talvez políticos pelos quais realmente nos interessamos? O trabalho mais ou menos bem pago não deveria ser aceito de bom grado por um certo período de tempo, quando a oportunidade aparecesse, para depois poder sair dele quando não servisse mais? Assim, haveria pelo menos um pouco de dinheiro para realizar o próximo projeto significativo, que seria mal pago, porém supostamente mais satisfatório. Crucial para a atitude sugerida aqui é a crença de que se escolhem as situações de vida e de trabalho e que elas podem ser organizadas de forma livre e autônoma. Na verdade, também são escolhidas conscientemente, em grande parte, as incertezas, a falta de continuidades sob certas condições sociais. No entanto, não me preocupo em perguntar ‘Quando eu decidi livremente’? Ou ‘Quando eu devo agir anonimamente’? Mas, em vez disso, me preocupo com o modo como as ideias de autonomia e liberdade estão constitutivamente conectadas com modos de subjetivação nas sociedades capitalistas ocidentais.

Até que ponto a precarização ‘escolhida’ favorece as condições necessárias para se tornar uma parte ativa do sistema de relações econômicas e políticas neoliberais?

Analisando a diferença entre precariedade como escolha e como condição, Lorey estuda o exemplo do gestor cultural como aquele que, tendo elegido sua ‘liberdade’, performa em contrapartida um papel imprescindível e funcional aos modos de dominação contemporânea, em que a normalização e a sujeição são realizadas por sujeitos ‘livres’, com a condição de que se sintam assim. Se, por um lado, a vida e o trabalho e, por outro, a produção e reprodução deixaram de ser esferas separadas, tampouco se distanciam as estratégias que ameaçam e as que cooperam com o capitalismo em suas formas e conteúdos culturais.

As dificuldades e contradições habitam e nos habitam em um contexto em que a governabilidade se baseia neste paradoxo de que os sujeitos estão ao mesmo tempo subjugados e dotados de agência. Por Foucault, sabemos que essa é uma condição e efeito das relações de poder liberais, ou seja, da governabilidade biopolítica.

 

Fase adolescente?

Há uma questão não resolvida, que atravessa não só a política cultural em geral, como a comunidade artística e a da dança em particular: Devemos pedir mais ao estado, exigindo maior representação da cultura e da dança em seus programas, instituições e recursos? Ou deveríamos nos limitar a uma avaliação autocrítica de nossa relação com ele, para logo tentar dissolvê-la ou operar sobre a dependência que contraímos como ‘setor independente’? Uma nota publicada pelo jornalista Leonardo Flamia semana passada falava da relação entre as autoridades municipais e as associações de artistas do teatro propondo uma crítica, em que o autor lamentava algo como uma perda de valores do movimento dos artistas independentes do Uruguai. Mesmo que seja relevante observar como, em termos históricos, o movimento – assim como o mundo em que ele existe – transformou-se substancialmente fornecendo hoje mais um plano de fundo para as novas gerações que um movimento análogo ao do passado, Flamia demonstra saudosismo em relação àqueles anos em que se faziam coisas sem dinheiro. Mas além dessa nostalgia compartilhada e de um aprendizado histórico que necessita se empregar, não podemos encontrar nesse passado as direções para orientar o futuro próximo de nossas decisões e ações estético-políticas como se nada tivesse mudado. Durante o florescimento e o auge do movimento independente nas artes cênicas uruguaias se viviam outros tempos, outra política, outro estado: o estado de exceção. Não acredito que, tal como propõe Flamia, a saída para a monetarização da produção seja o amadorismo, ou ‘passar o chapéu’, mas estou convencida de que é pertinente perguntar ‘o que queremos do estado?’ e também ‘qual é atualmente nossa relação com ele?’ A resposta não podem ser números, mas não se pode também ignorá-los.

Se as políticas da direita em relação à cultura mostram claramente seus objetivos – privatização ou conversão ao mercado e desarticulação (posto que o pensamento sempre as ameaçou) – o que poderíamos responder sobre os objetivos e práticas governamentais de partidos com programas de “esquerda”? O que queremos do governo? E o que queremos da nossa prática? De nós mesmos?

No governo estatal, partidos de esquerda tem tido o talento de desenvolver simultaneamente perfis aparentemente contraditórios. De um lado a aparência agradável de um estado interessado na cultura e na sua democratização (sobretudo a popularização da alta cultura e as políticas de reconhecimento de algumas culturas consideradas baixas). Por outro, há o gesto politicamente correto de um governo que tem aprendido a lição de que o estado tende historicamente a cooptar e controlar as manifestações artístico-culturais com fins ideológicos e, para evitá-lo, cria os dispositivos menos intervencionistas possíveis, gerando uma política de concursos que não têm conseguido intervir com sucesso sobre as desigualdades no acesso aos recursos que eles distribuem, acabando por encobrir mecanismos clientelistas de concessão dos apoios e espaços.

O certo é que as avaliações estatísticas e econômicas das consequências das políticas culturais não dão conta do ponto no qual elas produziram em alguns casos exatamente o contrário do que se anunciava como objetivo. Ou estamos diante de um discurso flagrantemente dúbio da classe política governante, ou o estado e os dispositivos que se desenham a partir dele têm a capacidade inerente de reproduzir as estruturas de poder apontadas até aqui. Provavelmente entre ambas as hipóteses estão as respostas, e muitos desafios.

Para considerar o rol do grupo conhecido como artistas independentes é necessário considerar que o cenário e os atores mudaram muito respeito a aquele movimento dos 70-80 de dança e de teatro independente. Mas apesar da aparência de ente malévolo incombatível do capitalismo, o campo cultural e a vida social continuam sendo produtos das nossas decisões e da manutenção ou ruptura de círculos viciosos. O vício do “é o que tem pra hoje”, o círculo do possível.

Traduzir a pergunta para e em cada uma das microdecisões que fazem a nossa participação no campo cultural pode ajudar a ver esses conflitos em uma escala mais humana, para não cair em seguida no poço da deplorável inevitabilidade histórico-econômica em que afundamos a cada vez que levantamos a cabeça para estimar o tamanho do gigante do poder.

No artigo El cuerpo como espejo y sombra en las identidades nacionales, Victoria Alcalá formula importantes perguntas para a dança argentina no presente e passado (ou melhor dito, sua relaçao em termos políticos). Ela vai direto ao ponto: “Que formas de militância admite a dança?” Embora se interesse por discutir o esquecimento do passado como dinâmica despolitizante operada e operante no capitalismo, a pergunta é feita com uma preocupaçao mais ampla, relacionada ao fato de que a dança tende a esquecer o meio social do qual emerge e com quem dialoga, e a esses outros corpos não tão proximos em ideología, status ou classe social.

A concepção vanguardista do século XX nos deixou a fantasia da arte autônoma, que hoje é pouco fértil. Se a dança está presente nas ruas e espaços públicos como os fazedores de dança “independente” podemos evidenciar o fato de que nossos corpos presentes também são os corpos que foram, são e poderão ser silenciados? Que danças trazem o foco à interculturalidade, os temas de nossa história e a maneira de vermos a nós mesmos como argentinos?

Espero uma dança que pense, reformule e descubra os ordenamentos vinculares para bailar a diferença e também as semelhanças. Sem dúvidas, a direção comum para os que fazemos dança é o questionamento permanente da lógica capitalista que, representada por um multiculturalismo neoliberal, homogeiniza o capital simbólico e impede a a possibilidade de novos significantes. A dança do futuro talvez não tenha obras, mas projetos interculturais, que articulem constantemente o hegemônico e o periférico, para assim redistribuir os conteúdos que, a partir do coreográfico, atravessem todas as classes sociais, tanto no âmbito público como privado. Vários amigos e amigas me repetiram nos últimos dias “a arte também é uma forma de militância”. Reformulando a ideia de Victor Vich, a margem de liberdade que temos frente ao capitalismo imposto é a possibilidade político para a dança. Não apoio uma revolução new age que valoriza o hegemônico (branco/ocidental/virtuoso/cool/magro), e sim uma ação política e social em que a dança argentina viva na mistura ad infinitum. Se trata-se de desestabilizar as ordens dominantes, nós bailarinos somos responsáveis por mover o corpo da política através de um corpo comprometido com posições ideológicas claras e majoritariamente inclusivas.

Aceito o seu convite, no entanto discordo de que a saída seja tomar a nação como ponto de partida para a construção de algum tipo de militância. Diz Victoria: “Quanto à integração social em torno dos corpos e discursos contra-hegemônicos, é de suma importância na atualidade gerar nexos comunitários, conscientes e recíprocos. No sentido da Nação, os sujeitos devemos recuperar os corpos, voltar para casa, semear a pátria, curar as feridas, marcar nossa identidade no nacional.”

Se acho o primeiro pertinente, já que é urgente gerar esses nexos comunitarios dos que fala a autora, me parece que, antes de tomar a identidade nacional, temos uma pergunta com a qual dançar:

 

Como ser contracultural num governo “de esquerda”?

Nao é exagerado dizer que nós artistas nos prendemos aos financiamentos como Drácula à carótida de uma adolescente e esquecemos algumas perguntas e problemas importantes. No Uruguai existe uma relação histórica entre a comunidade artística e a esquerda, e poderíamos acrescentar, entre artistas e o Frente Amplio (FA). Em ambas se observa uma relação de pertencimento quase homóloga, que, contudo, começou a se transformar nos últimos anos. As formas que essa relação assume são mediadas pelas subjetividades de esquerda e suas mutações, afetadas particularmente pela ascensão do FA ao poder e as contradições que ocupar esse lugar implicam.

Hoje é discutível se o governo do FA é de esquerda ou não e o que isso significa. Também caberia aqui uma digressão sobre o significado de ‘arte de esquerda’, ou ainda sobre as diferenças entre arte comprometida, arte política, arte apolítica (?) ou sobre a política da estética. Porém proponho suspender essas questões para focar nestas:

É o distanciamento que produz o compromisso, uma reafirmação ou cancelamento dessa distância com aquilo com o que nos comprometemos?

Com que queremos nos comprometer?

Em que já estamos envolvidos?

Em sua tentadora provocação teórica e política, a filósofa Marina Garcés propõe que vivamos em honestidade com o real. Ser honesto com o real significa entrar na cena, e não participar dela escolhendo certas possibilidades, não optar por algum de seus possíveis, e sim tomar posição, e junto com outros, atacar a validade de suas coordenadas.

Como ser honestos com o real? Como fazer a realidade transformável começando por nossas realidades mais micropolíticas?

Se antes o inimigo da crítica era o obscurantismo, hoje é a impotência, é o que diz Marina e eu estou de acordo. Da mesma forma, deveria ser redundante lembrar que o estado, e também a iniciativa privada, obtêm em troca de seu apoio econômico à cultura uma contrapartida de legitimidade ou fortalecimento do capital simbólico, que favorece suas posições dentro do campo. Não é fácil encontrar atos desinteressados no financiamento da cultura – nem em âmbito público nem privado – mas interesses concretos, que podem ir desde a “educação do povo” à promoção de estéticas experimentais no campo artístico.

Na condição de artistas, as contradições parecem inevitáveis, mas pode-se evitar a amnésia pragmática a que nos entregamos em prol de nossa sobrevivência, uma sobrevivência que quando se torna a finalidade última da criação, coloca a esta em uma situação de subordinação no que se refere a financiamento, circulação, venda. Se o amadorismo não é a solução, tampouco parece ser entregarmo-nos à fruição acrítica de fundos e apoios e à produção em série de obras e projetos guiados pela motivação última de fazer algo. Ou de não deixar de fazer algo.

Como nos comprometermos com o real nas nossas práticas artísticas e culturais e nas comunidades com que interagimos através delas? Estará o artista contemporâneo apaixonado por uma visão idealizada de si mesmo e pelo seu imaginário sobre o impacto do seu fazer na realidade? O que existe entre os livros de Rancière e o nosso trabalho aqui agora?

O diálogo com o real é complexo e almeja a uma redistribuição do sensível que é, sem dúvida, mais fácil de afirmar em livros que nas relações e práticas. A reflexão sobre as nossas diferenças e singularidades nos fez conhecer a nós mesmos (e a nós mesmos em relação a outros), mas isso não basta e não está dando resultado para a arte conseguir gerar encontros com outros (aunque sim esta dando outros resultados). “Para transformar a realidade é preciso fazê-la transformável”, diz Garcés (2012), e continua: “Isto é o que o poder hoje neutraliza constantemente, ao nos fazer viver, como eu já disse, vidas autorreferenciadas, privatizadas, preocupadas, anestesiadas, imunizadas, como se não estivéssemos no mundo. Vidas afogadas na mágoa de não poder fincar os dentes na realidade.”

Fincando os dentes na realidade, talvez seja hora de pensar na comunidade não como algo a se fazer ou buscar, mas como nossa condição para existir, e em nossas práticas artísticas não como uma potência ainda não descoberta, mas sim como instâncias em que se materializam relações e se geram mudanças, mesmo que não sejam na direção desejada pelo artista. Abandonar as imagens idealizadas que nossa endogamia reafirma pode trazer à arte contemporânea um choque tão grande como o do protagonista de O retrato de Dorian Gray. Mas não se trata do retrato. Trocar o retrato pelo espelho dói. O tempo passa, os artistas não se aposentam, mas envelhecem. O problema da esquerda não foi tornar-se governo, mas sim como o processo de chegada ao governo e a própria governabilidade o transformaram em direita, em alguns aspectos. Cabe perguntar se foi o caso da cultura. Se é o nosso caso. É o nosso trabalho consistente na desconstrução/destruição da hegemonia ou a procura de um pedaço do pastel a cada troca de governantes? Acho que estamos todos um pouco perdidos.

Então, vamos nos olhar no espelho? Vamos desativar o reflexo? Vamos tomar posição? Ou vamos deixar que o mapa do possível nos posicione? Não tenho respostas para esses problemas, mas acho que colocá-los na mesa pode movê-los, mover-nos, em corpo, política e pensamento. Comecemos por tentar pensá-las em comunidade.

Referências

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Sobre a autora

Atualmente vivo e trabalho no Uruguai e, apesar das constantes crises, sigo acreditando no potencial político da arte e na teoria e prática da crítica como ferramentas para mudar o mundo. Danço, amo e investigo no campo das artes cências e das ciências sociais (ou das artes sociais e ciências cênicas). Além disso, tenho avançado com dificuldade pelas páginas de uma tese de doutorado em construção. Escrevo coisas que quase sempre posto aqui. Meu e-mail é lunaser@gmail.com

[Traduzido por Gustavo Bitencourt]

[Foto: ‘Antes de entrar permita salir’. Saída do metrô na cidade do México. Imagem por Lucía Naser.]